quarta-feira, 30 de abril de 2025

Pepe Escobar: China, Hong Kong e a Arte de Piscar

Então, como seria de se prever, o Capitão Caos piscou primeiro. Mesmo que ele – e seu vasto circo midiático – jamais venham a admitir esse fato.

Tudo começou com as “isenções às tarifas” – de smartphones e computadores a peças de automóveis – sobre produtos importados da China. Vieram então os vazamentos cuidadosamente orquestrados implicando que as tarifas “poderiam” ser reduzidas para uma faixa entre 50% e 65%. E, por fim, a sucinta admissão de que, caso não haja acordo, um “número tarifário” será determinado de forma unilateral. 

O Ministério do Comércio da China não perdoou. “Tentar negociar ignorando os interesses dos demais com vistas a ganhos temporários é como barganhar com um tigre para que ele entregue sua pele – isso só terá o efeito contrário ao desejado”.  

E ficou ainda mais feroz. O Ministério afirmou peremptoriamente que as alegações do Trump 2.0 quanto a progressos nas negociações bilaterais não têm “qualquer base factual – expondo o Presidente dos Estados Unidos como criador de fake news.

Tigres ardendo, ardendo flamejantes: a imagem não remete ao poeta superstar  William Blake, mas sim à lendária descrição de Mao, dos Estados Unidos como um “tigre de papel” – uma lembrança que me veio repetidas vezes nesta última semana em Xangai. Se o Império dos Estados Unidos já era um tigre de papel na década de 60, afirmam os chineses, imagine-se agora.

E a dor vai piorar, não apenas para o tigre de papel: qualquer manobra suspeita por parte de governos tchutchucas e vassalos às custas dos interesses chineses simplesmente não será tolerada por Pequim.

Na semana passada, em Xangai fui repetidamente lembrado – por acadêmicos e gente do meio empresarial – que o Chilique Tarifário de Trump armamentizado vai muito além da China: trata-se de uma ofensa desesperada ordenada pelas classes dominantes dos Estados Unidos contra um concorrente que faz eles tremerem de medo.

As melhores mentes analíticas chinesas sabem exatamente o que vem acontecendo em Washington. Vejam, como exemplo, este ensaio originalmente publicado pela influente revista Cultural Horizon que disseca a “estrutura de poder triangular” do Trump 2.0.

Temos o todo-poderoso Trump formando um “super-establishment”; a política monetária do Silicon Valley representada por Elon Musk; e a nova elite de direita representada pelo vice-presidente J.D. Vance. Resultado final: um sistema de governança que é quase paralelo ao governo federal. 

Os chihuahuas europeus – pegos no fogo cruzado do  Trump 2.0 – são simplesmente incapazes de uma conceituação tão sintética e precisa. 

·        O tigre de papel encontra o dragão flamejante 

O que um mergulho profundo em Xangai revelou é que a China recebeu do Trump 2.0 uma oportunidade terra-rara de consolidar sua iniciativa estratégica ao solidificar seu papel de líder do Sul Global/Maioria Global que, ao mesmo tempo, administra o risco de uma nova Guerra Fria. 

Chamemos a isso de uma jogada Sun Tzu capaz de paralisar o Império. O Professor Zhang Weiwei, que tive o prazer de conhecer em um seminário em Xangai sobre a parceria estratégica Rússia-China, certamente concordaria.

A China avança em todo o espectro O primeiro-ministro chinês Li Qiang escreveu uma carta ao primeiro-ministro japonês  Shigeru Ishibe conclamando a uma iniciativa conjunta e imediata visando a contrabalançar a  demência tarifária.

A principal mensagem do Presidente Xi em sua viagem ao Sudeste Asiático, na semana passada, foi a de reagir às “intimidações unilaterais”. 

Xi, de maneira hábil, circulou entre a Malásia  – que atualmente ocupa a presidência rotativa da ASEAN, sempre evitando tomar partido – e o Vietnã – com sua “diplomacia de bambu”, que nunca se arrisca a optar entre os Estados Unidos e a China. 

Xi, de forma direta, disse ao primeiro-ministro da Malásia Anwar Ibrahim: “Temos que salvaguardar as brilhantes perspectivas de nossa família asiática”. Tradução: devemos criar uma esfera de influência exclusiva próxima à “comunidade de destino compartilhado” que, no entanto, não inclua potências externas como os Estados Unidos. 

Paralelamente, vem ocorrendo um acalorado debate  – de Xangai a Hong Kong – que transcende o papel da China como a fábrica do mundo: o importante agora é como redirecionar para o mercado interno parte da estarrecedora capacidade manufatureira da China. 

É claro que há problemas – como a falta de poder aquisitivo de muitos consumidores internos chineses, uma vez que o grosso da renda nacional chinesa é direcionada a investimentos de ativos fixos. Grande parte da população rural idosa sobrevive com uma pensão mensal de cerca de 30 dólares, e a hora trabalhada na economia informal estagnou em cerca de 4 dólares. 

Enquanto isso, em diversas frentes de alta tecnologia, a China acaba de construir o trem de alta velocidade mais rápido do planeta: 400km/h, que em breve ligará Pequim a Xangai, e já vem recebendo encomendas da aeronave comercial de fuselagem larga C919. Além de ter criado o primeiro reator nuclear alimentado a tório. Tradução: quantidades ilimitadas de energia limpa e barata passaram a estar disponíveis.

·        O jeito mafioso de fazer negócios 

Hong Kong é um caso muito especial. Os executivos do HSBC, por exemplo, preocupam-se com um possível desacoplamento entre os Estados Unidos e a China – e se perguntam se Hong Kong sobreviveria sem o comércio dos Estados Unidos.  

Sim, sobreviveria. Os Estados Unidos são o terceiro maior parceiro comercial de Hong Kong, mas as importações e exportações com os Estados Unidos representam apenas 6,4% e 4% respectivamente de seu total global, incluindo o transbordo das mercadorias indo e vindo da China continental.  

Hong Kong é um nó logístico e um porto livre de classe mundial. Enquanto o Trump 2.0 não proibir o comércio com Hong Kong – bem, tudo pode acontecer – as importações não devem ser afetadas. Seja como for, o grosso das exportações de Hong Kong  – eletrônicos, produtos de luxo, roupas, brinquedos – pode, facilmente, encontrar mercados alternativos no Sudeste Asiático, no Oeste Asiático e na Europa. 

A questão crucial é que mais da metade do comércio de Hong Kong é com a China continental. E o mais importante é que a China conseguiria sobreviver sem problemas sem o comércio com os Estados Unidos. Pequim vem se preparando cuidadosamente para isso desde o Trump 1.0. 

De Xangai a Hong Kong, as melhores mentes analíticas estão afinadas com o inestimável Michael Hudson, que insiste repetidamente que “os Estados Unidos são o único país do mundo que armamentiza seu comércio externo, sua moeda, o dólar, e todo o sistema financeiro internacional, e que tratou todas as relações econômicas de forma antagonística, a fim de também armamentizá-las.

Em uma China autoconfiante e proficiente em alta tecnologia, desde acadêmicos e gente do meio empresarial até vendedores de rua de macarrão puxado e de xiao long bao entendem perfeitamente que o Império do Caos, em sua sanha de “isolar” a China, consegue apenas isolar a si mesmo (e a seus  chihuahuas).

Além do mais, é sempre uma alegria ver Michael Hudson se referir à mesma síndrome do “tigre de papel” que vi em Xangai nesses últimos dias: “Bem, hoje, a América, em termos financeiros, transformou-se em um tigre de papel. Ela, na verdade, não tem nada a oferecer além da ameaça de tarifas, a ameaça de um grande e súbito transtorno de todos os padrões de comércio criados nas últimas décadas”. 

Em Xangai, ouvi uma série de contestações implacáveis ao chamado “Plano Miran” – o artigo publicado em novembro último pelo consultor econômico de Trump propondo-se a “reestruturar o sistema global de comércio”. Miran é o cérebro por trás do acordo Mar-a-Lago – cuja rationale é enfraquecer o dólar ao forçar as maiores economias – da China ao Japão e União Europeia - a vender  seus ativos em dólar americano e trocar títulos de curto-prazo do Tesouro dos Estados Unidos  por títulos de 100 anos com juros zero. 

A brilhante ideia de Miran se resume a supor que os países têm apenas duas opções:

1. aceitar mansamente essas tarifas estadunidenses sem retaliação. 

2. passar cheques ao Tesouro dos Estados Unidos.

Zhao Xijun, vice-reitor do Instituto Chinês de Pesquisa sobre Mercados de Capital da Universidade de Renmin, destruiu o esquema em poucas palavras: transferir dinheiro ao Tesouro dos Estados Unidos desse modo é como “coletar dinheiro de proteção nas ruas”. Tradução: esse é o método da Máfia, um método violento e dominador camuflado por trás da elevada justificativa de fornecer bens públicos”.  

Enquanto isso, no Grande Tabuleiro, Pequim continua trabalhando firmemente lado-a-lado à Rússia, visando a uma arquitetura de segurança eurasiana ancorada em um equilíbrio de poderes: trata-se do novo triângulo de Primakov (RIC – Rússia, Irã e China).

Os principais membros dos BRICS, Rússia e China, não permitirão que o Império ataque o colega de BRICS Irã.  E esse apoio pode tomar diversas formas. Por exemplo: mais sanções energéticas impostas pelo Império ao Irã? A China aumentará as exportações via Malásia e investirá ainda mais pesadamente na infraestrutura iraniana, unindo-se à Rússia com seu Corredor Internacional de Transportes Norte-Sul (CITNS).  

Resumindo: o Capitão Caos decididamente  não tem cartas na mão – cartas que, até os pinguins do Pacífico Sul sabem que são todas feitas na China.

¨      Empresas chinesas sinalizam redução de negócios com EUA

Quase 50% dentre mais de 1100 empresas chinesas que atuam com comércio exterior vão reduzir seus negócios com os Estados Unidos por conta da política tarifária imposta pelo presidente Donald Trump, segundo dados da agência de promoção de comércio exterior e investimentos da China.

A pesquisa elaborada pelo Conselho Chinês para a Promoção do Comércio Internacional destaca que 75,3% das empresas pesquisadas pretendem expandir seus negócios com os mercados emergentes, como forma de compensar a redução nas exportações para o mercado norte-americano.

Em entrevista coletiva, o porta-voz do conselho de promoção comercial, Zhao Ping, destacou que as frequentes mudanças na política tarifária norte-americana aumentaram de forma considerável a incerteza, dificultando o planejamento a longo prazo para os fabricantes chineses.

Diante disso, os exportadores chineses estão adotando outras estratégias, como a busca por novos mercados e a impulsão do mercado doméstico, “fortalecendo as cadeias de suprimentos e se adaptando às mudanças para superar os desafios atuais”, acrescentou Ping.

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Os esforços para expandir o engajamento internacional também estão se acelerando, já que o Conselho Chinês para a Promoção do Comércio Internacional organizou 184 delegações de empresários chineses para visitar e realizar intercâmbios com 45 países e regiões desde o início deste ano.

¨      China já troca soja dos EUA pela brasileira, e Trump tenta novas ameaças

O setor agrícola dos Estados Unidos já está sofrendo com o tarifaço de Donald Trump e está assistindo ao esvaziamento de suas exportações, como a soja e a carne. A China já iniciou uma ampla operação de substituição das compras da soja norte-americana pela brasileira.

Em abril, cerca de 40 navios de soja brasileira atracam no porto de Zhoushan, Ningbo, ao leste da China, em um toal de 700 mil toneladas de soja do Brasil. A quantidade é 32% superior em relação ao ano passado, e este é somente o início da reação chinesa ao tarifaço de Trump.

Os EUA, por outro lado, teve uma queda brusca: se na semana do dia 10 de abril, chegaram 72,8 mil toneladas de soja norte-americana, na semana passada foram somente 1,8 mil toneladas.

O mesmo ocorreu para a carne suína: de 12 mil toneladas inicialmente esperadas, a China comprou somente 5,8 mil toneladas na semana de 17 de abril: é a menor quantidade já adquirida pelo país e uma queda de 72% em comparação à semana anterior.

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De acordo com o pesquisador da Associação Chinesa de Comércio Internacional, Li Yong, ao jornal chinês Global Times, será inevitável para os agricultores dos EUA “perderem a participação de mercado para os concorrentes”.

“Seja para soja, carne suína ou bovina, a China pode encontrar amplos substitutos em outros exportadores agrícolas, como Brasil, Argentina e Austrália, cujas políticas comerciais são mais abertas do que as dos EUA”, afirmou.

<><> Trump usa negociações internacionais para tentar isolar a China

Ao mesmo tempo que as exportações do Brasil crescem com a China, Trump tem enfrentado a possível perda de mercado com mais ameaças e indicativos de retaliações.

Nas conversas sobre a possível redução das tarifas, os EUA têm dito que espera dos países um comportamento similar a de Trump junto a China, de impor barreiras comerciais.

Junto ao Brasil, por exemplo, estaria sendo negociado que se o país limitar a importação de aço chinês, eles poderiam dialogar sobre as taxas da venda do minério brasileiro aos EUA.

A ameaça estaria em vigor nas conversas entre auxiliares de Trump e do governo Lula. Em seu decreto no início do ano, nas tarifas sobre o aço chinês, Trump já havia criticado “as importações brasileiras de países com níveis significativos de sobrecapacidade, especificamente a China, que cresceram tremendamente nos últimos anos”.

As pressões dos EUA já pipocaram em Pequim, que reagiu, na última semana: o Ministério do Comércio da China disse que os países que negociarem acordos comerciais com os Estados Unidos “às custas dos interesses” serão retaliados.

“A China se opõe firmemente a qualquer parte que chegue a um acordo às custas dos interesses da China. Se isso acontecer, a China nunca aceitará e tomará resolutamente contramedidas de maneira recíproca”, afirmou o Ministério, em comunicado.

A fala se refere às pressões e ameaças de Donald Trump, que têm usado os pedidos de negociações dos demais países para impôr barreiras econômicas mundiais contra a China.

 

Fonte: Brasil 247/Jornal GGN

 

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