COP-30: Belém sofre com especulação
imobiliária, mudanças no plano diretor e condições insalubres de trabalho
Escolhida como sede da 30ª Conferência das
Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-30), Belém do Pará é palco de mais
de 30 obras realizadas a toque de caixa e enfrenta o dilema entre perpetuar
velhos modelos que beneficiam a especulação imobiliária e o racismo ambiental e
preparar de fato a cidade para os desafios do presente e do futuro. Intitulada pelos governantes como a “COP da
Floresta” e celebrada pela realização em um país democrático, a conferência –
que poderia ser um marco na transformação da capital paraense em uma referência
na redução de desigualdades sociais, resiliência e adaptação à emergência
climática – pode frustrar as altas expectativas em torno da sua preparação como
sede do evento climático. Com problemas
estruturais e orçamento municipal reduzido, os preparativos para o encontro,
que irá ocorrer entre 10 e 21 de novembro, representam a injeção de cerca de 5
bilhões de reais destinados a obras de saneamento e a construção de parques e
espaços destinados ao turismo na cidade.
Segundo o governo federal, os recursos investidos em Belém são
provenientes do Orçamento, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) e da Itaipu Binacional.
Mais de 40 mil visitantes são esperados, de
acordo com o governo brasileiro, com base em estimativas da Fundação Getúlio
Vargas (FGV). Devido às pressões sobre a rede hoteleira, a cúpula de chefes de
Estado será realizada nos dias 6 e 7 de novembro, antes do período inicialmente
previsto para a conferência. Enquanto
veículos nacionais e internacionais destacam os preços exorbitantes das diárias
e alugueis, que variam entre centenas de milhares aos milhões de reais por
menos de um mês de hospedagem, a preparação da cidade tem sido marcada por
diversos problemas. Aumento da
especulação imobiliária, violações do direito à moradia, mudanças arbitrárias
no plano diretor e denúncias de trabalhadores submetidos a condições insalubres
nos canteiros de obras foram alguns dos problemas encontrados nas áreas em
torno dos projetos ligados aos preparativos da COP-30, como a Nova Doca, o
Parque São Joaquim e a reforma da Feira do Ver-o-Peso, entre outros locais
visitados pela reportagem.
• Planos
retirados da gaveta
“A COP
e os bilhões que o governo federal traz com ela são uma coisa realmente
excepcional. Havia aqui uma porção de projetos na gaveta há muito tempo.
Algumas coisas legais, outras nem tão legais. E a gente tinha escapado até aqui
da agenda do megaevento. Então ele bateu na nossa porta, para o bem e para o
mal”, aponta a pesquisadora Ana Cláudia Duarte Cardoso, professora titular da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (UFPA). O volume de recursos mobilizados pela
COP-30 é quase o mesmo que o orçamento médio anual da capital paraense entre os
anos de 2015 e 2024, estimado em 4,8 bilhões de reais, valor bastante inferior
ao de outras capitais com cerca de 1,4 milhão de habitantes, a exemplo de
Goiânia (R$ 6,7 bi) e Recife (R$ 8 bilhões).
A baixa arrecadação própria costuma ser explicada por fatores como a
alta informalidade da economia, bastante dependente dos setores de comércio e
serviços, a infraestrutura deficitária, que dificulta a instalação de plantas
industriais, assim como a dependência de transferências estaduais e federais.
Com 409 anos, Belém é a capital mais antiga
do Norte, região em que se concentra a maior parte da Amazônia Legal. Porém, em
2023, as florestas ocupavam apenas 8,4 mil (ou 28,4%) da sua área urbana,
estimada em 29,7 mil hectares, segundo o MapBiomas. Considerando que a COP-30 exige do mundo
e do Brasil, em particular, a necessidade de pensar o futuro de seus
biomas e territórios, a tarefa de tornar Belém mais resiliente também se impõe
diante da possibilidade de aumento entre 1,5 a 4,5 graus Celsius da temperatura
até 2100, segundo as projeções mais ou menos otimistas do Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). No entanto, na balança da
tomada de decisões dos governantes, o direito ao futuro cede lugar às pressões
do mercado. A expectativa é que investimentos serão atraídos e empregos criados
com a oportunidade de receber dezenas de milhares de turistas em megaeventos
como a própria COP-30 e a Copa do Mundo Feminina de 2027, para a qual Belém foi
escolhida como uma das cidades-sede. Alegando solucionar alguns dos problemas
crônicos de mobilidade na Região Metropolitana de Belém, formada por oito
municípios, o Governo do Pará está construindo ao menos duas grandes vias, a
Avenida Liberdade e a nova Rua da Marinha.
Com a promessa de reduzir o tempo de viagem
para quem circula e transporta mercadorias na região, as duas avenidas avançam
sobre áreas verdes enquanto a capital paraense enfrenta, a cada ano, alterações
nos padrões de chuva e aumento de temperaturas mais frequentes, de acordo com o
Instituto Nacional de Metereologia (Inmet).
A Avenida Liberdade, que interligará a zona urbana de Belém à rodovia
PA-483, no município de Marituba, corta parte da Área de Proteção Ambiental
(APA) metropolitana de Belém. Já o projeto de duplicação da Rua da Marinha, que
promete se tornar um grande corredor de mobilidade por interligar a Avenida
Centenário à Rodovia Augusto Montenegro, atravessa o Parque Ambiental Gunnar
Vingren. Ambas as obras são capitaneadas pelo governo estadual, mas apenas a
segunda conta com recursos federais como parte do pacote de investimentos para
a COP-30.
A professora da UFPA explica a importância
das áreas de floresta mais abundantes, como as que compõem a APA de Belém para
a regulação do microclima na capital. Dividida com a cidade vizinha de
Ananindeua, a APA é uma unidade de uso sustentável, criada em 1993 pelo Governo
do Pará. As suas principais funções envolvem proteger a biodiversidade e os
mananciais de água responsáveis pelo abastecimento das duas cidades, como os
lagos Água Preta e Bolonha. A urbanista
defende que, para adaptar a cidade às mudanças climáticas, é necessário criar
uma malha de corredores verdes que ajudem a desacelerar e absorver a água das
chuvas. Além disso, as áreas de florestas, assim como as de manguezais, abrigam
alta diversidade de espécies de bichos e plantas. Porém, na
contramão do esperado quanto à arborização das ruas e bairros, o governo
do Pará divulgou recentemente a instalação das chamadas “eco-árvores”,
estruturas de material reaproveitado cobertas por trepadeiras, a fim de
garantir sombra aos usuários de duas grandes obras previstas pela COP-30, os
parques lineares da Nova Doca e da Avenida Tamandaré. Importada de Singapura, a
tecnologia pretende suprir a falta de solo para o plantio em parte das áreas
“revitalizadas” pelos governos estadual e federal.
Após receber inúmeras críticas nas mídias
sociais pela adoção da tecnologia asiática em uma das regiões com maior
diversidade de flora do planeta, o governo do Pará substituiu a expressão “árvores artificiais” por “jardins
suspensos”.
• Interesses
de grandes empreendimentos
Não são apenas grandes intervenções sobre as
áreas verdes que os megaeventos previstos para acontecer em Belém estão
exigindo na preparação da cidade. Para viabilizar a construção do Parque da
Cidade no espaço do antigo Aeroporto Brigadeiro Protásio de Oliveira, conhecido
como Aeroclube, em abril de 2022, o então presidente da Câmara Municipal de
Belém, Zeca Pirão (MDB-PA), submeteu à votação o projeto de lei n° 573, com o
objetivo de mudar o plano diretor, publicado sob a forma de lei n° 8.655, de
2008. O texto aprovado trocou o termo “ampliar” por
“priorizar” a disponibilidade de equipamentos públicos, espaços verdes e de
lazer na área do antigo aeroporto. As mudanças foram sancionadas pelo então
prefeito Edmilson Rodrigues no mês seguinte.
Apesar de impedir a instalação de empreendimentos imobiliários no local,
a alteração na lei liberou a oferta de serviços “A” – o que inclui hotelaria,
cultura, lazer, esportes, academia de ginástica, restaurantes, bares e
lanchonetes – no polígono em que se encontra o Parque da Cidade, autorizando o
uso e ocupação da área por agentes privados. Na época, o promotor público
Raimundo Moraes, em conjunto com o defensor público Adriano Souto Oliveira,
recomendou ao prefeito Edmilson Rodrigues o veto integral do projeto de lei
aprovado pelos vereadores, sob a alegação de que as mudanças seriam
inconstitucionais.
O pesquisador Raul Ventura Neto, que é também
professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA, demonstra
preocupação com as escolhas que têm sido feitas em torno do planejamento da
cidade. Segundo ele, ao invés de acionar instrumentos que permitiriam controlar
o preço da terra e a especulação imobiliária, o plano diretor tem sido
modificado para atender aos interesses de grandes empreendimentos, levando à
perda de áreas verdes e ao aumento desenfreado da verticalização, sem
considerar as consequências para a cidade.
Sem o devido controle do município sobre a venda ou cessão dos terrenos
pertencentes às Forças Armadas no entorno do Parque da Cidade, o risco é que os
novos empreendimentos imobiliários e comerciais gerem ainda mais impactos
negativos sobre as áreas de florestas remanescentes, entre outros
problemas.
• Aos
ribeirinhos e trabalhadores, o esgoto dos ricos
No começo da noite do dia 21 de março, uma
sexta-feira chuvosa na capital paraense, cerca de 20 moradores do bairro do
Telégrafo começaram a chegar ao pátio de uma das casas da rua Magno de Araújo
para uma reunião. A rua asfaltada de casas populares dá acesso à Vila da Barca,
área ocupada por palafitas que representa um dos maiores ícones das
desigualdades sociais em Belém. O motivo
do encontro chamado às pressas foi a descoberta de que um terreno localizado a
menos de 100 metros dali tem sido usado para o despejo de resíduos, ou
bota-fora, de pelo menos uma das obras da COP-30 e uma Estação Elevatória de
Esgoto será construída na mesma área.
Enquanto mulheres, homens e crianças das ruas afetadas pelo novo
empreendimento se acomodavam para discuti-lo em uma primeira reunião, ao menos
dois caminhões abastecidos com lama mal cheirosa passaram pela rua Magno de
Araújo, tendo como destino o terreno localizado em uma das esquinas da rua
Professor Nelson Ribeiro. Os veículos
seguiram com as caçambas carregadas de rejeitos das obras realizadas na Avenida
Doca de Souza Franco, localizada no bairro do Umarizal, onde o projeto da Nova
Doca, estimado em 310,8 milhões de reais, está sendo implementado pela parceria
entre os governos federal e do Pará, com recursos da Itaipu Binacional.
Iniciado algumas semanas antes, o intenso tráfego de caminhões começou a
despertar a atenção por depredar as vias de bloquetes de cimento de ruas como a
Djalma Dutra e a Professor Nelson Ribeiro, assim como pelo odor fétido e a
poeira levantada em todo o trajeto.
Retirada de canais onde o esgoto da Avenida
Doca de Souza Franco é despejado sem tratamento, a lama trazida pelos caminhões
tem sido descartada no terreno em que se encontram as carcaças de três barcos
depositadas recentemente e as ruínas de um prédio conhecido como Curtume, onde
uma fábrica de couro funcionou na primeira metade do século 20. Nesse local, por muito tempo ocioso e usado
por crianças e jovens do bairro como campo de futebol, o Governo do Pará
pretende criar a Estação de Elevação de Esgoto do bairro do Umarizal, como
parte do projeto da Nova Doca. Por meio do decreto nº 4.393, assinado pelo
governador Helder Barbalho, o espaço foi desapropriado para esse fim desde o
dia 17 de dezembro do ano passado. ”A
gente está aqui por um motivo comum que é essa obra que vai chegar aqui, essa
Estação de Esgoto, que não é nosso [da Vila da Barca ou do bairro do
Telégrafo], vai ser da Doca, ou seja, a gente vai receber o cocô da Doca e é
importante que a gente tenha isso em mente”, anunciou a ativista Suane
Barreirinhas ao abrir a reunião. Moradora do bairro do Telégrafo desde a
infância, Suane é cofundadora do Museu da Vila da Barca. Para os moradores da área, a notícia sobre a
construção da Estação de Esgoto chegou há poucas semanas, com a instalação da
placa e de adesivos no local da obra, o que é exigido por lei.
A mobilização dos moradores iniciou no boca a
boca, já que nenhuma informação sobre estudos de impacto prévios ou do licenciamento ambiental foi dada pela
Secretaria de Obras Públicas (SEOP) nem pela Prefeitura de Belém, atualmente
comandada por Igor Normando (MDB-PA). Na
segunda-feira seguinte à reunião, após pressão popular nas mídias sociais e na
imprensa nacional, representantes da secretaria de obras receberam representantes da Vila da Barca e
das ruas adjacentes. No encontro, a engenheira sanitarista Lia Pereira destacou
que a Estação terá a função de direcionar o esgoto à estação de tratamento
localizada na Rua Artur Bernardes. Segundo Lia, o projeto envolve um sistema de
filtração de gases e a vedação do poço.
As preocupações da comunidade da Vila da Barca convergem com o
procedimento aberto por procuradores dedicados a monitorar e prevenir acidentes
de trabalho nas obras da COP-30. Segundo documentos obtidos pela reportagem
junto à Procuradoria Regional do Trabalho da 8ª Região, ligada ao Ministério
Público do Trabalho (MPT), a lama retirada do canal da Nova Doca pode ser uma
das causas das doenças na pele denunciadas por trabalhadores do projeto.
No dia 27 de fevereiro, a procuradora Cindi
Ellou Lopes deferiu um pedido de
apuração de possíveis irregularidades relacionadas às jornadas de
trabalho, ao programa de gestão e vigilância da saúde dos trabalhadores, a
desvios de função e ausência de capacitação pelo Consórcio Nova Doca. O
procedimento foi autorizado após cinco meses de diligências, audiências com
representantes das empresas de construção e do governo do estado, assim como
notificações das partes envolvidas com o projeto. Em relatório elaborado após uma vistoria
realizada no dia 17 de dezembro de 2024, consta que “durante a diligência,
houve relatos de acometimento de trabalhadores por doenças na pele, coceiras
intensas e até mesmo um suposto caso de cegueira, agravos estes que seriam decorrentes
do contato dos obreiros com os agentes insalubres presentes no canal”. Segundo
os documentos, depois de notificado pelo MPT, o Consórcio assegurou o pagamento
dos adicionais de insalubridade e periculosidade aos trabalhadores diretamente
envolvidos com atividades ou expostos às águas dos canais da Doca. Porém, como
o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) da obra não
reconhece os riscos biológicos do contato com efluentes de esgoto doméstico
despejados no canal, não há previsão de exames para o acompanhamento de doenças
relacionadas a agentes biológicos existentes no ambiente de trabalho.
“A medida saneadora informada pela empresa
limitou-se basicamente a reconhecer os riscos biológicos no documento-base do
PCMSO. Não houve qualquer manifestação quanto aos casos de adoecimento
relatados, nem demonstração de qualquer medida efetiva de gestão da saúde dos
trabalhadores no tocante aos relatos de adoecimento”, analisa o procurador do
trabalho Élcio de Sousa Araújo, em despacho assinado no dia 26 de
fevereiro. “Sobre esse ponto, cabe ainda
registrar que este Procurador, recentemente, após a diligência, recebeu uma
denúncia sigilosa nos seguintes termos: ‘que, por conta do trabalho no canal da
Doca (onde há uma água fedorenta) alguns trabalhadores desenvolveram doenças na
pele, chegando a ficar na ‘carne viva’; que não há proteção ao trabalhador; que
a enfermeira da empresa teria dito que no canal há um micróbio e que a medida
de prevenção seria ‘tirar a camisa e ficar no sol’”, diz o texto. No mesmo documento, o procurador ressalta que
foi identificado o excesso de jornada extraordinária, além das duas horas
diárias permitidas por lei. Segundo os relatos, a jornada de trabalho nas obras
da Nova Doca totalizam cerca de 11 horas diárias. Além disso, segundo denúncia
sigilosa, o número de horas e dias trabalhados tem extrapolado as médias
inicialmente registradas.
• O
alto preço das ilhas de luxo para a cidade
Os contrastes entre a chamada Doca e a Vila
da Barca são gritantes e demonstram como especulação imobiliária e racismo
ambiental costumam ser faces da mesma moeda nas cidades brasileiras. Resistindo
há quase um século como uma comunidade ribeirinha cravada na orla da Baía do
Guajará, a Vila da Barca possui cerca de 80 mil metros quadrados e tem sido
pressionada pela construção de dezenas de condomínios erguidos nas avenidas ou
por entre as ruelas de casas populares construídas no bairro do Telégrafo a partir
do século 19. A poucos minutos do bairro do Umarizal e do centro da cidade, a
vila de palafitas foi alvo de um projeto de habitação e urbanização iniciado
pela prefeitura de Belém em 2003. Interrompido diversas vezes nas gestões
seguintes, mesmo sob a pressão de órgãos com o Ministério Público Federal, o
projeto foi retomado com a eleição de Edmilson Rodrigues ao terceiro mandato
como prefeito da capital, em 2020, mas continua inacabado até hoje. Como
principal resultado, a intervenção municipal na área criou uma ilha com blocos
de alvenaria cercada, de um lado, por um emaranhado de palafitas não incluídas
no projeto e, do outro, por uma faixa de casas para onde algumas famílias foram
remanejadas, à espera das novas moradias. Entre outros problemas, grande parte
das famílias da Vila da Barca ainda enfrenta a ausência de água encanada, a
vulnerabilidade a incêndios, a falta de
coleta de lixo e esgotamento sanitário, assim como o empoçamento das águas represadas embaixo das casas de madeira
suspensas sobre o rio, afetadas pelo aterramento previsto no projeto de
habitação parcialmente executado.
A menos de três quilômetros da Vila, o bairro
do Umarizal compreende o metro quadrado mais valorizado de Belém, com casos de
apartamentos vendidos por valores acima dos 10 milhões de reais. Os
investimentos ligados à COP-30 devem fazer com que os preços dos imóveis da
área aumentem ainda mais. “As obras da COP vão impactar exatamente os eixos
imobiliários, alguns muito consolidados, que tem uma capacidade de controlar o
preço de boa parte da cidade de forma muito intensa, como é o caso do eixo da
Doca”, explica o professor Raul Ventura Neto.
De acordo com a Agência Pará, o projeto da
Nova Doca envolve a construção de um parque linear com 1,2 quilômetros de
canal, serviços de drenagem, paisagismo, urbanização e construção de
passarelas, além da substituição das comportas para controle de água de maré, a
fim de evitar inundações. Alvo de
outros projetos, como o Porto Futuro I, idealizado por Helder Barbalho ainda
como ministro da Integração Nacional do governo Michel Temer, e Porto Futuro
II, encampado como obra essencial para a COP-30, a antiga zona portuária
localizada na região tem sido requalificada como espaço de lazer e turismo, com
a instalação de parques, espaços de eventos e um hotel boutique do grupo
internacional Vila Galé. A pouco mais de
dois quilômetros da Nova Doca, o Parque Linear da Tamandaré será implantado em
torno da avenida de mesmo nome, com a promessa de “embelezamento de um novo
espaço turístico, nova área de lazer, junto com o terminal hidroviário, que
também está incluído no projeto”, segundo a agência do governo. Seus impactos
devem alcançar outros bairros considerados nobres, como Nazaré, Batista Campos
e o centro histórico de Belém.
Direta e indiretamente, os projetos de
requalificação, liderados pelo setor público, beneficiam a expansão de
empreendimentos privados, como o Boulevard Shopping, localizado na Doca de
Souza Franco. Sob a promessa de criar
milhares de novos empregos e impulsionar a economia local, o shopping center
deve ser expandido para a área da antiga fábrica de sabonetes da Phebo, localizada no antigo
bairro operário do Reduto, num projeto que envolve a construção de uma
passarela privada sobre a rua. No entorno do Parque da Tamandaré, no bairro da
Cidade Velha, a previsão é que sejam instalados dois condomínios horizontais de
alto padrão. Segundo as informações que
circulam na imprensa de Belém, o primeiro terá 22 mil metros quadrados e 37
casas, em frente à Praça do Arsenal; e o outro, 71 mil metros quadrados, com 67
lotes urbanizados na orla acessada pela Avenida Bernardo Sayão, que possui
ligação direta com a avenida do novo parque.
Na periferia da cidade, o clima é de preocupação Com menos de 10
quilômetros de distância da Nova Doca, as preocupações com os impactos das
obras da COP-30 sobre as periferias de Belém são compartilhadas por Manoel
Fonseca e Jorge Oliveira, lideranças comunitárias e ativistas pelo direito à
cidade. A expectativa é que direitos
assegurados nos bairros nobres, como saneamento adequado e espaços de lazer,
cheguem a bairros historicamente excluídos da agenda de investimentos, como a
Sacramenta, o Barreiro e o Telégrafo.
Ambas as lideranças acompanharam, desde os
anos 1990, a chamada Macrodrenagem da Bacia do Una. O projeto envolveu a
construção de canais de drenagem e infraestrutura básica, com a pavimentação de
vias e instalação de galerias subterrâneas em diversos bairros periféricos que
não possuíam sistema de drenagem. Entre
os problemas deixados por esse modelo de intervenção, está a alteração do curso
natural do rio, com a destruição de matas ciliares e o aumento da erosão e do
assoreamento. Além disso, a drenagem degradou igarapés, transformados em canais
altamente contaminados com os efluentes de esgoto sem tratamento, sem eliminar
os pontos de alagamentos que afetam vários bairros após chuvas fortes.
Com a escolha de Belém como sede da COP-30, a
prefeitura da cidade optou por construir
o Parque Urbano São Joaquim, cujo projeto foi elaborado após a realização de um
concurso nacional na gestão de Edmilson Rodrigues. Com 150 milhões de reais
assegurados pelo governo federal, por meio da Itaipu Binacional, o novo parque
terá 4,6 quilômetros de extensão e 6,5 hectares de área. A mudança de gestão na prefeitura de Belém
trouxe o temor de que o projeto, que contou com etapas de escuta da população
dos bairros, seja drasticamente alterado.
“A gente não quer uma via de escoamento, a gente quer de fato um parque
que traga lazer, que venha fazer o saneamento que é preciso, a mobilidade de
forma adequada”, afirma o marceneiro Manoel Fonseca. Morador da área há mais de 40 anos, o
ativista também destaca que a eficácia da intervenção urbana depende da
valorização da cultura, apoio à juventude e garantia de segurança a partir da
melhoria da qualidade de vida e das condições de trabalho nos bairros
envolvidos. Apesar do governo do estado
prometer a construção de uma estação de tratamento de esgoto na Rodovia Arthur
Bernardes, as lideranças se preocupam com a falta desse componente no projeto
do Parque São Joaquim. “A gente exige que sejam construídas as estações
de tratamento de esgoto, porque o prefeito anunciou a navegação do São
Joaquim”, exclama Manoel. “Não tem nada previsto para tratar o esgoto aqui
dentro, algo que a gente sonhava lá atrás quando foi inaugurada a
macrodrenagem”.
Segundo Jorge Oliveira, alagamentos ainda são
frequentes nas ruas do entorno do canal do São Joaquim, onde a mãe ainda reside
na casa em que ele cresceu. A falta de
saneamento básico e tratamento de esgoto contribuem para a proliferação de
doenças, aumentando a demanda por atendimento médico nos postos de saúde.
Despejados sem tratamento, o esgoto proveniente das casas, hospitais e até de
uma fábrica de papel contribui para o assoreamento dos canais, espalhando mau
cheiro e a marginalização da área. “O progresso chegou e continua tudo do mesmo
jeito. O que mudou? Nada”, questiona Jorge.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Belém informou que o projeto
do novo parque “contempla tanto o saneamento quanto o tratamento de esgoto ao
longo do igarapé São Joaquim, onde serão implantados os chamados ‘módulos de
apoio’, haja vista que a macrodrenagem da Bacia do Una, concluída em 2005, já
havia trabalhado o saneamento da bacia e, consequentemente, a região do
entorno”. Além disso, segundo a
prefeitura, a macrodrenagem do Una teria previsto “infraestrutura de coleta de
esgoto para fins de tratamento”, o que deve ocorrer “tão logo seja concluída a
Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), sob responsabilidade do governo do
Estado”.
• Qual
legado?
Nos espaços tradicionais de trabalho, como as
feiras e mercados populares, as discussões sobre o legado da COP-30 para Belém
parecem tropeçar nos grandes transtornos que as obras vêm causando no cotidiano
das pessoas. Em fevereiro do ano
passado, um dos pontos de maior atração de turistas da cidade, o complexo de
feiras e mercados Ver-o-Peso, começou a ser reformado pela prefeitura para o
megaevento. Na área da feira livre que integra o complexo, os trabalhadores
reclamam da falta de informações precisas, da ausência de diálogo com a
prefeitura e, principalmente, da desorganização no processo de remanejamento
das barracas situadas nas áreas que cedem espaço para as obras.
Diferente do que ocorreu em 1999, quando o
prefeito Edmilson Rodrigues realizou uma reforma considerada como referência de
gestão participativa pelos trabalhadores da feira, as obras iniciadas em 2024
têm sido marcadas pela pressa característica dos outros projetos em execução na
cidade. Filha de uma das erveiras mais
conhecidas de Belém, a dona Coló, cuja imagem já foi reproduzida em inúmeras
propagandas de TV e outdoors pela cidade, Leila Bandeira conta que pelo menos
seis pessoas do mesmo núcleo familiar trabalham e dependem diretamente da renda
obtida no Ver-o-Peso. Afastada do
trabalho por questões de saúde desde 2022, dona Coló ainda tira o sustento e o
custeio dos tratamentos médicos da barraca de ervas, essências e óleos
vegetais, mantida com o trabalho dos filhos. Assim como outras erveiras e
feirantes dos setores da farinha e peixe seco, onde também são vendidas
castanhas e cachaças regionais, a família de Leila e dona Coló tem sofrido
prejuízos com o remanejamento dos boxes para uma área de pouca circulação de
usuários, próxima ao estacionamento da Praça dos Pescadores. “Não aconteceu
isso na primeira primeira reforma. Na época, nós fomos para a pista [a calçada
da Avenida Boulevard Castilho França] e nós vendemos bem. Dessa vez, eles
colocaram a gente no pior local. Da vez passada, primeiro reformaram uma área,
depois outra e outra. Só que agora não. Eles estão jogando as pessoas de
qualquer jeito”, reclama a erveira.
Segundo Leila, a promessa feita pela
prefeitura foi que a família retornaria aos espaços originais de trabalho em
três meses, mas já se passaram dois, sem sinais visíveis de avanços na obra. “A
gente não está vendendo. Às vezes, os meus irmãos não querem nem vir trabalhar,
porque eles dizem assim: ‘Ah, Leila, a gente vai para lá, não vende’”,
desabafa. “E a gente tem que pagar nosso transporte, tem que comer, às vezes a
gente compra mercadoria, pensando que vai vender, aí chega na hora e não vende
nada”.
A cozinheira Osvaldina Ferreira, do setor de
refeições, retornou ao local de trabalho em dezembro, depois de meses de
espera. Segundo ela, o espaço provisório a fez perder clientela. Durante o
período, a renda diária da barraca, que já chegou a R$ 1.500 em dias de maior
movimento na feira, caiu para R$ 45 ou menos. Para manter as despesas e a
remuneração de três pessoas que trabalham no box, ela contraiu dívidas, situação vivenciada também
por outros feirantes, segundo conta.
Dalci Cardoso trabalha na seção de
industrializados, onde vende sandálias de couro com solados de borracha. As
obras ainda não chegaram ao setor, mas ele reclama da permanente dificuldade no
diálogo com a prefeitura e os responsáveis pela obra. “A cidade, de um modo
geral, está sendo transformada para ficar como legado [da COP-30]. É dito isso
toda hora por todo canto, legado, legado, legado. Para nós, é legado e para nós
também é uma necessidade urgente de transformar o Ver-o-Peso numa coisa melhor,
que seja compatível com as nossas atividades, com padrões [adequados] de
higiene, com o meio ambiente, o trânsito, a vivência e convivência com a
comunidade de perto, no [bairro do] Comércio”, destaca.
Segundo Dalci, em geral, os permissionários
da feira manifestam a preocupação com o aumento de custos, cobranças de água e
luz, assim como a eventual elevação da taxa de uso das bancas durante e após a
reforma. Outro temor é que a reforma inviabilize o trabalho, caso as mudanças
nos espaços não sejam adequadas às reais necessidades de cada atividade. Para
ele, o legado da COP-30 ao Ver-o-Peso só existirá, de fato, se houver apoio do
governo para a qualificação dos feirantes, com treinamentos em gestão financeira,
atendimento ao cliente e legislação do consumidor, entre outros tópicos.
A oferta de facilidades tecnológicas, como a
compra de equipamentos, e empréstimos a juros baixos são outras medidas que
podem ajudar os feirantes na recuperação dos prejuízos acarretados pela reforma
e na melhoria dos negócios. Sobre a reforma do Ver-o-Peso, a Prefeitura de
Belém afirma que realizou “reuniões frequentes com cada departamento da feira”
e, “depois de um acordo, os permissionários e seus equipamentos de venda foram
remanejados para o estacionamento da praça do pescador, com previsão de retorno
em 90 dias”. Além disso, algumas
exigências dos feirantes teriam sido atendidas, diz a Prefeitura, a exemplo da
“mudança dos equipamentos de madeira para alvenaria”. A previsão é que as obras
no Ver-o-Peso encerrem em agosto, com as mesmas taxas cobradas anteriormente,
segundo as informações oficiais.
Fonte: O Joio e O Trigo

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