Donald Trump – o tumulto programado
Fiel a seu estilo de jogador que arrisca,
Donald Trump provocou um caos nos mercados mundiais. Introduziu, retirou e
reformulou uma tabela de tarifas alfandegárias que desencadeou uma enorme desordem.
Sua bravata recriou os piores pesadelos financeiros das últimas décadas. O
magnata criou um cenário inédito de crise global deliberadamente precipitada.
Alguns analistas acreditam que ele tende a recuar diante dos resultados
adversos de suas medidas, mas outros consideram que ele continua assustando
seus interlocutores para forçá-los a capitular. Há também a impressão
superficial de que Donald Trump enlouqueceu e que, em sua decadência, os
Estados Unidos ficaram sob o comando de um alucinado. O magnata mente, insulta,
agride e parece governar a primeira potência como se fosse um fundo de
investimento. Mas, na verdade, ele está seguindo uma estratégia aprovada por
importantes grupos de poder e não deve ser subestimado (Torres López, 2025). Ele
tem três objetivos econômicos: restabelecer a hegemonia do dólar, reduzir o
déficit comercial e incentivar a repatriação das grandes empresas. A hierarquia
e articulação dessas metas é a grande questão do momento.
·
Centralidade monetária
Algumas abordagens destacam, com razão, a
primazia das metas financeiras e monetárias sobre as comerciais ou produtivas.
Enfatizam que Donald Trump pretende instaurar um dólar barato para exportar, e
um dólar elevado como reserva de valor. Pretende favorecer as exportações
estadunidenses, enquanto assegura o estatuto privilegiado da divisa
norte-americana como moeda mundial (Varoufakis, 2025). Os dois principais
assessores do presidente – Miran e Besset – confirmaram este propósito,
confessando que as pressões comerciais são um instrumento de exigências
monetárias. Para conseguir a desvalorização do dólar e sua permanência como
reserva de valor, Donald Trump precisa reforçar a subjugação dos Bancos
Centrais da Europa e do Japão. Esta subordinação é indispensável para preservar
o papel dos títulos da dívida estadunidense (Bônus do Tesouro) como principal
refúgio do capital.
Esta garantia determina o afluxo do excesso
de dinheiro no mundo para Wall Street. Tóquio e Bruxelas devem manter a compra
destes papéis para convalidar a taxa de câmbio do dólar fixada por Washington,
evitando assim tensões cambiais que desmoronariam todo o projeto. Donald Trump
exige a continuação do reinado do dólar e a consequente capacidade dos Estados
Unidos de se financiarem à custa do mundo. O imperialismo do dólar permite à
primeira potência mundial endividar-se de forma ilimitada e manipular a seu
favor todas as economias do mundo.
Para lidar com os sérios questionamentos que
este atributo enfrenta atualmente, o magnata pretende recriar os Acordos de
Plaza, que os Estados Unidos impuseram à Alemanha e ao Japão nos anos 1980.
Nesse momento, seus dois subordinados concordaram em apoiar o barateamento do
dólar e manter uma paridade que garantisse a primazia mundial da moeda
norte-americana. Donald Trump está moldando esta exigência aos novos tempos e
patrocinando novas moedas digitais ligadas ao poder político do dólar. O
potentado criou um fundo de criptomoedas baseado em sua própria figura e
promove esse mercado (stablecoins) como um pilar adicional do dólar. Já
posicionou estes instrumentos entre os 10 maiores detentores de Bônus do
Tesouro (Litvinoff, 2025). O presidente ianque sonha com o retorno do dólar a
seu trono original de Bretton Woods. Seu plano B é reciclar essa centralidade
para o nível atingido por Richard Nixon e Ronald Reagan. No primeiro caso, o
dólar norte-americano foi libertado da convertibilidade do ouro e iniciou um
longo ciclo de predomínio sem suporte metálico objetivo. No segundo, a divisa
ianque foi reforçada pelo aumento das taxas de juro, pela ascensão do
neoliberalismo e pela financeirização sob o comando da Reserva Federal. Estes
dois presidentes compartilhavam com Trump o mesmo perfil de personagens
medíocres, mas introduziram mudanças significativas no estatuto mundial do
dólar. Para repetir essa proeza, o magnata deve frear a tendência à
desdolarização, que ameaça a supremacia da cédula verde. Esta erosão é
impulsionada pelos BRICS, que começaram a conceber instrumentos de substituição
da moeda estadunidense através de operações de pagamento, transações comerciais
e mecanismos de compensação financeira (Sapir, 2024). Inclusive já existe um
projeto de criação de uma moeda dos BRICS que, seguindo uma trajetória
diferente da do euro, teria um efeito semelhante. Este plano prevê a gestação
progressiva de um banco emissor, com fundos de reserva e cronogramas detalhados
de ritmos, taxas e legislações (Gang 2025). Donald Trump conhece estas ameaças
e precipitou o caos, para desencadear a batalha contra os desafiantes da divisa
ianque. Ele promove este pânico para disciplinar todos os aliados sob seu
comando. A partir desta centralização, ele espera recompor o dólar e reiniciar
o sistema econômico mundial a favor dos Estados Unidos. Mas o magnata precisa
limitar o alcance da crise autogerada, porque se esta convulsão recriar o
cenário da pandemia ou o contexto do colapso bancário de 2008, o tremor acabará
afetando seu próprio artífice (Marcó del Pont, 2025a).
O barômetro imediato da queda de braço é o
comportamento dos Bônus do Tesouro. O Japão é o principal detentor desses
títulos desde que a China começou a abandoná-los. Os bancos da Europa e de
outros países asiáticos também possuem um acervo significativo destes papéis. O
plano de Donald Trump naufragará rapidamente se, como sugerido na recente
turbulência, os credores da dívida estadunidense venderem esses ativos. Mas,
para além desse cálculo imediato, a grande dúvida é a capacidade geral dos
Estados Unidos para recompor sua moeda. Há várias diferenças substanciais em
relação à era Nixon e Reagan. O declínio da primeira potência é muito maior, o
circuito de dominação imperial está erodindo, o colapso da URSS e a estreia da
globalização ficaram para trás e o avanço econômico da China é avassalador. A
estratégia monetária de Donald Trump também enfrenta uma grande tensão com os
bancos, enquanto Wall Street observa com desconfiança, um rumo que ameaça
cortar os enormes lucros dos últimos tempos.
·
O bumerangue tarifário
O segundo objetivo de Donald Trump é
comercial, destinado a reduzir o monumental déficit externo dos Estados Unidos.
Trata-se de um objetivo de médio prazo, que não tem a urgência da guinada
monetária e que depende em grande medida da recomposição do dólar. O magnata
introduz e modifica diariamente as tarifas alfandegárias, devido ao lugar
complementário destes instrumentos nas negociações com cada país. O ocupante da
Casa Branca, de fato, radicaliza a tendência protecionista inaugurada pela
crise financeira de 2008 e o declínio da globalização comercial. Desde essa
data, foram introduzidas 59.000 medidas restritivas nas trocas internacionais e
as tarifas aduaneiras atingiram o nível mais elevado dos últimos 130 anos
(Roberts, 2025a). A guerra comercial que Trump desencadeou com seu pacote
tarifário pomposo está em sintonia com este percurso anterior. O potentado
recorreu a uma fórmula absurda para penalizar diferentes países. Inventou um
critério arbitrário de reciprocidade para definir o percentual de cada castigo,
com estimativas disparatadas do déficit comercial estadunidense, que omitiram o
superávit ianque nos serviços. Esqueceu também que os desequilíbrios comerciais
não foram causados pelos países sancionados, mas pelas próprias empresas
estadunidenses, que situaram seus investimentos no exterior para aumentar seus
lucros.As possibilidades de sucesso do plano trumpista são muito reduzidas, uma
vez que as importações e exportações estadunidenses já não operam como uma
força decisiva no comércio mundial. Elas caíram de 14% em 1990 para 10,35%
hoje, e, nesse período, só os BRICS saltaram de 1,8% para 17,5%. A guerra
tarifária não tem, por si só, poder dissuasivo e as vendas exibidas pela
potência líder em serviços são insuficientes para inclinar a balança (Roberts,
2025b). Algumas estimativas apontam até mesmo que, se os Estados Unidos
suspendessem todas as importações, 100 de seus parceiros poderiam recolocar
suas vendas em outros mercados em apenas cinco anos (Nuñez, 2025). O maior
problema da guerra comercial é a possibilidade de uma escalada incontrolável.
Em 1929-34, a espiral descendente do comércio internacional que sucedeu o
pacote protecionista (Smoot-Hawley) provocou uma queda de 66% no comércio e
esse colapso teve impacto em todos os concorrentes. Donald Trump supõe que
evitará essa sequência com negociações bilaterais forçadas a partir de seu
gabinete. Mas o que aconteceu no passado sugere outro resultado quando os
conflitos se agravam sem contenção. O efeito recessivo do protecionismo na
economia mundial é tão bem conhecido como a ligação entre a Grande Depressão e
a retração do comércio. Embora as interpretações mais comuns associem
superficialmente os dois processos – omitindo as raízes capitalistas do que
aconteceu na década de 1930 – não há dúvida de que o protecionismo desencadeou,
impulsionou ou precipitou o colapso desse período.
O mais relevante de uma eventual repetição
desse precedente seria seu efeito sobre a economia estadunidense, hoje muito
mais vulnerável às turbulências globais. Esse impacto é maior por causa da
centralidade do comércio exterior, que saltou de 6% (1929) para 15% (2024) do
PIB do país. Donald Trump reintroduz o protecionismo num momento inoportuno da
história. As tarifas eram um instrumento eficaz para os Estados Unidos no
passado, mas não cumprem essa mesma função atualmente. Facilitavam a decolagem
das potências emergentes contra competidores que propiciavam o livre comércio,
a fim de manterem seu domínio do mercado mundial. O protecionismo foi utilizado
com grande vantagem pela Alemanha no século XIX e pelo Japão ou pela Coreia do
Sul no século passado. Mas a mesma ferramenta não permitiu à Grã-Bretanha
conter seu declínio, e essa ineficácia afeta atualmente os Estados Unidos.
Donald Trump patrocina um protecionismo desequilibrado, pois, em vez de
encorajar a indústria nascente, procura socorrer uma estrutura obsoleta. Ele
simplesmente desconhece que os Estados Unidos já não são o que eram.
·
O sonho do retorno
fabril
O terceiro objetivo de Donald Trump é
produtivo. Ele favorece o retorno das empresas a seu território de origem e vê
nesta realocação a única forma de efetivar a recuperação hegemônica ianque. É
por isso que identificou a estreia de sua ofensiva (“Dia da Libertação
Econômica”) com a reindustrialização do país. Donald Trump é o primeiro
presidente a reconhecer abertamente a adversidade gerada pela expatriação das
fábricas. Recorre a instrumentos drásticos para inverter este infortúnio,
porque compreende que a globalização acabou afetando a potência que a promoveu.
Registra que a primazia norte-americana nos serviços, nas finanças e no
universo digital não compensa o retrocesso fabril e a consequente erosão do
pilar de qualquer economia. Mas seu plano de repatriação industrial é mais
inviável do que seu projeto monetário ou tarifário. Nenhuma alquimia monetária
ou tarifária é suficientemente atrativa para induzir o retorno das empresas que
obtiveram lucros elevados no exterior. Por mais persuasivos que sejam os
incentivos do magnata, produzir nos Estados Unidos tem um custo mais elevado. A
recuperação industrial exigiria um investimento massivo, que as empresas não
estão dispostas a fazer com a baixa rentabilidade interna atual. O giro
protecionista visa modificar essa lacuna, mas se defronta com a dificuldade de
fechar a economia num cenário de cadeias de abastecimento globalizadas. No produto
final de muitas mercadorias são incorporados insumos de fábricas instaladas em
inúmeros países. Não é fácil imaginar como os Estados Unidos poderiam recuperar
a competitividade recriando antigos padrões de produção nacional. Quanto teria
que subir uma tarifa para que fosse mais barato voltar a produzir no país? Basta
observar o caso da Nike, por exemplo, que tem 155 fábricas no Vietnã e um
número monumental de postos de trabalho neste país, para fornecer um terço das
importações de calçados dos Estados Unidos. A diferença nos custos de produção
é tão sideral que um retorno aos Estados Unidos parece impensável (Tooze,
2025). A dissociação do processo de fabricação na China implicaria um impacto
semelhante para empresas como a Apple.
Os economistas de Donald Trump também afirmam
que seu projeto será viável se a primazia do dólar for recuperada e o déficit
comercial for reduzido. Acreditam que este processo corrigirá os desequilíbrios
globais de consumo, poupança e investimento que afetam a primeira potência. Do
lado oposto, os críticos neoclássicos e keynesianos lembram que, em seu
primeiro mandato, Donald Trump não conseguiu inaugurar essa mutação. O debate
entre ambas posições gira em torno do impacto positivo ou negativo do protecionismo
sobre os gastos, a renda, a poupança e o consumo. Mas esquece que o revés dos
Estados Unidos não se situa nestes domínios. Resulta da baixa produtividade da
principal economia ocidental em comparação com seu concorrente em ascensão no
oriente. São incontáveis tantos os indicadores deste fosso como as provas de
seu contínuo aumento. Basta verificar a tendência generalizada das empresas
norte-americanas em privilegiar o investimento financeiro, ou em operar como um
caixa eletrônico de Wall Street, para confirmar o declínio de sua
competitividade. Tendem a gastar mais em recompras de ações e pagamento de
dividendos do que em investimentos a longo prazo. Grande parte destas empresas
globalizaram seus processos de fabricação para compensar os elevados custos de
produção locais. Mas esta mudança as tornou fortemente dependentes da
importação de bens de consumo baratos da Ásia para manter os salários locais
deprimidos. O grau em que estão ligadas ao fornecimento de insumos chineses foi
corroborado pela decisão do próprio Donald Trump de isentar todos os chips e
componentes eletrônicos das tarifas impostas ao rival asiático. O mesmo
problema estende-se aos bens de capital e intermediários, que representam cerca
de 43% das importações totais da China (Mercatante, 2025). O retrocesso
norte-americano não se deve a erros comerciais e a sua reversão não é o
resultado do ultimato protecionista. Há, sem dúvida, uma mudança de modelo em
curso, corroendo a divisão internacional do trabalho forjada em décadas de
internacionalização produtiva. Mas este ocaso não inaugura o processo oposto de
nacionalização fabril que Donald Trump imagina, porque a capacidade dos EUA
para liderar esta mudança diminuiu drasticamente.
·
O retrocesso diante da
China
É evidente que a China é o epicentro da
guerra econômica iniciada por Donald Trump. Foi o principal alvo das tarifas
alfandegárias que desencadearam a vertiginosa escalada mútua. Os 34% iniciais
de Washington foram contrapostos com a mesma porcentagem por Pequim e a
contenda escalou rapidamente para 84%-104% e 145%-125%. Nestes níveis, o
comércio entre os dois países tende a anular-se. A centralidade da China na
ofensiva de Donald Trump foi adicionalmente corroborada por sua decisão de
manter as sanções para este país, depois de terem sido suspensas para o resto
do mundo. As elevadíssimas tarifas sobre Vietnã, Camboja e Laos fazem parte da
mesma confrontação, pois a China comanda as cadeias de abastecimento destes
vizinhos e reexporta suas mercadorias a partir deles. Pequim respondeu com
firmeza, aplicando imediatamente direitos aduaneiros recíprocos e deixando
claro que não aceitará a chantagem ianque. Há muito tempo que se prepara para
esta reação e pretende travar a batalha em termos de produtividade, evitando a
desvalorização do yuan. Além disso, já está à procura de clientes de
compensação e planeja atrativos específicos para Europa e Ásia. Toda a política
de Donald Trump é uma tentativa desesperada de frear o avanço da China. Esta
expansão estava apenas começando na virada do milênio, quando a primeira
potência deixou de receber transferências de renda do parceiro asiático a seu
favor. Foi o início de uma troca desfavorável, que atingiu agora um pico
difícil de reverter. O magnata pretende alterar este cenário adverso com ações
drásticas. Mas a distância entre as duas potências não se deve apenas a
diferenças de política monetária, comercial ou de produção. Está na estrutura
social e na gestão do Estado. Na China existem importantes classes capitalistas
que especulam com suas fortunas e exploram os trabalhadores. Mas esses grupos
não controlam o poder estatal e esse limite explica a capacidade e autonomia da
liderança política para orientar a economia com padrões de eficiência. Donald
Trump não tem qualquer fórmula para lidar com esta desvantagem, que está além
de todas as suas intenções e projetos. Para piorar a situação, ele impulsiona
medidas que agravam os dois grandes males do capitalismo contemporâneo: a
desigualdade social e as mudanças climáticas. Ele embarcou numa batalha adiada
para sustentar a liderança estadunidense num sistema em crise, mas acentua o
declínio norte-americano com medidas que adota, modifica e restabelece.
·
O nostálgico léxico
imperial
Donald Trump está tentando recuperar a
centralidade imperial dos Estados Unidos. É a única forma de engrandecer os
capitalistas de seu país às custas do resto do mundo. O pacote de sanções,
tarifas e chantagens que pôs em prática exige uma revitalização do império. O
magnata pretende recompor essa primazia com atitudes de brigão. Vangloria-se de
ter obtido a negociação de direitos aduaneiros com 75 países, depois do susto
provocado por sua tabela de tarifas. Mas mascara a realidade com uma
fanfarronice que obscurece o progresso real das negociações. Com a União
Europeia, aprofunda uma disputa que começou com a introdução e suspensão de
tarifas de 25%. Trump aspira a impor uma euro-vassalagem, que lhe permitiria
reindustrializar seu país, desindustrializando o parceiro transatlântico. A
primeira etapa desta operação é o rearmamento do Velho Continente, com energia,
tecnologia digital e equipamentos fornecidos pelos Estados Unidos. O potentado
semeou o pânico entre as elites europeias, que, num acesso de russofobia, se
lançaram num belicismo cego. Estão cortando as despesas sociais e já substituem
a apregoada transição verde por outra cinza, de puro gasto militar. Mas esta
mudança não está isenta de conflitos, e o rápido acordo que Trump esperava
assinar com Putin (para apropriar-se das riquezas da Ucrânia) não está atolado
apenas com a Rússia. Também deu origem a um conflito sem precedentes entre
Washington e Londres sobre quem fica com o botim das terras raras (Marcó del
Pont, 2025b).
Mais determinantes são as negociações com os
parceiros subordinados na Ásia. Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Filipinas sempre
responderam com disciplina invariável ao padrinho estadunidense. Mas a grande
novidade dos últimos anos é a crescente relação econômica destes países com
Pequim. A escala deste negócio levantou sérias dúvidas sobre o bloco antichinês
promovido pela Casa Branca. Donald Trump utiliza mensagens imperiais explícitas
para fazer valer suas demandas. Utiliza um léxico tão direto que a estreia de
seu segundo mandato suscitou numerosos comentários jornalísticos deste tipo. A
tradicional preocupação da grande mídia com o uso irritante do termo
imperialismo foi dissipada pela frontalidade do magnata. A mesma demonstração
de poder imperial rodeou o anúncio da tabela de tarifas. Donald Trump incluiu
pomposamente nesta lista todos os países do mundo, para destacar que nenhum
deles escapará do látego de Washington. Não hesitou em inserir nações que não
comercializam com os Estados Unidos ou em incorporar ilhas habitadas apenas por
pinguins. Mas as proclamações imperiais do opulento nova-iorquino contêm
ingredientes mais nostálgicos do que efetivos. Donald Trump sente falta da obra
de governantes distantes, que combinaram o protecionismo com a expansão
imperial durante os dias de glória do capitalismo estadunidense. Exalta com
particular ênfase o presidente McKinley (1897-1901), que emergiu como um
“Napoleão do protecionismo”. Introduziu um drástico aumento de 38-50% nas
tarifas aduaneiras (1890), ao mesmo tempo que comandava a expansão para o
Pacífico (Havaí, Filipinas, Guam) e a conquista do Caribe (Porto Rico e a
aspiração por Cuba). Trump idolatra tanto sua defesa virulenta da indústria
como sua extensão, a tiros, do raio territorial estadunidense (Boron, 2025). Mas
esta evocação choca com a realidade do século XXI. O magnata não pode
instrumentalizar o protecionismo invasor de seu ídolo, optando por combinar a
pressão tarifária com a prudência militar. Longe de retomar as intervenções do
Pentágono por todo o lado, modera o impulso invasor para conter a deterioração
da competitividade econômica ianque. Num gesto de realismo, Donald Trump tomou
nota do fracasso bélico de George W. Bush e do revés econômico de Joe Biden. É
por isso que ensaia uma terceira via de moderação militar e reconfiguração
monetária-comercial. Ele sabe que a capacidade ofensiva dos Estados Unidos foi
drasticamente limitada por uma economia que detém 25% do PIB mundial (e não os
50% de 1945), em comparação com os 18% crescentes da China.
Donald Trump exacerba o léxico
intervencionista diante dos adversários externos. Tal como seus antecessores
contemporâneos, ele precisa contrapor o declínio econômico com uma grande
exibição do poder geopolítico-militar que seu país conserva. Mas o magnata sabe
que a compensação bélica das carências econômicas agrava as tensões entre os
setores militaristas e produtivistas do establishment. Os
belicistas tendem a promover campanhas destrutivas a todo o custo, que afetam o
orçamento do Estado e prejudicam a competitividade das empresas. Donald Trump
navega entre os dois setores, fortalecendo o ressurgimento da economia com
fórmulas protecionistas. Encoraja o gasto com armamentos, mas limita as guerras
e procura limitar o efeito negativo do gigantismo bélico sobre a produtividade.
A hipertrofia militar imposta pelo Pentágono é uma doença incurável de que
sofre a economia americana há muito tempo e que o magnata não pode atenuar.
·
Tensões locais
As contradições internas que afetam o projeto
protecionista são tão amplas como as tensões externas. Representam um efeito
inflacionário como ameaça mais imediata. As tarifas aduaneiras encarecerão as
mercadorias pela simples introdução de um custo adicional aos produtos
importados. Este efeito será significativo, tanto nos gêneros alimentícios
básicos como nos produtos mais elaborados. O México fornece mais de 60% dos
nutrientes frescos, por exemplo, e estima-se que uma tarifa de 25% sobre os
automóveis fabricados neste país (ou no Canadá) aumentaria o preço final de
cada unidade em 3.000 dólares. Donald Trump saudou recentemente a mudança da
Honda, disposta a fabricar seu novo Civic em Indiana, em vez de Guanajuato. Mas
essa mudança aumentaria o custo médio de cada automóvel entre 3.000 e 10.000
dólares (Cason; Brooks, 2025). É verdade que a inflação também poderia
contribuir para a redução do valor real da dívida, mas seu impacto na economia
como um todo seria muito maior do que a diminuição do passivo. Todos os
analistas concordam em indicar o efeito recessivo da guinada protecionista, que
poderia provocar uma contração de 1,5 ou 2 pontos percentuais do PIB. A
retração do nível de atividade, que estava fora das previsões econômicas, surge
como uma grande probabilidade em curto prazo.
Esta perspectiva tensiona as relações de
Donald Trump com a Reserva Federal, que resiste à redução das taxas de juro. O
potentado é favorável a essa diminuição para contrapor a provável queda da
produção, do consumo e do emprego. O colapso dos mercados, desencadeada pelo
anúncio de sua tabela protecionista, agravou este cenário sombrio e as
consequentes disputas entre o presidente e o chefe da Reserva Federal. Donald
Trump mantém também a batalha com os setores globalistas, que defendem os
interesses das empresas e bancos mais internacionalizados. A elite de Davos
está desprestigiada por seus fracassos, mas aguarda a oportunidade de retomar a
ofensiva. Se os resultados da guinada protecionista forem negativos, esse
contragolpe irromperá com força e colocará os democratas na corrida para as
eleições intermediárias de 2026. O chefe da Casa Branca cercou-se de
empresários em ascensão (tubarões), que litigam com seus pares do espectro
tradicional (falcões). O establishment deu luz verde a seu
projeto, mas esperava tarifas moderadas e um comportamento mais próximo da
cautela do primeiro mandato. A agitação atual leva-os a exigir o fim da
investida presidencial. Os bilionários estão irritados com a forte redução do
seu patrimônio provocada pelo colapso dos mercados. As tensões estendem-se ao
próprio entorno do magnata, que tem que arbitrar entre protecionistas extremos
(Navarro) e funcionários com investimentos no exterior (Musk). O próprio plano
de controle tarifário conduz, além disso, à introdução de um emaranhado de
regulamentações, o que colide com o desmantelamento burocrático prometido pela
nova administração (Malacalza, 2025). Os inúmeros conflitos com que Trump se
defronta supera de longe os que ele pode resolver.
·
Trajetórias, ambições e
resistências
É correto classificar Donald Trump como um
lúmpen-capitalista, no sentido que Marx deu aos especuladores financeiros da
classe alta envolvidos em múltiplas fraudes. A trajetória do magnata reúne
todos os ingredientes deste padrão, dado o número de falcatruas, evasões
fiscais, falências forçadas, negócios com a máfia e lavagem de dinheiro que
marcaram sua carreira empresarial. Cercou-se de personagens da mesma laia, com
prontuários pesados no universo das cavernas financeiras (Farber, 2018). Mas
este itinerário pessoal não tipificou sua primeira administração, nem define
seu mandato atual. Donald Trump atua como representante de setores capitalistas
muito relevantes e lidera uma administração baseada na coalizão de grupos
empresariais americanistas, com empresas digitais que desertaram do globalismo.
Apoia-se no setor siderúrgico, no complexo industrial-militar, na fração
conservadora do poder financeiro e em empresas voltadas para o mercado interno,
que foram castigadas pela concorrência chinesa (Merino; Morgenfeld; Aparicio,
2023: 21-78). Donald Trump conquistou o atual mandato com o apoio de uma
plutocracia digital, que arquivou suas preferências pelos democratas. Os cinco
gigantes da informática formam agora o setor preponderante do capitalismo
estadunidense, que precisa da belicosidade trumpista para enfrentar os rivais
asiáticos.
Mais controverso é o significado do novo
poder político que os bilionários digitais obtêm da mão de Donald Trump. Eles
já têm o público acorrentado às suas redes e mantêm os clientes amarrados a um
emaranhado de algoritmos. Esse vínculo permite que eles ampliem sua
intermediação lucrativa na publicidade e nas vendas. Agora eles tentam projetar
esse poder em outra escala, através da gestão direta de várias áreas do
governo. Estes grupos formam poderosos oligopólios, que alguns olhares
identificam com a depredação e captura da renda. Por isso, usam o termo tecnofeudais para
conceituar sua atividade (Durand, 2025). Outras abordagens rejeitam essa
denominação, que dilui o sentido capitalista de empresas nitidamente inseridas
nos circuitos da acumulação. Sua liderança tecnológica permite-lhes usufruir da
mais-valia extraordinária que absorvem do resto do sistema. Não se desenrola no
âmbito das rendas naturais, nem obtém lucros através da coação extraeconômica
(Morozov, 2023). Mas as duas visões coincidem em ressaltar o inédito manejo da
vida social, que obteve um setor levado a capturar porções significativas do
poder político. Com o amparo de Donald Trump, buscam neutralizar, antes de
tudo, qualquer tentativa de regulação estatal das redes.
A plutocracia digital está embarcada na
gestão direta das alavancas do Estado, para moldar a atividade política a seu
serviço. Alguns autores utilizam a noção de “capitalismo político” para
singularizar essa apropriação. Observam o início do regime de acumulação,
baseado na nova dependência dos negócios de um poder político, que define
beneficiários com maior discricionariedade fiscal do que no passado. O
trumpismo poderia atuar como artífice dessas transformações no cume do
capitalismo (Riley; Brenner, 2023). Mas sua deriva autoritária já incentivou
também a resistência nas ruas. Sob um lema unificado e mobilizador (“Tire suas
mãos”), 150 organizações promoveram um bem sucedido protesto massivo em mil
cidades. Começaram a retomar a resposta a partir de baixo, que Trump enfrentou
em seu primeiro mandato e conseguiu atenuar na estreia de seu retorno. Em
grandes atos posteriores, percebe-se a rejeição do magnata e dos oligarcas que
o cercam. As marchas canalizam o descontentamento com o corte dos direitos
democráticos, que promove o ocupante da Casa Branca. Se a erosão da
legitimidade interna de Donald Trump somar-se à resistência que suscita no
mundo, estarão abertos os caminhos para uma grande batalha contra seu governo.
Dessa convergência poderia emergir uma alternativa que começasse a substituir a
opressão imperial pela irmandade dos povos.
Fonte: Por Claudio Katz, em A Terra é Redonda

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