Como diários falsos de Hitler enganaram a
imprensa britânica
No dia 25 de abril de 1983, 42 anos atrás, a
respeitada revista alemã Stern publicou o que se acreditava ser o furo
jornalístico mais espetacular da História: os diários particulares de Adolf
Hitler (1889-1945), até então desconhecidos.
Para demonstrar sua extraordinária
exclusividade frente à imprensa mundial, a revista semanal organizou, naquele
mesmo dia, uma entrevista coletiva em Hamburgo, na Alemanha.
A reportagem, de fato, dominaria as manchetes
mundiais – mas não pelos motivos imaginados pela revista.
Três dias antes, o editor da Stern em
Londres, Peter Wickman, declarou à BBC que eles estavam "absolutamente
convencidos" de ter em mãos os diários autênticos de Adolf Hitler.
"Nós duvidamos muito no começo, mas
pedimos a um grafólogo que os examinasse e um especialista comparou o
papel", contou ele.
"Consultamos historiadores, como o
professor [Hugh] Trevor-Roper [1914-2003], e todos eles têm certeza de que os
diários são verdadeiros."
• A
descoberta e a compra
Os registros manuscritos cobriam os anos de
1932 a 1945, que incluem todo o período do Terceiro Reich de Hitler.
"São 60 diários", contou Wickman à
BBC. "Eles se parecem um pouco com cadernos escolares, mas com capa
dura."
"Eles têm carimbos no lado externo com
uma suástica e uma águia e, dentro, é claro, a letra gótica de Hitler, muito
parecida com patas de aranhas."
A Stern acreditava que sua descoberta poderia
reescrever o que se sabia até então sobre o líder nazista. E o conteúdo dos
diários, certamente, era revelador. Ele mostrava um lado sensível pouco
conhecido do Führer.
Os manuscritos detalhavam tudo, desde a luta
de Hitler contra a flatulência e a halitose e as pressões da sua namorada, Eva
Braun (1912-1945), para conseguir entradas para os Jogos Olímpicos, até
lembretes para enviar um telegrama de aniversário para o então líder soviético
Josef Stalin (1878-1953) — "a velha raposa".
Os cadernos também pareciam indicar, de forma
um tanto surpreendente, que o líder nazista não sabia do Holocausto sendo
conduzido em seu nome.
Os diários teriam sido supostamente
descobertos por um jornalista da Stern chamado Gerd Heidemann (1931-2024). Ele
já era conhecido na revista pela sua obsessão por objetos nazistas.
Em 1973, a Stern o encarregou de preparar uma
reportagem sobre um iate dilapidado que, um dia, pertenceu ao vice-comandante
de Hitler, Hermann Göring (1893-1946). Na ocasião, Heidemann gastou uma fortuna
para comprar e restaurar o iate.
Ele também começou um caso amoroso com a
filha de Göring, Edda (1938-2018), que o apresentou a diversos antigos
nazistas. E foi por meio destes contatos, segundo Heidemann, que ele tomou
conhecimento dos diários de Hitler.
Heidemann afirmou que o avião que
transportava os diários havia caído. Os manuscritos teriam sido salvos do
acidente e armazenados em um palheiro.
Nos anos que se seguiram, eles teriam sido
enviados para um colecionador na antiga Alemanha Oriental (1949-1990), que
estava disposto a vendê-los.
O repórter negociou o acordo de compra,
agindo como intermediário entre a fonte alemã-oriental e a revista.
A promessa de uma sensacional reportagem
exclusiva em todo o mundo, fornecendo uma visão até então desconhecida da mente
do ditador nazista, foi irresistível para a Stern. Mas a revista estava
decidida a controlar rigidamente quem ficaria sabendo do furo jornalístico.
Seus editores contrataram especialistas em
caligrafia para autenticar os diários, comparando os manuscritos com documentos
"genuínos" de Adolf Hitler. Mas eles forneceram apenas algumas
páginas selecionadas dos cadernos para que os especialistas as observassem.
Por fim, a Stern pagou pelos volumes cerca de
9,3 milhões de marcos alemães (2,3 milhões de libras, ou cerca de R$ 17,5
milhões, pela cotação atual) – uma soma exorbitante, que levou a revista a
armazenar os diários em um cofre na Suíça, para maior segurança.
• Verdadeiro
ou falso?
O primeiro historiador a examinar os diários
foi o professor Hugh Trevor-Roper, também conhecido como Barão Dacre de
Glanton.
Em 1947, ele escreveu o livro Os Últimos Dias
de Hitler (Ed. Guerra & Paz, 2022), que lhe deu grande prestígio no setor
acadêmico. Trevor-Roper era considerado um dos principais especialistas no
ditador nazista.
O professor também foi diretor independente
do jornal britânico The Times – que, dois anos antes, havia sido adquirido pelo
empresário Rupert Murdoch, junto com seu periódico associado, The Sunday Times.
Inicialmente, Trevor-Roper suspeitou dos
diários. Mas ele viajou até a Suíça para examiná-los pessoalmente.
Sua opinião começou a mudar quando ele soube
da história original dos manuscritos. Ele também foi informado, erroneamente,
que exames químicos teriam concluído que eles eram anteriores à Segunda Guerra
Mundial (1939-1945).
Mas o que realmente pesou para o historiador
foi o imenso volume de material envolvido.
"O que mais surpreendeu Hugh
Trevor-Roper e certamente me impressionou, como leigo, quando vi o material
original, foi a sua enorme escala", contou à BBC o então editor do The
Times, Charles Douglas-Home (1937-1985), em 22 de abril de 1983. "O imenso
escopo deste arquivo."
"Não são apenas cerca de 60 volumes de
cadernos escritos à mão por Hitler que estão ali. Há cerca de 300 dos seus
desenhos, fotografias e documentos pessoais, como seu cartão de visitas."
"Lembro que há os desenhos que ele
apresentou à escola de artes quando era jovem e desejava entrar naquela
escola", prosseguiu ele. "E existe uma pintura, um quadro a óleo e
assim por diante."
"Um falsificador teria que ser muito bom
para forjar tudo aquilo."
• Surgem
as dúvidas
Trevor-Roper se convenceu de que os diários
eram verdadeiros. Ele chegou a escrever um artigo para o Times confirmando sua
autenticidade e declarando que os eventos históricos precisariam ser
reavaliados à luz dos manuscritos.
Quando foi divulgada a existência dos diários
de Hitler, surgiu uma guerra de ofertas sobre seus direitos de publicação em
série.
Murdoch, dono do The Sunday Times, chegou a
viajar para Zurique, na Suíça, para negociar pessoalmente um acordo.
Com o contrato de publicação em série
assinado, a Stern organizou apressadamente uma entrevista coletiva para
anunciar a publicação dos diários de Hitler para o mundo.
Mas, antes mesmo da grandiosa apresentação
dos cadernos, surgiram dúvidas sobre sua veracidade, a começar pela própria
equipe do The Sunday Times, que já havia se queimado no passado.
Em 1968, o jornal pagou um adiantamento por
diários supostamente escritos pelo líder fascista italiano Benito Mussolini
(1883-1945), cuja veracidade também havia sido confirmada – e por ninguém menos
que seu filho.
"Mas, no final, eles eram falsificações
criadas por duas senhoras que moravam em Vercelli, na região de Milão [na
Itália]", contou em 2011 ao programa da BBC Witness History o jornalista
Phillip Knightley (1929-2016), que trabalhou na equipe investigativa do The
Sunday Times.
• A
exposição da farsa
Murdoch tinha tanta certeza sobre os diários
que, mesmo com as reservas do seu editor Frank Giles (1919-2019), correu para
iniciar a publicação da série impressa no The Sunday Times, um dia antes do
anúncio da Stern à imprensa. A manchete do jornal dizia "exclusividade
mundial".
Giles telefonou para Trevor-Roper, para se
tranquilizar em relação à história. E acabou ouvindo o historiador confessar
que não só ele tinha muitas dúvidas, como estava dando um "giro de 180
graus" sobre a autenticidade dos diários.
"Todos na sala, todos os executivos do
jornal afundaram nas cadeiras e colocaram as mãos na cabeça", conta
Knightley, "pois havíamos perdido nosso principal verificador".
"Ficou claro que a história estava
totalmente errada."
O jornal ainda poderia ter parado as máquinas
e alterado a primeira página. Mas, quando Giles telefonou para o dono do The
Sunday Times, "Murdoch disse 'só porque Dacre vacilou com isso o tempo
todo, dane-se ele, vamos publicar'", relembra Knightley.
Para a Stern, tudo ficaria ainda pior na
entrevista coletiva do dia seguinte.
Depois que o editor-chefe da revista, Peter
Koch (1938-1989), declarou estar "100% convencido de que Hitler escreveu
cada palavra naqueles cadernos", o Barão Dacre – o mesmo historiador que
havia confirmado sua autenticidade – reconheceu ao ser questionado que estava
repensando o assunto.
Para o olhar horrorizado dos executivos da
Stern, Trevor-Roper declarou que não havia conseguido estabelecer a relação
entre o acidente de avião e os supostos diários – e que ele foi forçado a fazer
um julgamento apressado.
"Devo dizer, como historiador, que
lamento que os métodos habituais de verificação histórica, talvez por
necessidade, tenham sido sacrificados até certo ponto em função das exigências
do furo jornalístico", declarou ele.
'O exuberante odor da falsificação'
No dia seguinte à caótica entrevista
coletiva, o negociante de autógrafos americano Charles Hamilton (1913-1996)
declarou ao programa BBC Breakfast que, assim que viu as páginas dos diários,
ele sentiu "o exuberante odor das falsificações".
Hamilton afirmou que sabia que a assinatura
não era autêntica, pois ele via documentos falsos de Hitler constantemente.
"Logo tudo ficará definido sem qualquer
dúvida (e sem nenhum painel de especialistas, que acho supérfluo no momento),
todo o assunto irá morrer e será uma grande farsa na história da
humanidade", previu ele.
E foi o que aconteceu. Duas semanas depois,
uma rigorosa análise forense expôs que os diários eram falsos.
Como Hamilton indicou à BBC, a suposta
assinatura de Hitler não era verdadeira e, mais do que isso, os exames químicos
revelaram que o papel, a cola e a tinta dos manuscritos só começaram a ser
fabricados depois da Segunda Guerra Mundial.
Os diários também estavam salpicados de
erros, frases modernas e imprecisões históricas. Algumas referências
mencionavam informações de que Hitler não poderia ter conhecimento na época.
Em vista destas revelações, o jornal The
Sunday Times rapidamente abandonou a publicação da série e divulgou um pedido
de desculpas. A Stern também se desculpou publicamente por ter acreditado na
farsa.
• Reputações
em baixa, circulação em alta
Pressionado, Heidemann revelou que a fonte
alemã-oriental que forneceu os diários era Konrad Kujau (1938-2000), um
falsificador que se descobriu ser o autor daquele trabalho.
Kujau era um artista experiente, mas suas
falsificações estavam longe da perfeição.
Em busca de inspiração, ele plagiou grandes
trechos do livro Hitler: Speeches and Proclamations 1932-1945 ("Hitler:
discursos e proclamações 1932-1945", em tradução livre), do historiador
alemão Max Domarus (1911-1992).
Por conta disso, Kujau copiou, palavra por
palavra, alguns dos erros factuais e cronológicos publicados na primeira edição
do livro.
Para tentar dar aos diários uma impressão
mais pessoal, ele imaginou um lado mais prosaico da vida do Führer, incluindo
trechos como "não posso nem mesmo sair do trabalho e visitar Eva",
"preciso ir ao correio enviar alguns telegramas" e "Eva diz que
tenho mau hálito".
Kujau chegou a ter dificuldades com as
sofisticadas iniciais góticas utilizadas nas capas dos diários. Ele chegou a
incluir acidentalmente as iniciais FH em vez de AH.
O falsificador também tentou envelhecer os
cadernos, simplesmente despejando chá sobre eles e os esfregando sobre a mesa.
Kujau foi favorecido pela autenticação
inicial dos diários porque era um prolífico falsificador de objetos nazistas.
Por isso, muitos dos documentos "genuínos" fornecidos pela Stern aos
especialistas, para que eles comparassem a escrita de Hitler, na verdade,
também haviam sido produzidos pelo próprio Kujau.
O falsificador foi preso pela polícia e
confessou sua participação na farsa. Ele chegou a demonstrar sua culpa,
escrevendo sua confissão com letra no estilo de Hitler.
Em 1985, Kujau foi declarado culpado de
fraude e falsificação e condenado a quatro anos e meio de prisão.
Novas investigações da polícia concluíram que
Heidemann também inflacionou os preços que, segundo ele, sua fonte havia pedido
pelos diários – e ficou com parte do dinheiro pago pela Stern.
Aparentemente, ele pretendia custear seu
estilo de vida extravagante, a manutenção do seu iate nazista e sua propensão a
comprar cada vez mais objetos que pertenceram a ditadores. Ele afirmaria mais
tarde ser o dono de uma cueca do ex-presidente de Uganda Idi Amin Dada
(1928-2003).
Como Kujau, Heidemann foi condenado por
fraude em 1985 e sentenciado a quatro anos e oito meses de prisão.
No seu julgamento, ele insistiu que também
havia sido enganado, mas Kujau sempre afirmou que o repórter sabia que os
diários eram falsos.
Após o escândalo, a reputação de Trevor-Roper
como historiador ficaria manchada para sempre. Koch e outro editor da Stern
perderam seus empregos e Giles foi removido do cargo de editor do The Sunday
Times.
O próprio Murdoch declararia ao Inquérito
Leveson sobre ética na imprensa britânica, em 2012, que sua decisão de publicar
a reportagem "foi um dos maiores erros que cometi e assumo total
responsabilidade por ele. Terei que conviver com isso pelo resto da minha
vida."
Mas a circulação do seu jornal disparou com a
decisão de publicar a história falsa.
E, como Murdoch insistiu em uma cláusula
contratual obrigando a Stern a devolver todo o dinheiro pago pelo The Sunday
Times, caso se comprovasse que os diários eram falsos, o magnata da imprensa só
se beneficiou financeiramente da farsa histórica.
Fonte: BBC Culture

Nenhum comentário:
Postar um comentário