Quem são os católicos que não se pronunciaram
sobre a morte do Papa Francisco?
Ao herdar uma instituição abalada por
escândalos de abuso sexual e corrupção financeira, o papado de Francisco foi
marcado por uma governança da acolhida, uma crítica à destruição
socioambiental, denúncia à nesfasta economia do descarte e promoção dentro do
catolicismo de um diálogo pastoral, nomeado de “Igreja em Saída”.
Durante seus 12 anos, o Pontífice acenou com
gestos para uma tênue abertura da moralidade sexual, acolhendo a comunidade
LGBTQIA+, criou mecanismos de transparência nas finanças da Cúria Romana, indo
de encontro às denúncias em 2012 do Vatileaks e estabeleceu protocolos do “bom
trato” em todas as instâncias da Igreja para acompanhar e prevenir casos de
abusos sexual.
Estes gestos e ações pastorais encontraram
resistências nas fileiras conservadoras, mesmo que Francisco não tenha avançado
na ampliação de temas dissidentes, como os direitos sexuais, reprodutivos e a
ordenação sacerdotal de mulheres. Tudo isso mobilizou paixões e desafetos
dentro e fora da Igreja Católica, por atingir visões de mundo, do cristianismo
e de fortes interesses político-econômicos.
O pontificado de Francisco, de tendência
reformista-humanista, tornou-se alvo constante de críticas de grupos católicos
ultraconservadores que ao longo dos anos se dedicaram a campanhas sistemáticas
de deslegitimação de sua autoridade e postura pessoal.
A resistência foi pública e articulada nas
redes sociais, um dos principais campos de batalha teológica, moral e pastoral
desses setores. Muitos grupos, mesmo exaltando a obediência à doutrina,
passaram a rejeitar o dogma da infalibilidade papal, estabelecido pelo Concílio
Vaticano I, de 1870.
Atacaram o Sínodo da Amazônia, reunião de
bispos convocada por Francisco em 2019 para discutir o destino da floresta e
dos povos indígenas, promoveram o negacionismo climático, desqualificaram a
Encíclica Laudato Si’ e reagiram duramente à governança de acolhida de
Francisco.
Diante disso, monitoramos, entre os dias 21 e
22 de abril, os perfis públicos no Instagram de lideranças, organizações e
figuras ultraconservadoras do catolicismo brasileiro.
O objetivo foi identificar quais atores
conservadores relevantes que, perante a morte da autoridade máxima da Igreja,
optaram pelo silêncio absoluto. O resultado confirma um padrão de rejeição:
muitos preferiram ignorar a morte de Francisco e outros, fizeram postagens não
condizentes com seu histórico de não adesão ao pontificado de Francisco.
Entre os grupos e instituições que não se
manifestaram imediatamente no Instagram, durante os dias do monitoramento
estão: Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, Arautos do Evangelho, Instituto
Santo Anastácio, Movimento Paz no Campo (ligado ao agronegócio católico),
Instituto São José, Instituto Nossa Senhora Sede Sabedoria, Associação Devotos
de Fátima, Centro Cultural Pio XII, Instituto São Pedro de Alcântara, Unindo
Empresários Católicos, Instituto Gratia, Liga São Geraldo e Instituto
Borborema.
Estas associações e institutos podem ser
classificados como parte de um associativismo religioso que se consolidou após
o Concílio Vaticano II que reafirmou a participação dos fieis católicos
engajados na Igreja e no desenvolvimento
sociopolítico da sociedade.
Boa parte desses grupos são inspirados na
linha dos “bentovacantistas”, que negam a legitimidade de Francisco e que
cultuam a figura de Bento XVI e outros papas do passado. Alguns desses, são
forjados em grupos herdeiros da Tradição, Família e Propriedade, a TFP, e
preferem um modelo de neocristandade e rigorismo doutrinário.
Uma exceção a este elenco é a da Associação
Centro Dom Bosco, que realizou diversas publicações sobre a morte de Francisco,
enfatizando a dimensão devocional do catolicismo ao convocar para a reza de mil
Ave Marias, por exemplo.
O silêncio diante da morte de Francisco
também atingiu influenciadores e personagens públicos do catolicismo. A
influenciadora Pietra Bertolazzi, com 929 mil seguidores, que monetiza o curso
católico Raízes da Verdade, não publicou nenhuma menção à morte do Papa, mesmo
estando na Itália. Foi cobrada por seus próprios seguidores.
Também permaneceram calados o influencer
padre Wander Maia, com 64,9 mil seguidores e fundador da Associação
ultraconservadora Cor Mariae Dulcissimum, localizada na cidade de São Paulo e o
influenciador Jean Rodrigues, com 213 mil seguidores, ativista pró-natalista,
autor de Filhos Fortes e defensor do homeschooling. Outra que se calou foi a
atriz pró-vida, Cássia Kis, que tem 346 mil seguidores.
No meio político, a deputada federal católica
Caroline de Toni, do PL catarinense, e o ex-deputado estadual Frederico
D’Ávila, PL de São Paulo, conhecidos por defenderem pautas religiosas e morais
no parlamento, não fizeram qualquer menção pública ao falecimento do Papa.
A deputada federal Chris Tonietto, do PL
fluminense e liderança expressiva do Centro Dom Bosco e conhecida por vocalizar
a pauta antiaborto no Congresso Nacional, fez apenas uma menção breve: “Que
Deus receba sua infinita glória”. Não houve dela pronunciamento parlamentar nem
comentários ao pontificado.
O perfil oficial do falecido filósofo
católico Olavo de Carvalho (com 1,1 milhão de seguidores) divulgou um antigo
tweet escrito por ele em 2015 com os dizeres: “Aviso a quem não sabe: Jesus
Cristo está vivo e passa bem”, numa clara insinuação de que o tradicionalismo
doutrinário permanece vivo, mesmo com a morte de Francisco.
A hostilidade explícita de católicos
ultraconservadores ao legado do Papa se explica pelo fato de que sua figura
passou a ser percebida como símbolo de ruptura à tradição.
Também a página dedicada a homenagear Olavo
de Carvalho, organizada por Thiago Leorne, com mais de 1,3 milhão de
seguidores, não se manifestou. Um significativo silêncio imperou nas redes de
Angela Gandra Martins, Secretária Municipal de Relações Internacionais da
Prefeitura de São Paulo e ex-Secretária da Família no governo Bolsonaro,
conhecida por disputar uma visão católica jusnaturalista do Direito e do seu
trânsito pelo inúmeros grupos pró-vida.
Encontramos manifestações sobre a morte do
pontífice entre atores conservadores católicos que exigem posturas tradicionais
ou que deslegitimam sua proposta ecológica.
Entre eles está o influencer padre Paulo
Ricardo, conhecido por sua influência entre o novo clero católico e na sua
cruzada contra a “ideologia de gênero”, com mais de 2.5 milhões de seguidores.
Outro é Padre José Eduardo de Oliveira e Silva, com 456 mil seguidores,
indicado pela Polícia Federal no inquérito de tentativa de golpe de 8 de
janeiro de 2023. Ambos sacerdotes publicaram vídeos explicativos sobre os ritos
da Sé Vacante.
Já o youtuber católico Bernardo Küster, com
552 mil seguidores, militante anti-teologia da libertação, diretor do
documentário “Eles estão no meio de nós”, frequentemente requisitado pela
Brasil Paralelo, fez uma única publicação com uma oração pela alma do Papa.
Mas, em postagens anteriores, desqualificou a proposta socioambiental de
Francisco mencionando que a “esperança não é ecológica”.
Os sacerdotes têm evitado comentar a Campanha
da Fraternidade de 2025 organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, a CNBB, cujo tema é Ecologia Integral, que está profundamente conectada
à agenda de Francisco. Küster, no entanto, fez diversas publicações contra a
campanha, promovendo um ativismo católico anti-ecológico.
A hostilidade explícita de católicos
ultraconservadores ao legado do Papa se explica pelo fato de que sua figura
passou a ser percebida como símbolo de ruptura à tradição e à “pureza da
doutrina católica”.
A imagem de Francisco, tido como um líder
progressista, se consolidou no imaginário público especialmente por conta da
ascensão da extrema direita global, mas carrega distorções que merecem atenção.
A raiz dessa confusão está na diferença entre a Teologia da Libertação,
fortemente politizada e comprometida com o enfrentamento das desigualdades
estruturais, e a Teologia do Povo, corrente argentina à qual Francisco esteve
vinculado.
Enquanto a primeira propõe a transformação
das estruturas sociais por meio de uma leitura político-teológica do conflito a
partir da luta de classes, a segunda valoriza as expressões de fé da
religiosidade popular e a defesa dos pobres, numa perspectiva teológico-cultural.
A repetição automática do enquadramento do
“papa progressista” reforça a polarização interna da Igreja entre progressistas
e conservadores. No entanto, nossa hipótese é que, no tabuleiro eclesiástico
atual, o que está em jogo é uma inflexão no próprio conservadorismo.
O monitoramento das publicações sobre a morte
de Francisco aponta um padrão de silêncio eloquente ou de manifestações
discretas por parte de atores ultraconservadores.
Esse comportamento revela a correlação de
forças internas: de um lado, o catolicismo progressista projetado em Francisco;
de outro, o avanço de setores que, sob o manto de fidelidade à doutrina,
rejeitam a autoridade papal sempre que contrariados seus interesses
ideológicos. Caberá ao próximo conclave decidir se esse acirramento será
interrompido, pacificado ou mantido, como parte de um catolicismo sempre em
movimento, que, como escreveu Lampedusa no romance O Leopardo, “muda para
continuar sendo o mesmo”.
Fonte: Por Tabata Tesser e Brenda Carranza,
em The Intercept

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