Matt
McManus: “Por que os socialistas não devem rejeitar toda teoria liberal”
Para
muitos socialistas, o liberalismo é, na melhor das hipóteses, um tipo de
conformismo burguês e, na pior, uma doutrina declaradamente reacionária. Por
séculos, os socialistas desenvolveram críticas analíticas ao liberalismo — muito
atomístico, muito desigual, muito imperialista — e ansiavam pelo dia em que ele
seria superado e substituído por uma forma superior de sociedade. Ao mesmo
tempo, até mesmo um crítico tão duro quanto Karl Marx ofereceu uma crítica muito mais
sofisticada e generosa do liberalismo do que às vezes é admitido. Mesmo no
século XIX, estava claro que o liberalismo clássico era um avanço significativo
na velha ordem feudal. Desde então, muitos liberais aceitaram as críticas mais
sérias da esquerda e tentaram mostrar como a democracia liberal não é apenas
compatível, mas pode até exigir um comprometimento com a democratização
econômica e a igualdade. Esses temas são explorados em detalhes no intrigante
novo livro de Matt McManus, The Political Theory
of Liberal Socialism [Teoria Política do Socialismo Liberal], e serão
discutidos em um próximo simpósio sobre liberalismo, socialismo e populismo de
direita na Universidade de Toronto. O cientista político Igor Shoikhedbrod
falou com McManus sobre o livro. McManus argumenta
que, embora o liberalismo tenha suas falhas, os socialistas não devem ser muito
rápidos em dispensar completamente as ideias liberais.
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LEIA A ENTREVISTA POR IGOR SHOIKHEDBROD
·
O que motivou você a analisar a teoria política do
socialismo liberal?
MATT
MCMANUS - Houve algumas motivações que remontam aos meus interesses políticos e
intelectuais iniciais. Provavelmente as mais importantes eram agonísticas.
Primeiro,
a direita política obteve grandes ganhos em boa parte do mundo. É difícil dizer
se seu ponto alto foi atingido, mas em 2018 ela dominou os Estados Unidos,
Brasil, Índia, Rússia e muitos outros países. Isso inspirou muitas reflexões
sobre como se unir em oposição à direita. Em segundo lugar, e relacionado a
isso, passei a maior parte da última década lendo muito sobre a direita e suas
principais correntes intelectuais.
Há um tipo de retórica de direita crua e visceral que simplesmente confunde
tudo à esquerda de Ronald Reagan — pense em todos esses livros sobre “marxismo
racial” — que veem o capitalismo woke e o centrismo liberal
como a segunda vinda de [Vladimir] Lênin. Mas todo esse tempo lendo a direita
me convenceu de que filósofos como [Friedrich] Nietzsche e [Martin] Heidegger
estão corretos ao dizer que há profundas afinidades metafísicas entre o
humanismo liberal e o socialista. “Na medida em que o liberalismo e o
socialismo estão comprometidos com a razão, o humanismo e a garantia de uma
vida boa para todos, a afinidade deve ser abraçada.”
Em Introdução
à Metafísica, Heidegger rechaça o liberalismo e o socialismo como
“metafisicamente iguais” em seu abraço inautêntico da modernidade e do
humanismo. Acho que há verdade nisso, exceto que não compartilho das conclusões
sombrias de Heidegger. Na medida em que o liberalismo e o socialismo estão
comprometidos com a razão, o humanismo e a garantia de uma vida boa para todos,
a afinidade deve ser abraçada. Por fim, sempre senti que os esquerdistas tinham
mais simpatia por elementos do liberalismo do que deixavam transparecer. Se
você perguntar ao esquerdista médio se ele acredita em liberdade religiosa,
mobilidade, direitos de voto ou expressão, ele dirá que sim. No mínimo,
insistirá que essas conquistas não estão seguras nas mãos de liberais médios.
Então, The Political Theory of Liberal Socialism é, em parte,
um esforço para tornar explícitos esses compromissos compartilhados.
·
Quais são as diferenças entre socialismo liberal e
social-democracia, entre socialismo liberal e socialismo democrático?
MM - Acho
que faz mais sentido ver essas “diferenças” como um continuum em vez de um
ou/ou categórico. No mínimo, é antidialético conceituar diferentes formas
sociais desse jeito exagerado sem reconhecer os elos entre elas — algo que
tirei do seu livro, na verdade, quando
você menciona como Marx insiste que qualquer nova sociedade socialista será
“carimbada” por características de sua antecessora. Entendida como uma questão
de reforço e distinção qualitativa em vez de categórica, uma diferença
fundamental com a social-democracia é a extensão em que as relações de produção
permaneceram amplamente inalteradas em muitos países. Os trabalhadores ainda
trabalhavam em grande parte para capitalistas em um sistema de trabalho
assalariado, mesmo que alguns esforços valiosos tenham sido feitos para induzir
maior sindicalização ou introduzir mecanismos de codeterminação. O que mudou
foi a extensão em que o Estado interveio para regular a economia e redistribuir
a riqueza por meio de programas sociais como o National Health Service [Serviço
Nacional de Saúde] na Grã-Bretanha ou a Previdência Social nos Estados Unidos. Em
contraste, um regime socialista liberal teria que dar muito mais ênfase à
implementação de princípios liberais de esquerda no local de trabalho. Isso
significaria estender os direitos liberais para compensar o poder dos chefes.
Mas também significaria democratizar substancialmente o poder para eliminar a
dominação do que Elizabeth
Anderson chama de “governo
privado”. Codeterminação e sindicalização são bons começos aqui, mas muito
apenas um início. Isso pode ser acompanhado por redistribuições de riqueza
muito mais substanciais com o objetivo de não apenas atender às necessidades
das pessoas, mas garantir que elas obtenham valor justo de suas liberdades
políticas como cidadãos iguais.
·
Karl Marx certa vez se referiu a J. S. Mill como um
“sincretista superficial” empenhado em “reconciliar irreconciliáveis”. Como
você responderia às mesmas acusações contra o projeto de “socialismo liberal”
como o entende?
MM - A
crítica de Marx, até certo ponto, ultrapassa seu alvo. Ele está obviamente
absolutamente correto ao dizer que você não pode simplesmente mudar a
distribuição de riqueza excedente como quiser sem também transformar
fundamentalmente as relações de produção. Para sua pergunta anterior, esse era
um problema central em muitos Estados social-democratas onde a redistribuição
podia atingir temporariamente níveis relativamente generosos. Mas muito disso
desmoronou porque o poder do capital ressurgiu, o que contribuiu para o
contra-ataque neoliberal, como explica David Harvey. Mas
Mill era, de muitas maneiras, muito menos indiferente a esse problema do que
Marx sabia, e o mesmo é verdade para muitos outros socialistas liberais. O
apelo de Mill por cooperativas no local de trabalho foi pensado como parte de
uma campanha para eventualmente acabar com os capitalistas e deveria ser
acompanhado por programas de redistribuição econômica e educação para ajudar a
trazer igualdade política. E, claro, Mill era mais perspicaz do que Marx sobre
a necessidade de garantir direitos para as mulheres, mesmo que ele fosse menos
admirável em questões como o imperialismo britânico.“Não é óbvio para mim que
devemos sempre ficar do lado dos marxistas mais intransigentes em seus debates
com liberais de esquerda como Mill.” Finalmente, não é óbvio para mim que
devemos sempre tomar o lado mais intransigente dos marxistas em seu debate com
liberais de esquerda como Mill. O próprio Marx era um pensador radicalmente
democrático, mas a maneira como alguns marxistas simplesmente rejeitaram ideias
liberais importantes como freios e contrapesos no poder do Estado ou direitos
individuais contra o aparato estatal teve, é claro, um legado sombrio. Mill
foi, de certa forma, profético ao alertar os socialistas sobre o perigo de tais
negações, e os socialistas contemporâneos não querem cair na mesma armadilha de
alguns de nossos antepassados.
·
Em que ponto o liberalismo entra em conflito com o
socialismo e vice-versa? Em outras palavras, quais são as linhas que dividem o
liberalismo e o socialismo?
MM - Acho
que precisamos ter cuidado aqui para reconhecer que o liberalismo é na verdade
uma família de liberalismos, e o mesmo é verdade para o socialismo. Se o
liberalismo e o socialismo se harmonizam e reforçam um ao outro ou entram em
conflito depende, em parte, de quais membros das respectivas famílias você
reúne.
Os
socialistas têm sido, com razão, muito críticos do egoísmo atomístico do que C.
B. Macpherson chama de “individualismo possessivo” liberal clássico e sua ética
de aquisição infinita. Os socialistas destacaram como ele destrói a
solidariedade e a comunidade. Contemporaneamente, vimos tensões possessivas do
liberalismo continuarem dentro das tradições liberais neoliberais ou da “Guerra
Fria”, que se mostraram tão pouco inspiradas na prática quanto pouco
inspiradoras na teoria. Os altos níveis de desigualdades e poder levaram muitos
a sentir, com razão, que os governos não tinham interesse nas pessoas comuns e
em suas necessidades, o que abriu a porta para figuras como [Donald] Trump
mobilizarem esses ressentimentos, mesmo que ele tenha intensificado muitas das
piores políticas durante o mandato.
Mas há
outras formas de liberalismo que remontam a Thomas Paine, que também eram
críticas ao individualismo atomístico e à ética da aquisição infinita. Paine
foi um dos primeiros a pedir a fundação de um Estado de bem-estar social, e ele
justificou isso apontando que a propriedade era uma instituição social, o que
significa que os ricos tinham uma dívida com a sociedade por suas riquezas.
Liberais radicais negros como Charles Mills mostraram como podemos começar (e
será um longo processo) a despojar o liberalismo, e, nesse caso, muitas
vertentes do socialismo, de suas suposições raciais e racistas e nos mover em
uma direção mais genuinamente igualitária. Essas formas de liberalismo são
muito compatíveis com muitas formas de socialismo, pelo menos aquelas muitas
formas de socialismo que são hostis a Estados autoritários e economias de
comando.
·
O que, se é que há algo, o liberalismo acrescenta ao
socialismo? O que, se é que há algo, o socialismo acrescenta ao liberalismo?
MM - O
liberalismo antecedeu de muitas maneiras o socialismo como a grande doutrina
modernista comprometida com a liberdade, igualdade e solidariedade para todos.
As ideias têm raízes que remontam a um ponto ainda mais profundo, mas a
tradição liberal merece elogios por elevá-las ao potencial revolucionário, como
qualquer bom marxista apontaria. Acho que hoje uma das principais coisas que
ele acrescenta ao socialismo é a necessidade de proteger os direitos
individuais e impor limitações significativas ao poder do Estado. Mais
profundamente do que isso, pode-se enfatizar como o liberalismo contribui com
um senso muito necessário de antiutopismo para a tradição socialista. Alguns
socialistas presumiram que com uma transição para uma nova forma social não
apenas o Estado acabaria definhando, mas as necessidades de todos seriam
atendidas. Muitos até atribuíram expectativas perfeccionistas ao socialismo e ao comunismo.
Como [Leon] Trotsky disse uma vez, a concha na qual a construção cultural e a
autoeducação do homem comunista serão incluídas, desenvolverá todos os
elementos vitais da arte contemporânea ao ponto mais alto. O homem se tornará
imensuravelmente mais forte, mais sábio e mais sutil; seu corpo se tornará mais
harmonizado, seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais musical. As formas de
vida se tornarão dinamicamente dramáticas. O tipo humano médio se elevará às
alturas de um Aristóteles, um Goethe ou um Marx. E acima dessa crista novos
picos se erguerão. Não acho que isso seja realmente plausível.
De
fato, uma percepção central do liberalismo que pode se casar facilmente com o
socialismo é que os seres humanos podem melhorar ética e cognitivamente, mas
eles nunca serão perfeitos e muitas de nossas características mais sinistras
persistirão enquanto nós existirmos. Chame isso de princípio agostiniano. Na
verdade, eu seguiria Ben
Burg ao sustentar que um argumento central para o socialismo deveria
ser uma cautela com a natureza humana e quão facilmente ela pode ser corrompida
quando algumas pessoas desfrutam de enormes quantidades de poder e riqueza. O
que os liberais precisam aprender com os socialistas é a importância da
esperança e redescobrir esse compromisso com a melhoria ética e cognitiva.
Samuel Moyn escreveu um ótimo livro, Liberalism Against Itself [O
Liberalismo Contra Si Mesmo], que foi uma grande influência para mim. Ele
aponta como muitos dos liberais da Guerra Fria cortaram pela raiz um diálogo
produtivo entre liberalismo e socialismo. Eles insistiam que qualquer tentativa
de melhorar o mundo era perigosa e abria a porta para o autoritarismo. E eles
estavam especialmente preocupados em conceder muito poder às massas. Bem,
acontece que suas ansiedades eram equivocadas; a porta para o autoritarismo se
abre quando os liberais não oferecem às pessoas comuns a esperança que permeia
o socialismo. Além disso, os liberais podem aprender com os socialistas o quão
perigosas são as concentrações de riqueza, já que elas prontamente se
transformam em concentrações de poder. Esta é uma lição que Marx ensinou há
muito tempo, mas os liberais esqueceram e tiveram que reaprender geração após
geração.
·
Como você explica o histórico majoritariamente triste de
alianças políticas entre liberais e a esquerda radical, incluindo socialistas?
MM - Teoricamente,
acho que há muitos de nós, voltando há algum tempo, que queríamos juntar os
dois. O termo “socialismo liberal” não é exclusivo para mim. No livro, afirmo
que Mill foi o primeiro socialista liberal “maduro”, mesmo que ele não tenha
usado o termo, mas outros como [Carlo] Rosselli e [John] Rawls o usaram
explicitamente bem antes de eu chegar nele. Na prática, as dificuldades são
muito mais gritantes. Socialistas e liberais conseguiram uma aliança viável
diante da direita fascista durante a Segunda Guerra Mundial, e estamos muito
melhores por isso. Além desses tipos de circunstâncias existencialmente postas,
é difícil. Muitos liberais concordariam com Ludwig von Mises que o compromisso
central do liberalismo é com a propriedade privada, e obviamente os socialistas
não podem ter nada a ver com isso. Minha resposta é que se o liberalismo
realmente pode ser reduzido a pouco mais do que um fetiche por propriedade, não
é um credo inspirador com o qual vale a pena se aliar. “Se o liberalismo
realmente pode ser resumido a pouco mais que um fetiche por propriedade, não é
um credo inspirador ao qual vale a pena se aliar.” Mas não acho que isso seja
verdade para muitos liberais. Para muitas pessoas que se identificam com o
rótulo hoje, o liberalismo é sobre garantir algo como uma vida digna para
todos, independentemente de suas circunstâncias. O objetivo dos socialistas
deveria ser segurar um espelho para os liberais e dizer que eles não podem
atingir seus objetivos a menos que estejam dispostos a estender os princípios
liberais sobre igualdade e liberdade frente à dominação para a economia.
·
Que argumentos você pode fornecer para uma aliança
renovada entre as duas tradições hoje, particularmente para aqueles que pensam
que “socialismo liberal” é uma contradição em termos?
MM - Liberalismo
e socialismo estão ligados histórica, moral, e muitos diriam espiritualmente,
às grandes lutas pela emancipação que remodelaram o mundo entre os séculos XVII
e XX. No seu melhor, ambos são doutrinas revolucionárias e voltadas para o
futuro que rejeitam as alegações da direita de que há pessoas superiores na
sociedade que têm direito a mais, e insistem que é tão importante que a vida de
uma mãe solo pobre vá tão bem quanto a de Elon Musk. O fato de não vivermos em
tal sociedade é culpa de arranjos sociais injustos que podem ser mudados para
melhor, e devem ser.Se os liberais não aprenderem com os socialistas e
vice-versa, podemos não ver nenhuma das doutrinas sobreviver no século XXI. Mas
se o fizerem, o liberalismo e o socialismo merecerão mais do que sobrevivência:
eles merecerão lealdade e até mesmo amor.
Fonte: Tradução de Pedro Silva, para Jacobin
Brasil

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