Roberto Amaral: 40 anos de reconstrução
democrática — avanços, riscos e o muito por fazer
A primeira leitura do quadro brasileiro de
nossos dias leva analistas da vida política a reduzir o avanço da
extrema-direita nativa a simples sintoma de uma tendência mundial, assim
desapartado do processo histórico nacional.
Ora, o fenômeno político não habita as
nuvens. Se a história fosse apenas isso, ela estaria morta, pois nada mais
haveria por fazer. A anomia política se alimenta nesse refrão, que, ademais,
pacífica a consciência dos que resistem ao combate.
É incontestável estarmos em face de fenômeno
(avanço fascista) que se espalha em plano mundial, como foi a emergência do
fascismo histórico nos anos 20 e 30 do século passado.
Mas esta não é a história toda, pois, ademais
de desconhecer as diferenças passadas e presentes das experiências fascistas
(determinadas pela diversidade histórica de cada país), desconhece também a
resistência antifascista diferenciada, levada a cabo de forma igualmente
diferenciada, segundo condições especificas.
Reduzir a emergência da onda fascista que nos
aflige a simples manifestação de um fenômeno mundial, exilado da realidade
brasileira, implica erro de método, e carrega consigo o risco de distorções
estratégicas graves, como insinuar, para os que nada fazem, que não há mesmo o
que fazer. E a história nos diz que a serpente de há muito escapou do ovo.
Todas as forças ideológicas fortes do século
passado – liberalismo, comunismo, fascismo– foram matrizes que conheceram o
traço das influências nacionais.
Entre nós, a extrema-direita/fascista teve
seu debut nos anos 30 do século passado, vestida de
integralismo, a versão cabocla de um autoritarismo que Plínio Salgado fôra
colher na Itália de Mussolini.
Esse fascismo e o getulismo, que afinal o
rejeitou, estreitaram relações no Estado Novo, caminhando para o rompimento sem
volta com o putsch de 1938.
A queda de Vargas em 1945 ensejou o ciclo
democrático, que aos trancos e barrancos chega a 1964, quando se instala a
ditadura militar que formalmente sai cena em 1985, abrindo caminho para
experiência democrática cunhada como Nova República.
A história não registra milagres, muito menos
o reino do acaso, e assim, os fatos não deveriam surpreender. Mas foi com
surpresa que recebemos os idos de 2013, anunciantes de um processo despercebido
pelos sismógrafos.
A ameaça fascista dava seus primeiros sinais
e o que se segue é história recente e conhecida: a difícil reeleição de Dilma
Roussef em 2014 e a transição da socialdemocracia para a direta, e, ao fim e ao
cabo, o golpe parlamentar de 2016, o vestibular da história que se segue.
A consolidação da irrupção fascista far-se-ia
conhecer com as eleições de 2018 e os quatro anos do capitão Bolsonaro. A
ascensão do fascismo caboclo fez-se segundo as regras do processo eleitoral,
que antes, nunca será exagerado lembrar, asfaltara os caminhos de Mussolini e
de Hitler.
A extrema-direita encontrou-se com o apoio
popular e se espalhou por diferentes setores da sociedade. Controla as duas
casas do congresso, os mais ricos e mais populosos Estados da Federação.
Este é o ponto de partida para compreendermos
a transição da sociedade brasileira, da aparente opção pelo progresso social
(insinuado pela sequência de governos progressistas) à realidade de um projeto
neofascista que ainda hoje comove parcelas significativas das grandes massas,
suas vítimas preferenciais no curto, no médio e no longo prazo.
Variadas são as teses demonstrativas, ora de
nosso substrato conservador-autoritário, ora do fracasso tanto dos neoliberais
quanto da centro-esquerda no enfrentamento dos problemas cruciais de nossas
populações.
No plano internacional, consideradas as
significativas diferenças entre os atores, é temeroso pensar na identificação
de uma causação.
Na cesta das possíveis condicionantes devem
constar a incapacidade de a socialdemocracia enfrentar os problemas colocados
pelo neoliberalismo, bem como o agravamento da disputa da hegemonia em mundo
que transita da unipolaridade para o multilateralismo, e que pode nos levar à
terceira guerra mundial, se já não estamos nela.
Não se trata, porém, a opção reacionária, de
raio em céu azul, senão de fenômeno recorrente mesmo em nossa história
imediata, como atesta a mais superficial leitura das dores políticas do século
passado, com seu rol de insurgências: o “Estado novo”, a ação integralista nos
anos 30, e amotinações, intentonas e sedições, golpes parlamentares e militares
e ditaduras, o regime de terror instalado em 1º de abril de 1964.
Não vimos ou nos recusamos a ver o que estava
sendo gestado em 2013 (por seu turno um ponto de referência sem autonomia
histórica), nem percebemos os avisos da difícil eleição de 2014, e muito menos
consideramos o processo de nossa formação, feitoria e depois colônia que se fez
país ainda sem povo, sem sociedade e sem nação, assim, sem projeto de ser, sem
um destino por perseguir.
Um império que conservou a estrutura
colonial, uma independência que não logrou a autonomia, uma república que
consagraria o governo da lavoura e o mandonismo dos régulos.
Recebemos o golpe de 2016 – um corte no
processo político que supúnhamos consolidado desde a redemocratização de
1985/1988–, como fato consumado, e chegamos aos tempos de hoje condenados ao
agrarismo primário-exportador de nossas origens coloniais, condenadas as
esquerdas ao papel de assistentes do processo social, porque não tivemos olhos
para ver a crise do trabalho e as alterações do processo social produtivo,
determinantes de novas relações econômicas e políticas.
Ignoramos o pano de fundo da história
contemporânea, e assim tivemos dificuldades, ainda não superadas, de
compreender os fatos dos quais deixamos de ser agentes.
Hipnotizados pela aparência do processo
político que sugeria o avanço das forças progressistas e a consolidação
democrática, não nos demos conta das implicações do desenvolvimento do
capitalismo financeiro em sua fase monopolista, desconsideramos a vitória
política do neoliberalismo, não cogitamos da dependência político-ideológica
das economias periféricas, e, em suas pegadas, não vimos o papel do
imperialismo, imprimindo o caráter das transformações geopolíticas, alterando o
xadrez de uma ordem internacional que se constituía à revelia dos axiomas
deterministas que nos diziam que o progresso social era uma das leis da
história.
Assim, não cuidamos do avanço do passado
sobre o presente, convencidos de que o futuro era uma certeza inexorável, mas a
história que nos prometeram na juventude parecia se afastar de nossas vistas,
assim como a linha do horizonte foge do navegador.
Aos trancos e barrancos, ao peso de muitas
derrotas, como a de 1964, e algumas vitórias, como a notável vitória eleitoral
de 2002, chegamos ao desastre de 2018, às dificuldades de 2022 e à intentona de
janeiro de 2023, para só agora nos darmos conta do processo regressista. De
todos os temores, o mais assustador é a perspectiva presente de avanço do
projeto neofascista.
Nada obstante os sonhos frustrados de antiga
esquerda que sonhou com uma aliança entre interesses de classe
irreconciliáveis, a burguesa aqui habitante se faz cega em face da nação, e vê,
no que supõe ser o povo, um empecilho aos seus interesses, por isso se embala
na sempre presente expectativa de uma ditadura que “ponha ordem no país”. Daí
conhecermos tantos golpes e tantas tentativas de golpes de Estado. A intentona
de 2023 não é um fato isolado e a história não terminou.
Com essa consciência, a classe dominante
brasileira, alienada e alienígena, construiu as forças armadas do Estado
brasileiro, seu braço forte instrumentalizado para fazer valer o mando de 1%
dos ricos e muito ricos sobre uma população de cerca de 212 milhões, dois
terços dos quais se podem contar como “condenados da terra”.
As forças armadas se supõem fruto delas
mesmas e se tornaram uma necessidade em face da concepção de país formada pelos
interesses dominantes. Desde o império foram moldadas para a sustentação da
ordem interna (antes o escravismo e o latifúndio, uma unidade), hoje o
capitalismo retardatário e dependente, cuja sobrevivência mais carece do
empenho repressivo quanto mais é iníquo.
Daí o desinteresse da classe dominante pela
independência industrial, pela autonomia política e econômica, o desinteresse
mesmo com as questões de segurança nacional; daí a vinculação da caserna ao
papel fundamental da defesa dos interesses do capitalismo nos planos nacional e
planetário, o que nos vincula aos interesses e aos jogos do imperialismo, mesmo
em sua atual, marcada por uma decadência aparentemente sem recuo.
Essa subordinação desvincula o país de
qualquer expectativa de autonomia, econômica, política, científica, ideológica.
Assim, talvez se explique o mando de uma
classe dominante destravada do desenvolvimento nacional, e, no entanto,
governante e crescentemente internacionalizada, na medida em que é mais e mais
financeira, como exemplifica a Faria Lima, o altar de uma burguesia
anti-industrialista e antidesenvolvimentista, e, assim, mais dependente de
Washington e do Pentágono, de Wall Street e da City de Londres.
No império escravagista, na república em seu
capitalismo de periferia, a natureza do mando não se altera.
Essa burguesia alimenta seus interesses na
especulação do grande capital, e se associa ao agronegócio-primário-exportador,
que é, por definição, uma dependência do mercado internacional.
Somos, no século da inteligência artificial,
o que sempre fomos: uma economia dependente.
Saem da pauta as pedras e o ouro, e nossa
balança comercial continua à mercê da exportação de produtos primários com o
mínimo de valor agregado; exportamos minério in natura e
recebemos de volta ligas de aço.
Importamos manufaturas, mas exportamos o
frango, a carne, a soja, o feijão, o milho, as matérias-primas requeridas pela
Europa esgotada, ou por uns EUA que protegem suas reservas com a imposição de
taxas alfandegárias predatórias.
Saiu da pauta o pau-brasil, extinto, mas
segue a depredação: vão-se as matas em forma de commodities e,
liderando as pautas de exportação, escreve-se uma extensa listagem de grãos e
alimentos que escasseiam no mercado interno, dando sua inefável contribuição
para o processo inflacionário que se instalou com pompa e circunstância na mesa
dos pobres.
Enquanto quase 20 milhões de pessoas passam
fome ou são mal alimentadas, somos um dos maiores, senão o maior exportador de
proteínas do mundo.
É esse o pano de fundo que explica nossa
história de hoje. Mas há espaço para o registro da esperança.
Independente de nossas limitações e de nossas
circunstâncias, de povo e país, o processo social avança, e o sintoma mais
claro é a decisão política de, finalmente, impor-se algum recesso à
conciliação, nosso mal de origem que sufoca as expectativas de progresso,
porque sempre transacionada pela classe dominante.
Seu objetivo é blindar o statu quo,
espancar a ruptura e impedir a mudança. São hoje os ventos soprados por um
insuspeitado STF, e pela exposição de corpo inteiro do estágio de decomposição
a que chegaram as forças armadas, pelo braço de seus generais.
São, porém, apesar de notáveis, avanços
circunscritos ao campo da politica e da institucionalidade, carentes de
consolidação, porque até aqui se fazem à margem da vida social.
É preocupante a ausência da vontade nacional,
que, assim, renuncia ao papel de sujeito histórico, exatamente quando o que
está em jogo é a sobrevivência da democracia, ameaçada pelo fascismo, que já
nos disse a que veio e o que pretende.
Já é hora de nos perguntarmos quais
“circunstâncias e condições” respondem por esse mostrengo responsável pela
produção nativa do bolsonarismo, o chorume do baixo-clero político-parlamentar
que, no entanto, comanda o Congresso e dita as regras com as quais, para
sobrevier, nosso governo, nascido das urnas e na contestação à ordem
protofascista, é ungido a negociar, consagrando a má herança da conciliação
pelo alto.
O antídoto à anomia é a organização da
sociedade.
Fonte: Viomundo

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