Vírus comuns podem aumentar o risco de
Alzheimer?
Durante décadas, a pesquisadora Ruth Itzhaki
diz que seu trabalho foi ignorado, tratado com hostilidade e chegou a ser
classificado por outros especialistas como "ruim", "lixo" e
"ridículo".
Ela foi uma das primeiras neurocientistas a
suspeitar — e demonstrar — que vírus comuns podem ter um papel importante no
desenvolvimento da doença de Alzheimer
"Nós não conseguíamos que nossos artigos
científicos fossem aceitos e publicados em jornais acadêmicos. Com isso, não
tínhamos acesso ao financiamento para novas pesquisas. E, sem dinheiro
suficiente, era difícil seguir com os estudos", lembra Itzhaki, que é
professora emérita da Divisão de Neurociências da Universidade de Manchester,
no Reino Unido.
"Foi extremamente difícil e lidamos com
a falta de dinheiro o tempo todo", complementa a pesquisadora, que
atualmente é professora visitante do Instituto de Envelhecimento Populacional
da Universidade de Oxford.
Itzhaki acredita que, se o trabalho dela e de
outros investigadores tivesse recebido a devida atenção e incentivo anos atrás,
seria possível ter hoje uma compreensão muito mais ampla sobre as causas da
demência e as melhores formas de combatê-la.
Mas o tempo das vacas magras para esse ramo
da ciência parece ter chegado ao fim.
Nos últimos três ou quatro anos, a publicação
de novas pesquisas deu um novo ânimo ao campo que busca pistas na virologia
para entender as neurociências — e motivou o início dos primeiros ensaios
clínicos com vacinas e antivirais como potenciais ferramentas de prevenção do
Alzheimer.
Conheça a seguir as evidências disponíveis
sobre o papel de agentes infecciosos no apagamento das memórias e nas
dificuldades de raciocínio.
• Vírus
escondidos e os mistérios do Alzheimer
Para saber como o conhecimento nessa área tem
evoluído, é preciso antes entender dois conceitos básicos e bem estabelecidos.
O primeiro deles é que alguns vírus têm a
capacidade de ficar "escondidos" por muito tempo, praticamente por
toda a vida, em alguns reservatórios do organismo.
É o caso do herpes simples do tipo 1 (que
afeta a boca), do tipo dois (que atinge a região genital) e do varicela-zoster
(causador da catapora).
Após a infecção inicial, esses patógenos
permanecem no corpo e podem ser reativados de tempos em tempos.
No caso do herpes simples, em momentos de
baixa imunidade, surgem aquelas bolhas e feridas típicas na pele.
Já o varicela pode gerar um quadro chamado
herpes zoster, marcado por erupções cutâneas bem dolorosas num trecho do corpo,
como parte do rosto, do abdômen ou das costelas.
O segundo conceito tem a ver com o Alzheimer
em si. Em meados dos anos 1990, a chamada "cascata amiloide" ganhou
força como a principal explicação para esse tipo de demência.
Essa linha de raciocínio sustenta que tudo
começa com uma inflamação no cérebro. Com o tempo, há o acúmulo de uma proteína
chamada beta-amiloide do lado de fora dos neurônios.
Depois, a TAU — um outro tipo de proteína —
começa a ser estocada em grandes quantidades no interior das células nervosas.
Esse processo dificulta a conexão entre
diferentes partes da cabeça e causa a morte dos neurônios — o que se traduz na
progressão da perda de memórias, da dificuldade de raciocínio e dos demais
sintomas do Alzheimer.
"Mas ainda não sabemos o que faz essas
duas proteínas se depositarem no cérebro", acrescenta a neurologista
Roberta Diehl Rodriguez, pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (FMUSP).
• Seriam
vírus os gatilhos da demência?
Foi nessa busca por respostas para o fator
que iniciaria a cascata amiloide que alguns pesquisadores começaram a suspeitar
dos agentes infecciosos.
Entre as décadas de 1980 e 90, a professora
Itzhaki fez os primeiros trabalhos que detectaram o material genético do herpes
simples tipo 1 — um vírus extremamente comum, que afeta ao redor de 70% da
população — no cérebro humano.
"Nós já sabíamos que esse vírus pode
causar uma encefalite [uma inflamação do sistema nervoso], um quadro bem raro,
mas muito grave", descreve ela.
"Começamos a especular, então, se a
reativação do herpes ao longo da vida não poderia desencadear uma série de
eventos que culminariam em danos às células do sistema nervoso, que
eventualmente levassem à morte delas."
Esses trabalhos pioneiros foram os primeiros
a encontrar agentes infecciosos no cérebro — até então, havia praticamente um
consenso de que o Sistema Nervoso Central era uma região praticamente protegida
da ação dos vírus.
Algo que chamou a atenção dos pesquisadores à
época era que o herpes marcava presença tanto na cabeça de pessoas
diagnosticadas que morreram com Alzheimer quanto naquelas que não apresentaram
a doença durante a vida.
Na avaliação deles, deveriam existir alguns
outros fatores, como a genética, que pudessem explicar por que alguns
indivíduos infectados desenvolviam a demência e outros não.
Nos anos 1990, o time liderado por Itzhaki
fez outra descoberta relevante: eles observaram em cobaias de laboratório que o
herpes simples costuma se concentrar em regiões do cérebro que apresentam uma
grande deposição da beta-amiloide.
Isso gerou uma nova teoria: será que essa
proteína é produzida pelo sistema nervoso como uma defesa, com o objetivo de
"capturar" o vírus e inativá-lo?
Sabe-se que essas moléculas têm um aspecto
grudento — e poderiam supostamente "agarrar" o patógeno para
dificultar a sua replicação antes que uma resposta imune mais elaborada fosse
iniciada.
A grande questão aqui é que o herpes tem
aquela característica de ficar "escondido" e se reativar de tempos em
tempos ao longo da vida.
No cérebro, isso causaria uma inflamação
repetida e geraria a fabricação da beta-amiloide com uma certa frequência.
Com o passar do tempo, o que antes funcionava
como um mecanismo de proteção se transforma num problema: como descreve a
cascata amiloide, o acúmulo da proteína faz mal aos próprios neurônios e
eventualmente provoca a morte deles.
Vale lembrar aqui que essa ainda é uma
teoria, que precisa ser comprovada em diversas pesquisas e aceita como um
consenso entre especialistas da área.
• O
papel das vacinas
Recentemente, uma nova leva de trabalhos
encontrou mais evidências do possível papel de agentes infecciosos no
desenvolvimento do Alzheimer.
Um deles foi publicado no início de abril na
revista Nature — e avaliou o papel da vacinação nesse contexto.
Em suma, pesquisadores da Universidade
Stanford, nos Estados Unidos, identificaram uma oportunidade a partir de uma
decisão de saúde pública que aconteceu no País de Gales.
Em 2013, o governo local começou um esforço
de vacinação contra o herpes zoster e estabeleceu um limite bem claro.
Pessoas que haviam nascido entre os dia 2 de
setembro de 1933 e 1 de setembro de 1934 poderiam tomar o imunizante. Já
aquelas que nasceram antes ou depois dessa data estavam fora da campanha.
"Nós tínhamos uma situação muito
parecida a de um estudo clínico: dois grupos muito similares em diversos
aspectos, que poderiam ser comparados, cuja diferença era a elegibilidade para
tomar a vacina contra herpes zóster", resume o pesquisador Pascal
Geldsetzer, professor assistente de Medicina, Epidemiologia e Saúde
Populacional da Universidade Stanford.
Os resultados da análise mostraram que, entre
as pessoas que receberam o imunizante, a probabilidade de um diagnóstico de
demência nos sete anos seguintes era 3,5% menor — uma taxa considerada
significativa.
"Pela primeira vez, temos evidências que
provavelmente revelam uma relação de causa e efeito entre a vacinação contra o
herpes zóster e a prevenção da demência. Nosso estudo mostrou que esse efeito
protetor é grande e supera as ferramentas farmacológicas disponíveis hoje para
tratar a demência", comemora o pesquisador.
Mas o que explica esse efeito? Geldsetzer
aponta dois possíveis caminhos.
"O primeiro tem a ver especificamente
com o vírus varicela [cuja reativação causa o herpes zoster]. Um crescente
corpo de evidências sugere que vírus que atuam preferencialmente no sistema
nervoso e permanecem ali durante boa parte da vida podem estar implicados no
desenvolvimento da demência", responde ele.
Nesse sentido, a vacinação contra o herpes
zoster bloqueia a reativação do vírus — e, com isso, em teoria, impediria que o
agente infeccioso servisse de gatilho para a inflamação e a produção de
beta-amiloide.
"O segundo mecanismo é potencialmente
independente do vírus varicela. Temos cada vez mais provas de que as vacinas
produzem efeitos no sistema imunológico que são muito mais amplos do que apenas
estimular a produção de anticorpos contra um patógeno específico",
acrescenta o pesquisador.
"E esse efeito imunológico mais amplo,
por sua vez, pode trazer benefícios contra outras doenças", complementa
ele.
O autor do trabalho recém-publicado quer
agora fazer um teste clínico convencional — que envolve recrutar voluntários,
dividi-los em grupos e avaliar os efeitos da vacinação contra a demência ao
longo do tempo — e corre para encontrar financiamento para custear esse
trabalho.
"Se a vacina contra o herpes zóster
realmente for capaz de prevenir ou atrasar o aparecimento da demência, essa
seria uma enorme descoberta", diz ele.
• Perguntas
sem respostas
Rodriguez entende que as investigações sobre
o papel dos vírus como gatilhos para o Alzheimer são importantes para
aprofundar o conhecimento sobre a doença, que afeta pelo menos 57 milhões de
pessoas ao redor do mundo.
No entanto, ela entende que ainda são
necessários mais estudos para comprovar que isso de fato acontece.
A especialista destaca que uma parte dos
artigos científicos sobre o tema publicados até agora foram feitos com
camundongos.
"E esses animais não desenvolvem
Alzheimer naturalmente. Nós precisamos modificá-los geneticamente em
laboratório para que ele apresente a neuroinflamação e o acúmulo de
beta-amiloide", detalha a pesquisadora da FMUSP.
"Talvez precisássemos avaliar outras
cobaias que fossem mais semelhantes aos seres humanos e desenvolvessem a forma
esporádica desse tipo de demência, que não está relacionada à genética e é o
tipo mais frequente na população."
"A depender dos resultados, poderíamos
evoluir para pesquisas com seres humanos", complementa ela.
A neurologista acredita que, caso esse papel
dos vírus no cérebro seja confirmado, isso pode representar uma excelente
notícia — afinal, já temos algumas vacinas que impedem a reativação de alguns
vírus (como a que protege contra o herpes zoster) e há antivirais baratos e
acessíveis que bloqueiam a replicação de patógenos (como o herpes simples).
Embora não existam métodos para eliminar
completamente esses vírus do organismo após a infecção inicial, há sempre a
possibilidade de estudar e desenvolver novos imunizantes contra certos
patógenos ou criar remédios para impedir a reativação deles no organismo.
"Se alguns vírus de fato desencadeiam o
Alzheimer, nós estamos diante de um fator de risco modificável e teríamos
ferramentas para prevenir novos casos", especula a neurologista.
"Até porque ainda não temos um
tratamento eficaz, que seja suficiente para modificar o curso dessa
doença", complementa ela.
Itzhaki concorda que ainda não existe uma
prova cabal, que aponte os vírus como causa e o Alzheimer como efeito.
"Mas não há dúvidas de que existe uma
forte associação entre as duas coisas. Temos muitas evidências indiretas que
apontam nesse sentido", diz ela.
Para Geldsetzer, muitas dessas questões
poderão ser respondidas em testes clínicos em andamento ou planejados para os
próximos anos.
"Em Medicina, precisamos provar que uma
nova medida, como um remédio ou uma vacina, funciona por meio de um estudo
randomizado. Nesse tipo de pesquisa, você seleciona um número determinado de
participantes e sorteia aleatoriamente quem vai receber uma intervenção ou
não", explica ele.
Um desses testes clínicos, inclusive,
acontece atualmente na Universidade Columbia, nos EUA, e avalia um antiviral
chamado valaciclovir, já prescrito contra o herpes simples.
A ideia é entender se esse remédio pode
reduzir a perda de memórias e a dificuldade de raciocínio entre pacientes que
foram diagnosticados com Alzheimer em estágio inicial.
A última pergunta que fica, então, é: por que
demorou tanto tempo para que o papel dos vírus na demência recebesse a devida
atenção?
"Acho que muitas pessoas que trabalham
nesse campo não entendem muito sobre virologia e acham que, após a infecção
inicial, os vírus simplesmente são eliminados do corpo", especula a
professora da Universidade de Manchester.
"Alguns também temiam que a teoria da
cascata amiloide fosse desbancada. Mas nosso trabalho nunca teve esse
objetivo."
"Entendemos que as proteínas
beta-amiloide e TAU são obviamente importantes para o desenvolvimento do
Alzheimer."
"Só suspeitamos que elas não são a
causa, mas, sim, a consequência de um processo que acontece no cérebro",
conclui ela.
Fonte: BBC News Brasil

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