Da crise econômica à batalha cultural: os
desafios da resistência a Milei
Já faz 500 dias desde que Javier Milei
assumiu o poder na Argentina. Desde então, a Argentina vive um terremoto
político: uma caminhada rumo ao desconhecido que está mudando completamente o
cenário social e institucional. A chegada de Milei ao poder marcou, um ponto de
virada na história recente do país.
Como se fosse um paradoxo histórico, ironia
de mau gosto, sua posse, em 10 de dezembro de 2023, coincidiu com os 40 anos da
transição democrática que acabou com a última ditadura civil-militar, em 1983.
Foi a primeira vez na história do país que um
governo de extrema direita chegou ao poder pelo voto popular. Um governo que,
sem disfarces, defende o projeto político da última ditadura e pretende travar
uma cruzada contra as lutas por memória, verdade e justiça, bandeiras
levantadas pelos movimentos populares desde a resistência ao regime militar.
Até agora, seu governo tem implementado um
programa econômico de choque, baseado em ajustes fiscais radicais,
desregulamentação trabalhista junto a um ataque sistemático ao estado de
bem-estar social. Uma agenda reacionária que não esconde sua intenção de
declarar guerra contra qualquer ideia de justiça social.
Durante este ano e meio de governo, as
medidas adotadas têm atingido de forma particularmente dura os setores mais
vulneráveis. Afetando milhões de pensionistas, a previdência sofreu cortes
equivalentes a quase um terço do ajuste total. Ao mesmo tempo, importantes
programas sociais foram eliminados, tais como o fornecimento gratuito de
medicamentos para 1,7 milhão de pessoas. Enquanto, a resposta aos protestos dos
prejudicados tem sido invariável: repressão maciça e sistemática.
Milei tem conseguido impor sua agenda apesar
de contar apenas com uma minoria parlamentar. Somente 39 dos 257 deputados e 7
dos 72 senadores, o que representa apenas 15% do Congresso, fazem parte dos
chamados “libertários”. O que demonstra que seu projeto teria sido impossível
sem a colaboração de uma parte substancial da própria oposição política.
No entanto, após várias vitórias políticas, o
início de seu segundo ano no cargo – um período-chave devido às estratégicas
eleições legislativas em outubro, que servirão como termômetro da sua força
política – rapidamente tem sido marcado por uma série de inesperadas e, em
muitos casos, autoinfligidas crises.
Desde seu polêmico discurso em Davos, que
provocou indignação e mobilizações em massa – obrigando o governo a defender
que havia sido “mal interpretado” – até o surreal escândalo da criptomoeda
libra, que, segundo todas as pesquisas, desgastou sua imagem até mesmo entre
seus próprios eleitores.
Brasil de Fato, em entrevista exclusiva,
conversou com o deputado Itai Hagman, dirigente do Frente Patria Grande, para
analisar o impacto do governo de Milei na democracia argentina e sua relação
com a ascensão global da extrema direita.
LEIA A ENTREVISTA:
·
A cultura argentina é
uma em que as ideias de esquerda e o progressismo pareciam profundamente
enraizados. No entanto, uma força de ultradireita não apenas venceu as
eleições, como o fez desafiando diversos consensos que aparentavam estar
consolidados na sociedade argentina. O que você acredita que o fenômeno Milei e
os libertários representam?
Itaí Hagman: Quando Milei chegou ao poder, todos nós nos
perguntamos se ele era apenas um personagem exótico, um acidente da história
que acabou virando presidente, ou se representava algo mais profundo. Acho que,
depois de pouco mais de um ano de governo — e especialmente ao ver o impacto
internacional da figura de Milei —, ficou claro que ele não é só um acidente
político.
Na minha opinião, Milei personifica um
fenômeno global que tem várias expressões em diferentes partes do mundo. Ele é
uma nova face da representação política, ligada a um novo poder econômico
global.
Não sei se é isso que o Varoufakis chama de
“tecnofeudalismo” ou qual seria o termo exato, mas é evidente que existe um
novo poder econômico global que demanda outra representação política. O fato de
um cara como Elon Musk ser fã de um presidente argentino é sintomático, e isso
nos obriga a levar a situação muito a sério.
Lembram quando Milei foi ao Fórum de Davos?
Aquela palestra me impressionou muito, porque os presidentes argentinos
tradicionalmente liberais, quando vão a Davos, o que fazem? Eles vão pra
implorar, tentar agradar a elite econômica e política global. Já Milei fez um
discurso revolucionário, quase hostil com a plateia, dizendo que eles estavam
acomodados enquanto o Ocidente estava em perigo. Ele praticamente sacudiu a
plateia. E foi esse discurso que chamou a atenção do Elon Musk. Portanto, está
claro que Milei expressa parte dessa reação a uma certa decadência do Ocidente
e, por isso, é um fenômeno político que precisa ser levado muito a sério.
·
Vocês caracterizam o
governo de Milei não apenas como rival político, mas também como inimigo. Pode
explicar essa diferenciação?
Para nós, a luta contra Milei na Argentina
hoje também tem um caráter estratégico no cenário internacional. E esse novo
poder econômico global – que é, de fato, um poder que quer se livrar do Estado
– representa uma ameaça real.
Milei está convencido de que a democracia,
pelo menos como está estabelecida nas regras do jogo ocidentais, é obstáculo ao
seu projeto fundamentalista de mercado. Não me parece coincidência que ele,
assim como outros representantes da nova direita ou da extrema direita, estejam
começando a questionar o consenso democrático.
Por isso, para nós, Milei não é apenas um
adversário político, mas um perigo para a democracia argentina e para a
democracia global. Para nós, democracia não se resume a votar: é ter um Estado
de Direito que garanta certos direitos e mantenha as regras básicas do jogo
democrático.
Acreditamos que estamos travando na Argentina
uma batalha de grande relevância e com profundo significado estratégico em
nível mundial.
·
Os libertários
argentinos não afirmam apenas que chegaram ao Executivo para administrar o
governo – eles declaram abertamente que pretendem fazer o que chamam de
“revolução”. Ou seja, querem transformar profundamente e de forma permanente as
relações de poder no país. Na sua
avaliação, quais seriam os principais objetivos estratégicos dessa extrema
direita? E, nesse contexto, quais seriam as “linhas vermelhas” que o movimento
popular não pode, de maneira alguma, permitir que sejam cruzadas?
Aqui, Milei está na ofensiva em pelo menos
três frentes. A primeira – e mais comentada – é a do ajuste econômico. Mas, na
minha avaliação, essa é a menos perigosa. Sem dúvida é dolorosa: Milei mesmo
afirma que se trata do maior ajuste da história argentina, que atingiu
aposentados, pensionistas, os salários dos trabalhadores e levou muitas
pequenas empresas à falência. Porém, existem pelo menos outras duas dimensões
no projeto de Milei que são muito mais estratégicas.
A primeira dessas dimensões estratégicas são
as reformas estruturais que Milei pretende implementar – uma completa
desregulamentação da economia, a privatização de todas as empresas estatais e o
desmonte das capacidades do Estado. Até agora, porém, Milei não obteve muito
sucesso nessa área. Isso inclui, por exemplo, a nova lei de investimentos, que
basicamente permite a entrada de capital estrangeiro no país sem qualquer tipo
de regulação.
Há ainda uma terceira dimensão, que é o que
ele chama de “batalha cultural”. Na minha opinião, é nessas duas últimas áreas
que estão nossas verdadeiras linhas vermelhas. E, nesse aspecto, não estamos
tão mal: o ajuste econômico, sim, Milei conseguiu implementar. Mas ele ainda
não conseguiu aprovar as reformas mais profundas – não privatizou o sistema
previdenciário, nem as empresas estratégicas do país.
·
E em relação à “batalha
cultural”?
A chamada “batalha cultural” – que inclui as
questões de justiça social que mencionei antes – envolve vários fronts
importantes. Há uma forte disputa em torno da memória histórica, especialmente
sobre o período da última ditadura militar. Também há uma intensa batalha
relacionada aos direitos de gênero e à diversidade. Embora a ofensiva seja
forte, na minha avaliação, essas questões ainda estão em jogo. E o povo
argentino tem demonstrado uma notável capacidade de resistência.
Um exemplo concreto: uma das primeiras
batalhas que o governo Milei travou nessa guerra cultural foi contra as
universidades públicas. Na Argentina, mantemos com orgulho um sistema
universitário público, gratuito e de acesso irrestrito – uma conquista que
valorizamos profundamente.
Milei desferiu um duro ataque contra a
existência do ensino superior público gratuito. Mas a resposta do movimento
universitário – não apenas dos estudantes, mas de toda a comunidade acadêmica –
foi extremamente vigorosa ao longo do último ano. Muitos de vocês devem ter
visto as imagens das grandes mobilizações, inclusive no exterior.
Por isso, minha avaliação é que estamos
resistindo bem nessa batalha. Acredito que não apenas estamos mantendo nossas
posições, como temos condições de, no mínimo, não recuar.
·
A Argentina encerrou
2023 como um dos países com a inflação mais alta do mundo – um problema que, em
grande parte, explica a derrota do peronismo nas eleições daquele ano. O
governo Milei agora se gaba de ter “estabilizado a economia”. Mas que
explicação você daria a política econômica adotada por este governo?
Milei implementou um programa de
estabilização econômica. Quando assumiu o governo, a Argentina enfrentava
graves desequilíbrios: uma inflação altíssima e uma enorme diferença entre a
taxa de câmbio oficial e a do dólar paralelo (o “blue”).
O eixo central de sua política foi o ajuste
fiscal. Porém, o fator mais importante – e que explica seu relativo sucesso em
estabilizar a economia e reduzir a inflação – foi a manutenção de uma taxa de
câmbio relativamente estável, estratégia que outros governos já haviam adotado
no passado.
Na Argentina, qualquer cidadão sabe: quando o
dólar fica estável, os preços se acalmam; quando o dólar dispara, os preços
explodem. Essa é uma característica de nossa economia bimonetária, onde a
cotação do dólar impacta diretamente os preços internos.
Essa política cambial fez a Argentina deixar
de ser um dos países mais baratos do mundo em dezembro de 2023 para se tornar
um dos mais caros atualmente. Hoje, tomar um café em Buenos Aires custa o mesmo
que em Paris ou Nova York.
Porém, esse modelo de dólar artificialmente
barato é insustentável. O país não tem capacidade exportadora para gerar os
dólares necessários para manter essa taxa de câmbio.
A situação é muito similar ao que ocorreu no
governo Macri, que sustentou o câmbio com endividamento externo. Milei, por sua
vez, financiou essa política através de um blanqueo de capitales [legalização
de capitais], que captou cerca de US$ 30 bilhões. Foi uma manobra inicialmente
bem-sucedida. Mas agora, para continuar sustentando seu modelo, está obrigado a
buscar novo endividamento com o FMI – pois este esquema de taxas de câmbio simplesmente
não se sustenta sozinho.
·
Do ponto de vista
político, este será um ano crucial para o país. Ao longo do ano, acontecerão as
eleições legislativas, que vão mudar a composição do Congresso. Como os
libertários não têm nenhuma cadeira em risco, sua tendência é ganhar mais força
no Parlamento. Na sua opinião, qual é o principal
objetivo do campo popular nessas eleições?
O principal objetivo é manter um bloco de
oposição muito forte e direto contra o governo de Milei. Para que um projeto
como o dele — um projeto neoliberal, digamos assim — se mantenha ao longo do
tempo e se torne hegemônico, não basta que o governo tenha bons resultados: é
preciso que todo o sistema político seja colonizado.
Por isso, mesmo que Milei fracasse, seu
substituto não pode ser alguém que atue dentro da mesma lógica. Precisamos que
a oposição a Milei seja direta e antagônica. Que tipo de oposição ele
enfrentará? Nossa aposta política é que nossa luta deve garantir uma oposição
firme, que não negocie, que não ceda.
E essa será a condição para, no futuro,
construir uma alternativa viável nas próximas eleições presidenciais. Esse é o
desafio político, eu diria. Já o desafio estratégico para o campo popular é
reduzir os danos. Não dá para evitar totalmente medidas antipopulares em um
governo como o de Milei — isso faz parte da sua essência —, mas acredito que
podemos evitar derrotas em batalhas estratégicas. Na minha visão, as
privatizações e a destruição de capacidades do Estado são batalhas cruciais. A
batalha cultural também é estratégica. E precisamos atuar em todas as frentes:
nas ruas, na mídia e, claro, na política.
O campo popular na Argentina está
enfraquecido hoje porque vem de uma experiência política fracassada — o governo
da Frente de Todos —, mas ainda mantém um nível de organização que permite
exercer resistência. O papel dos sindicatos, do movimento universitário, dos
movimentos sociais, da economia popular e de todos os setores organizados da
sociedade é fundamental para sustentar essa luta.
·
Qual é o papel da
mobilização popular nessa estratégia?
Acho que exercitar essa capacidade de
resistência é fundamental não só para evitar retrocessos, mas também para criar
as condições necessárias para avanços futuros. Quando o governo sair das mãos
de Milei, o nível de destruição será tão grande que, para reconstruir uma
Argentina próspera – com mais bem-estar, melhores rendas e qualidade de vida –
não bastará ter um bom governo ou uma equipe política competente. Vamos
precisar, acima de tudo, de uma sociedade mobilizada e organizada.
Pra mim, combater a desmobilização é uma das
batalhas mais importantes. A luta cultural, por exemplo, é uma defesa da
democracia, da justiça social e dos direitos conquistados. E essa memória de
resistência ainda está viva no povo argentino. Manter essa capacidade de
mobilização e organização é crucial não apenas para resistir aos ataques
atuais, mas também para reconstruir um projeto popular quando chegar nossa hora
de apresentar uma alternativa e, quem sabe, governar depois da era Milei.
·
Nesse contexto de forte
crescimento da direita em todo o mundo, qual é a importância da articulação de
projetos progressistas e de esquerda na América Latina e no Caribe?
Sempre dizemos que não existe projeto local
sem projeto nacional. E não existe projeto nacional sem um projeto
latino-americano. Isso não é só por uma questão política momentânea – até
porque hoje enfrentamos adversários parecidos em vários países. É uma questão
estratégica de desenvolvimento.
Na verdade, eu diria que isso é um
aprendizado que ficou daquela década de governos populares e progressistas no
início do século. Um dos limites que impediram a continuidade e o
aprofundamento desse processo foi justamente a falta de avanços na integração
regional.
No mundo de hoje, é praticamente impossível
imaginar a Argentina avançando num caminho de desenvolvimento sustentável, com
crescimento econômico e melhoria na qualidade de vida, se não estiver integrada
a um projeto regional. Por isso, é fundamental articular nossas lutas com as
experiências de outros países, com as organizações populares da região e com as
construções políticas que estão surgindo em toda a América Latina.
Isso é importante por dois motivos: primeiro,
porque enfrentamos o mesmo inimigo – a representação política desse novo poder
econômico global. Segundo, porque precisamos construir um projeto de
desenvolvimento próprio para nossa região.
Tenho a impressão de que, hoje, as forças
progressistas na América Latina ainda não conseguiram formular uma alternativa
clara ao que essa nova direita está propondo. Nós não temos esse projeto
pronto. E é nosso dever construí-lo. Nessa construção, a articulação com nossos
irmãos de toda a “Pátria Grande” é absolutamente essencial.
¨
Argentina de Milei: sem
remédios, casal de aposentados tenta suicídio
Um
casal de aposentados tentou se atirar na frente de um trem neste sábado
(26), na estação de Caseros, na zona oeste da grande Buenos Aires,
capital da Argentina, mas foi contido por
populares que estavam no local. Segundo informações de um vídeo postado
pelo jornalista Rogério Tomas Jr., os dois estavam desesperados por não
conseguiram recursos sequer para comprar medicamentos.
“O que
a grande mídia brasileira não mostra sobre a Argentina: o desespero dos
aposentados que não conseguem comprar remédios (Javier Milei cortou a distribuição
gratuita para aposentados de baixa renda) ou comida e, sem alternativas,
preferem acabar com a própria vida em vez de padecerem um sofrimento
permanente”, escreveu o jornalista.
“Ontem
um casal ia se jogar na frente de um trem em Buenos Aires, mas foi contido por
pessoas na estação que perceberam a situação e convenceram a dupla a não
concretizar esse ato, porque a tragédia eles já vivem diariamente”, completou.
O casal
foi acolhido por pessoas na estação, que chamaram o SAME (o SAMU de lá) para atendê-los.
<><> O corte nos subsídios
Em dezembro do ano passado, o governo de
Javier Milei anunciou um novo corte na distribuição de medicamentos gratuitos
para aposentados, restringindo o acesso ao benefício 100% subsidiado aos
associados do PAMI (o equivalente argentino ao INSS) que possuem renda de até
um salário mínimo e meio, aproximadamente 389 mil pesos mensais.
De acordo com o PAMI, aposentados que se
enquadrem nos critérios para receber até cinco medicamentos por mês com
cobertura total precisarão realizar um procedimento adicional para obter um
“subsídio social”.
Fonte: Brasil de Fato/Fórum

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