Luiz Marques: O compromisso dos intelectuais
A teoria do “princípio da incerteza”, pela
impossibilidade de medir a quantidade física com precisão absoluta, é adaptada
por outras áreas cognoscitivas. Para Eugênio Bucci, em Incerteza, um ensaio –
como pensamos a ideia que nos desorienta (e orienta o mundo digital) a novidade
está em que: “As big techs, os conglomerados monopolistas globais, imperam nos
nossos dias como companhias mais valiosas de toda a história do capitalismo. O
que elas fizeram? Sequestraram de nós o contato com a incerteza vital, capitalizaram
os riscos, precificaram a ignorância”. Quer dizer, decidem por nós.
A flecha da história foi apropriada pelas
megacorporações que destilam nossas dúvidas de modo a direcionar o consumo de
mercadorias e, inclusive, o voto em candidatos nas eleições. A infocracia
substituiu a partidocracia que mirava o futuro utópico. Em troca, espalhou
pessimismo e desilusão para pavimentar a distopia fascista, depois de décadas
de financeirização da sociedade e do Estado. Não escolhemos; somos escolhidos
pelos algoritmos. Seduzidos e inermes, aceitamos a servidão.
Enquanto isso, a mídia corporativa censura as
notícias positivas sobre as políticas progressistas da nova presidenta do
México, Claudia Sheinbaum, que detém 85% de aprovação nas pesquisas de opinião.
Ocorre algo idêntico no Brasil, onde os comentários sobre o governo Lula 3.0
saem com notas adversativas para pôr sob suspeita a palavra das autoridades
oficiais. As cotas de reparação étnico-raciais são balanceadas com uma hipótese
de aportes insuficientes à educação, mesmo que a acusação leviana não se sustente.
Existe um veto editorial sobre a admissão dos avanços federais.
Os jornais escondem o óbvio ululante, as
conquistas civilizatórias. Importam-lhes os entorpecentes da consciência para
resguardar, incógnita, a realidade. Os noticiários televisivos provocam
catarses de alívios temporários que bloqueiam a compreensão dos “poderes
ocultos” e legitimam as políticas de ajustes fiscais, o rentismo financeiro.
Sem escrúpulos, celebram a pedagogia de fake news para desinformar e manipular
o povo. A máxima hegeliana é invertida pela assertiva “o real é irracional”.
As ideologias são apresentadas como
manifestações alegóricas de sectarismo. O objetivo é, através de startups,
oferecer alternativas ao confronto de classes qual o South Summit em Porto
Alegre. A eticidade e a politicidade se desmancham no formalismo dos modelos
matemáticos sobre o que é possível conhecer, engolir ou cuspir. A tecnologia
chancela uma governabilidade de espetáculo. A democracia perde a validade. A
cidadania é esvaziada de sentido. A política definha no analógico.
• O
palco da política
A estratégia conservadora consiste em
desideologizar as decisões e as visões polarizadas na equação “1% vs 99% da
população”, consentâneo o Movimento Occupy Wall Street. Cala-se sobre a fraude
contábil de R$ 20 bilhões nas Lojas Americanas. Tira-se da cena do crime as
indecentes fortunas. A correlação de forças favorável à hegemonia da moda é
congelada por oráculos da via cibernética.
As sínteses superiores para a dignidade cedem
à mercantilização que converte o conhecimento em informação técnica, na
dinâmica do mercado. Toda privacidade é violada com a captura dos dados, nexos
e associações dos internautas. O complexo explorado pela razão é reduzido ao
maniqueísmo entre o bem e o mal. O espaço público é despublicizado e monetizado
pelo capital imobiliário.
Se a cidade é um lugar privilegiado para
formar lealdades e praticar responsabilidades, é também uma geografia urbana de
atributos pessoais recusados na impessoalidade dos valores contraditórios de
crenças e formas culturais. A ideia da “Nova Ágora” de communards responde à
fragmentação das relações nos locais de moradia, de trabalho e de lazer (vide
as Bets). O espírito de comunidade nas urbanidades é raro, prevalece o
individualismo. Falta a solidariedade cevada no comunitarismo.
Tal decorre da privatização da vida da classe
média, ao se retirar das ruas e das praças crivadas pela violência social.
Inovações tecnológicas reforçam o tranco privatista da existência com
videogames, streamings de filmes e telas de smartphones. Sobram nas artérias de
asfalto os desesperançados, os laboriosos madrugadores e os recicladores do
desperdício que Leonardo Boff designa de “os novos profetas”, reportando-se ao
Primeiro Testamento bíblico. A resiliência implica uma reafirmação da pólis
como palco da política, na acepção etimológica. Nela, trava-se o embate contra
as alienações.
A economia flexível torna dolorosa a noção de
que o próprio projeto de sobrevivência classista dos trabalhadores tem uma
história e um tempo. Sociologicamente o trabalho já não propicia metas de
identidade com significado para erguer a autoestima. A distância entre as
“massas” e as “elites” é abissal. A obsolescência de profissões, sem realocação
da mão de obra, toca o alarme. Desaparecem os cobradores de ônibus; a seguir,
os motoristas, corretores de seguros, operadores de caixa, fiscais de trânsito,
educadores, juízes. Até que não reste nenhuma empatia com o próximo infeliz da
fila. Cabe às vozes universais tomarem partido nos conflitos políticos e nos
impasses da democracia.
• Exercer
a rebeldia
Na coletânea organizada por Dênis de Moraes,
Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise, Immanuel Wallerstein
aponta “uma crise estrutural do nosso sistema-mundo e um período de transição
para um novo sistema” (caótico e ultra-incerto). Nesse contexto de confusão e
medo, a intelligentsia deve esclarecer as mentes e desmistificar messias da
extrema direita para, assim, com criatividade, devolver uma racionalidade às
coisas. Mas sem a garantia da redenção restauradora.
Francisco de Oliveira sublinha a “relação
dialética entre o intelectual, o conhecimento e o espaço público”, por
excelência o grande teatro da intelectualidade para colocar a conhecença a
serviço da liberdade, não da dominação. O fazer intelectivo trança demandas de
pensamento com a ação para construir novos consensos, mudanças, desafios. A
academia tem de ir além da especialização para que os seus quadros exercitem
uma perspectiva holística do incontornável cenário socioeconômico.
Enclaves paradigmáticos dos acadêmicos
rivalizam com empuxes mercadológicos da digitalização. A propagação do
desassossego faz parte do ofício em defesa de um olhar totalizante do momento
histórico-conjuntural. Incide nas disputas da rede emaranhada de definições da
inteligência artificial (IA) sobre o “knowledge”. Ademais, protege as
universidades dos ataques difamatórios espelhados nas “executive orders” de
Donald Trump, nos Estados Unidos. Por conseguinte, não é do silêncio dos
intelectuais de que se trata, senão de seu silenciamento pelos obscurantismos
de sociopatas.
Abduzidas pelo produtivismo inócuo, as
atividades institucionais afastam-se de problemas cruciais. “Quem sabe a
Universidade de São Paulo vá se interessar pela ‘questão negra’. Isso falta à
USP. Quem se descuida da totalidade jamais será um intelectual vigilante e
autêntico, para exercer uma rebeldia contra os conceitos assentados,
respeitáveis, mas falsos”, salienta Milton Santos. As velhas instituições
precisam sacudir sua apatia moral e estabelecer as pontes de extensão com a
sociedade.
Last but not least, vale o registro da
contribuição praxeológica de Michael Löwy: “A primeira tarefa de uma
resistência cultural eficaz é tratar de estabelecer vínculos e conexões entre
as reivindicações democráticas e as diversas lutas sociais”. Dos movimentos,
afora a autonomia, espera-se a união de esforços contra o arbítrio imperial, o
mando patriarcal, o racismo, o ecocídio e o vetor desumano do neoliberalismo.
Dos intelectuais, o compromisso de diálogo com os sujeitos da transformação e
da superação do status quo, rumo à sociabilidade do século XXI. “Para um mundo
onde caibam muitos mundos” – na fórmula acolhedora e revolucionária apregoada
pelos zapatistas, em Chiapas/MX.
Fonte: A Terra é Redonda

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