No Brasil onde faltam padres, quem são os
jovens que atendem o 'chamado' ao sacerdócio
Junior Henrique da Silva, de 31 anos, seguia
uma carreira sólida em uma escola da rede particular de Belo Horizonte (MG),
como professor e coordenador.
Em 2022, porém, o mineiro de Raposos (MG)
largou o emprego e terminou um noivado. Depois de duas desistências, ele enfim
compreendeu o "chamado".
Tinha sido admitido como seminarista para
realizar o sonho de se tornar padre.
Kaik Ribas, de 28 anos, estudava jornalismo
na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), mas sentia que
algo não caminhava como planejado.
No fim da graduação, resolveu tentar o
caminho que o atraía desde a infância. Após três anos de encontros vocacionais
— uma espécie de "classificatória" para os candidatos ao seminário,
normalmente com duração de um ano —, ele foi aceito para a formação
eclesiástica.
Hoje, ambos são colegas no Seminário Coração
Eucarístico de Jesus, da Arquidiocese de Belo Horizonte, atualmente com 60
estudantes, residentes no edifício inaugurado em 1923, na região noroeste da
capital mineira.
O período que antecede a batina dura um total
de oito anos, incluindo a fase introdutória, chamada de propedêutico, e
graduações em filosofia e teologia. Além disso, é composto por uma rígida
rotina e pelas renúncias, entre as quais a mais famosa é o celibato.
Eles representam a nova cara da Igreja
Católica, que atravessa um momento decisivo com a morte do papa Francisco e a
escolha de seu sucessor.
O novo pontífice guiará a Igreja em meio a
uma mudança de perfil religioso no Brasil e diante desafios como a perda de
fieis e a falta de padres.
Os dados mais recentes sobre os seminaristas,
publicados em 2021 pela Regional Oeste 1 da Confederação Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), indicavam um universo de 8 mil candidatos a padres no Brasil.
Destes, 5,3 mil eram diocesanos (formados nas
dioceses, as administrações regionais da Igreja, como as arquidioceses,
responsáveis por paróquias locais — atualmente, são 278 as dioceses espalhadas
pelo Brasil) e 2,7 mil, religiosos (ligados a congregações como franciscanos e
jesuítas).
A CNBB afirma que os números estão defasados,
mas não informou qual a contagem atual.
Ao menos no âmbito global, a Igreja Católica
tem registrado uma queda constante nessa estatística.
De acordo com o Anuário Pontifício 2025,
publicado em março e que atualiza os dados gerais do mundo católico, o total de
seminaristas no mundo passou de 108,4 mil para 106,4 mil de 2022 para 2023,
último ano registrado no documento.
Mas a tendência já vem de mais tempo —
segundo o anuário, há uma "diminuição ininterrupta desde 2012". Para
se ter uma ideia, em 2019, eram 114 mil.
Segundo a publicação, o Brasil continuaria
sendo o maior país católico do mundo, responsável por cerca de 13% dos fiéis do
planeta, um contingente aproximado de 182 milhões de pessoas.
Outros levantamentos, porém, colocam em xeque
esse número. De acordo com uma pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada em
2020, 50% dos brasileiros se declaravam católicos (cerca de 106 milhões na
contagem populacional do Censo 2022) e 31% se diziam evangélicos.
Já uma projeção da consultoria Mar Asset
Management, feita a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) e da Receita Federal e publicada em fevereiro deste ano,
aponta que, em outubro de 2026, 36% dos brasileiros serão evangélicos.
Esse quadro, porém, não indica uma crise na
formação católica, ressalta o padre Evandro Campos, reitor do seminário da
Arquidiocese de Belo Horizonte.
A entidade responde atualmente por cerca de
650 padres, em 300 paróquias distribuídas por 28 municípios da região
metropolitana.
Os dados mais recentes da CNBB, de 2023,
apontam para um total de 22,1 mil padres no Brasil.
É um número que também está em queda, de
acordo com um estudo divulgado em 2018 pelo Centro de Estatísticas Religiosas e
Investigações Sociais (Ceris), fundação hoje extinta que era vinculada à CNBB.
Havia então 27,3 mil padres no país — o que
correspondia à época a um padre para 7,8 mil habitantes. Na Itália, em
comparação, havia um para cada mil.
"A Igreja vem conseguindo responder acolhendo
novos jovens", diz Campos.
Segundo ele, há um trabalho feito diretamente
com os párocos, no sentido de identificar possíveis candidatos ao sacerdócio.
"A partir daí, vamos fazendo um
acompanhamento individual e de grupo, durante um ano — e, nesse processo, temos
tido uma presença grande de jovens", afirma Campos.
Em alguns locais, onde a situação é crítica,
como a região da Amazônia, a Igreja tem trazido sacerdotes até mesmo da Índia
para tentar acabar com os "desertos de padres" na floresta.
• O
'chamado'
A decisão pelo sacerdócio é conhecida como
"chamado". Ocorre em diversas fases, durante as quais o candidato vai
reforçando a certeza pelo caminho escolhido.
Normalmente, começa com um envolvimento na
paróquia, durante a infância, como coroinha, e mais tarde, participando de
pastorais, retiros espirituais e atividades no dia a dia da igreja, junto ao
padre local.
E é o padre quem pode indicar os jovens aos
responsáveis pelo seminário para o processo de encontros vocacionais. Já a
partir dessa fase, o futuro seminarista é acompanhado de perto pela equipe da
instituição escolhida, incluindo psicólogos.
"Essa decisão é muito exigente, o jovem
não pode ficar sozinho nela. Por isso, há toda uma rede de apoio para ajudá-lo
a tomar coragem para decidir, para que ele possa dar o 'sim' ao
'chamado'", explica o padre Evandro Campos.
Ele acrescenta que os acompanhamentos
espirituais e psicológicos continuam não só durante o seminário, mas também no
exercício da batina, nas paróquias, depois da formação.
Junior Henrique começou a se envolver na vida
paroquial aos 4 anos de idade, como coroinha.
"Quando eu era pequeno e as pessoas me
perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, eu respondia que queria ser
padre e professor. Eram meus dois grandes desejos", conta ele.
"Por incrível que pareça, fui professor.
Agora, estou caminhando para ser padre."
Aos 17 anos, Junior procurou o seminário de
Belo Horizonte. Porém, durante os encontros paroquiais, percebeu que não era o
momento certo.
Voltou mais tarde, em 2018, já como
professor, mas desistiu novamente, o que gerou uma enorme inquietação. Foi aí
que veio o "chamado".
"Eu me sentia realizado no que fazia,
mas faltava algo. Existia um vazio. O encantamento pela igreja era maior",
descreve.
O início da vida como seminarista acontece só
quatro anos depois. No entanto, para ele, tudo ainda é parte de um
amadurecimento.
"Tenho plena consciência de que eu estou
aqui, não com a certeza de ser padre, mas de passar por esse processo."
Kaik, por sua vez, vem de uma família que já
conta com três padres formados. O despertar para o catolicismo veio também
enquanto criança, quando, nos fins de semana, ia para a casa da avó, em
Contagem (MG).
"Eu a acompanhava saindo para rezar nas
casas das pessoas, e isso me instigava. Com meus primos, eu brincava de
celebrar a missa. Fui criando esse gosto", lembra ele.
Na adolescência, porém, acabou se
distanciando das missas e, levado por conhecidos, chegou a frequentar os cultos
evangélicos da Igreja Maranata, mas não se adaptou e voltou ao catolicismo,
dessa vez com mais afinco.
Alguns anos depois, na faculdade de
jornalismo, Kaik se sentia estranho fora da igreja. Começou com os encontros
vocacionais.
"Geralmente dura um ano, após isso, ou a
gente entra, ou não entra [no seminário]. Fiquei três anos", resume.
"O padre formador me disse que fui muito
corajoso porque não desisti. Mas era algo que eu queria tanto para minha
vida."
A convivência com outras religiões também faz
parte da trajetória de Junior Henrique, que tem familiares evangélicos e
espíritas, e do próprio padre Evandro — sua mãe é adepta da Igreja
Prebisteriana desde que ele tinha 6 anos.
• 'Não
estamos deslocados da sociedade'
Um dia normal no Seminário Arquidiocesano
Coração Eucarístico de Jesus, em Belo Horizonte, começa de madrugada, por volta
das 5h15, quando os estudantes despertam para a primeira oração, às 6h.
Na sequência, todos se reúnem para o café da
manhã. Depois, seguem para a PUC Minas, universidade administrada por uma
organização católica, onde cursam teologia e filosofia.
Às 12h40, se juntam novamente para o almoço,
que termina pontualmente às 13h10, com uma oração conjunta.
Os seminaristas são liberados para atividades
individuais até às 15h30, horário do café da tarde, que termina às 16h.
Às 18h, participam da Santa Missa, com
exceção das sextas-feiras, quando há folga na parte da tarde.
Nos fins de semana, é vez do estágio, quando
os candidatos ao sacerdócio atuam auxiliando os párocos distribuídos por toda a
Arquidiocese de Belo Horizonte.
Apesar de rígida, a rotina lá dentro tem seus
respiros. "Não estamos deslocados da sociedade. Temos academia aqui
dentro, área de acupuntura, pilates, mesa de pingue-pongue, até cadeira de
massagem. E os psicólogos, que também estão à nossa disposição", diz Kaik.
Não há impedimentos ao contato com a família,
que pode visitá-los no seminário.
Também há encontros regulares entre os
seminaristas para socialização, em que participam também os membros das casas
paroquiais de Belo Horizonte, que recebem seminaristas de outros locais, como
do interior do Estado ou de outras regiões no país, para complementarem a
formação com aulas de teologia, por exemplo.
Além disso, os seminaristas são incentivados
à prática esportiva e cultural, dentro e fora do seminário.
Nos murais de recado, sugestões de filmes em
cartaz, exposições interessantes na cidade, entre outras coisas, funcionam como
uma agenda para que eles tenham uma vida fora do seminário.
O celibato é outro aspecto que acompanha os
pretendentes à batina desde a entrada no seminário.
"As pessoas acham que isso é um
empecilho, a nossa maior dificuldade. Só que vai acontecendo com
naturalidade", afirma Junior Henrique.
"Pode ser que talvez um ou outro
[seminarista], quando entre, tenha mais dificuldades. Mas o próprio seminário
vai nos ajudando a enfrentar isso."
Segundo ele, a questão do celibato é
trabalhada desde o início, nos encontros com psicólogas e na orientação
espiritual.
"Estamos aqui por liberdade, ninguém nos
obrigou", complementa Kaik.
"As pessoas tendem a achar que os
problemas da igreja, por exemplo, o suicídio de padres ou a pedofilia, vão ser
resolvidos com a liberação do matrimônio dos padres. Se fosse assim, todos os
padres estariam na praça do Vaticano com faixas levantadas dizendo 'Queremos
casar'. Não é essa a solução."
Em março de 2023, o papa Francisco revelou a
possibilidade de rever o celibato sacerdotal na Igreja Católica, afirmando não
haver contradição se um padre quiser se casar.
A declaração, no entanto, não teve outros
desdobramentos oficiais. Apesar de não ser um dogma, a regra vigora desde o
século 11.
• O
novo perfil dos seminaristas
Até a primeira metade do século passado, era
comum que famílias enviassem os filhos, ainda crianças, para os seminários
católicos.
Era uma forma de garantir a educação de
qualidade, à época restrita aos grandes centros urbanos, e também a segurança
financeira, com uma carreira sólida no sacerdócio.
De acordo com o historiador Edson Claiton
Guedes, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi o
Concílio Vaticano 2º, finalizado em 1965, que mudou essa tendência, com a
recomendação para que a Igreja admitisse seminaristas diocesanos já na
maioridade.
"As pessoas hoje que se sentem chamadas
a ser padres vêm muito mais das grandes cidades, não é mais aquela figura do
menino, que estava no interior e entrava para a religião para ser aceito na
sociedade", diz Guedes, que foi seminarista e padre por 20 anos, da ordem
dos capuchinhos.
"Agora, é alguém que já vive nesse
ambiente religioso e de família, católica."
Segundo ele, essa tendência é um reflexo da
própria mudança no quadro do país, com a população passando de maioria rural
para urbana e um maior acesso à educação de qualidade.
No entanto, o historiador vê, sim, uma
dificuldade com a formação de novos padres.
"O número de padres não dá conta da
quantidade de católicos. A igreja está muito apegada a valores tradicionalistas
do passado, que ela mesmo forjou", diz Guedes.
"Não aceitar homens casados, por
exemplo, está só na Igreja Católica de rito latino — nas ortodoxas e de rito
oriental, isso é liberado. Tem também questão das mulheres, há uma resistência
muito grande para liberar freiras de se rezar a missa. Isso poderia resolver
parte do problema."
O teólogo João Virgílio Tagliavini, doutor em
Educação e professor emérito da Universidade Federal de São Carlos (UFScar),
acredita que o perfil dos novos seminaristas tem se destacado por ser mais
conservador.
"Eles tendem a valorizar a liturgia
tradicional, em alguns casos, até com a missa tridentina, em latim",
afirma o autor de Você tem que ser padre: entre o chamado divino e a imposição
sociocultural da vocação sacerdotal, cuja base são pesquisas junto a seminários
no Brasil.
Tagliavini também foi seminarista — entrou
aos 12 anos no internato e se formou padre, mas largou a batina, segundo ele,
por causa de uma "guinada à direita" da Igreja Católica a partir do
Concílio 2º, o que afastou os valores da Teologia da Libertação, corrente
surgida nos anos 1960 na América Latina que defendia causas sociais e se
posicionava contra a violência de Estado das ditaduras de direita da região,
com a qual ele se identificava.
"Com esse movimento, as estruturas mais
progressistas da igreja foram fechadas e abriu-se o espaço para grupos
ultraconservadores, a Opus Dei, ou figuras como o frei Gilson", comenta
Tagliavini.
Citado por Tagliavini, frei Gilson representa
a ala criticada pelo teólogo. O sacerdote tem cerca de 7 milhões de seguidores
no YouTube e vem atraindo apoio da direita e críticas da esquerda por seu
posicionamento.
Nas missas, não é raro ouvi-lo pregando
contra o empoderamento feminino, a homossexualidade, o aborto e o comunismo.
Já Guedes enxerga a figura dos padres
influencers mais como um efeito natural, resultado de uma necessidade dos meios
de comunicação de tratarem dos assuntos religiosos.
"Então, a [mídia] precisa ter alguém
para fazer a ponte desse mundo, busca quem tenha essa vocação, e temos vários
padres nesse quesito", analisa o historiador.
"Tem um lado do frei Gilson, que é a
figura de uma igreja conservadora, tradicional; tem o do padre Júlio
Lancelotti, mais voltado à questão social; tem o padre Fábio de Melo, o cara
jovem e descolado."
Guedes e Tagliavini concordam que a figura do
papa Francisco, visto como um progressista no contexto da Igreja Católica, não
foi capaz de mudar as diretrizes do Vaticano. No entanto, eles avaliam que o
carisma de Francisco ajudou a mobilizar fiéis.
Para o padre Evandro Campos, a popularidade
de Francisco reflete também a força da Igreja. Ele lembra um levantamento
recente, que mostra que, entre os eventos realizados na praia de Copacabana, a
Jornada Mundial da Juventude, com a presença de Francisco, em 2013, foi a que
teve maior público – 3,6 milhões, mais que o dobro que assistiu ao show de
Madonna em em 2024 (1,6 milhão). "Um fenômeno", diz Campos.
Para o seminarista Junior Henrique, Francisco
fez um pontificado de "renovação evangélica e coragem pastoral".
"Vimos Francisco batendo na tecla do
problema dos imigrantes, não só porque a Igreja quer intervir no lado político,
mas porque a Igreja somos nós", diz Junior.
"As pessoas criticam, mas nós, seres
humanos, somos seres de política. Como vamos cuidar de nós se não conseguimos
falar um assunto comum da coletividade? Os maiores problemas da igreja são hoje
os problemas humanitários", continua.
"Embora sua morte cause dor à toda a
Igreja, isso não extingue a luz do seu testemunho, que permanecerá como farol
para a humanidade."
O seminarista Kaik Ribas diz que Francisco
"trouxe a Igreja ao século 21 ao quebrar muitos paradigmas" e espera
que o próximo papa dê continuidade e aprofunde o seu trabalho.
No ano em que a Igreja celebra um jubileu,
que seja "um papa da esperança", diz Kaik.
"[A escolha] Está a cargo do Espírito
Santo, foi ele que sempre guiou a Igreja e continuará guiando."
Fonte: BBC News Brasil

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