Governo escanteia MMA e ignora riscos em política nacional de data centers
Estão a pleno vapor no governo federal as
discussões sobre uma política nacional de data centers – infraestrutura física
gigantes, do tamanho de prédios, com máquinas responsáveis por processar tudo o
que fazemos na internet, de e-mails à inteligência artificial. A robusta
articulação interministerial visa aproveitar o que o governo enxerga como uma
“janela de oportunidade” para atrair investimentos no setor. Mas uma pasta
crucial foi escanteada das conversas: o Ministério do Meio Ambiente, o MMA.
Desde o início do governo Lula, mais de 80
reuniões com pelo menos 200 autoridades federais na Esplanada dos Ministérios
trataram de data centers, segundo dados da agenda oficial das autoridades. O
Ministério do Meio Ambiente não participou de nenhuma. Enquanto isso, o
discurso do setor privado é incorporado às tratativas.
A ausência é preocupante pelo potencial
impacto ambiental dos data centers, especialmente em relação ao uso de água e
energia. É também competência do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama,
órgão presidido pelo MMA, a elaboração de padrões e procedimentos relativos à
avaliação dos efeitos ambientais dessas estruturas.
“A implementação dessas infraestruturas
pressupõe impactos socioambientais e climáticos gigantes: consumo intensivo de
energia e água, uso de território, geração de resíduos — tudo isso em um
contexto em que o mundo já vive um colapso socioambiental causado, justamente,
por decisões que desconsideraram essas mesmas questões no passado”, disse ao
Intercept Brasil Julia Catão Dias, coordenadora do programa de Consumo
Responsável e Sustentável do Instituto de Defesa de Consumidores, o Idec.
Segundo ela, a implementação de data centers
não pode ser guiada exclusivamente por interesses econômicos e pela lógica da
atração de investimentos a qualquer custo.
Enquanto o meio ambiente fica em segundo
plano no debate, o setor privado tem sido presença frequente nas reuniões do
governo federal. Mais de 70% dos compromissos contaram com participantes do
setor privado.
Em um deles, em janeiro deste ano,
autoridades do Ministério da Indústria, Desenvolvimento e Comércio, o MDIC,
discutiram a política nacional de data centers com três representantes da
Brasscom, uma entidade de lobby que representa a indústria de telecomunicações
e tem como associadas big techs como Amazon, Microsoft e IBM.
O MDIC informou ao Intercept que a elaboração
da política nacional de data centers é coordenada pela Casa Civil e conta com a
participação de outros ministérios e entidades do governo federal, como os
ministérios da Fazenda, de Minas e Energia, das Telecomunicações, da Ciência,
Tecnologia e Inovação e da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, além do
Banco Nacional do Desenvolvimento, o BNDES. “Outras pastas, como o Ministério
do Meio Ambiente, podem participar da construção da política com o avançar dos
debates”, cita a nota.
O MMA, por sua vez, disse que “não
participou, até o momento, de debates ou discussões promovidas pelo governo
federal ou por outros ministérios com o objetivo de elaborar uma política
nacional para a atração de data centers no Brasil” e tampouco foi “chamado a
participar de nenhuma iniciativa nesse sentido”.
A pasta acrescentou ainda que o Conama não
foi demandado pela sociedade civil, órgãos estaduais e municipais de meio
ambiente, órgãos do governo federal, associações produtivas e nem por
integrantes do conselho, para debater a matéria.
De acordo com o MMA, a avaliação para
instalações de data centers é competência do Conselho Nacional de Recursos
Hídricos, ligado ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, o
MIDR, e, em nível federal, da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico.
Questionado via assessoria de imprensa, o
MIDR disse que o Conselho Nacional de Recursos Hídricos não foi convidado para
as discussões sobre a política e que também não foi acionado para realizar
avaliações e outorgas de disponibilidade hídrica para instalação de data
centers. A Agência Nacional de Águas também informou que não recebeu pedidos de
outorgas de direitos de uso para data centers e tampouco tem participado de
discussões sobre a política nacional.
A ausência do MMA é sintomática de um modelo
fragmentado de fazer política pública em detrimento de uma visão sistêmica
sobre infraestrutura e sustentabilidade, avalia Clauber Leite, diretor de
Energia Sustentável e Bioeconomia do Instituto E+.
“Data center envolve muito mais do que só
meio ambiente, energia, indústria, tecnologia, planejamento urbano, segurança
hídrica, então tem todos esses fatores que são envolvidos e não dá para tratar
isso somente como uma política industrial ou de conectividade”, disse Leite.
“A discussão de marcos legais nessa área deve
incluir o MMA e os órgãos ambientais fiscalizadores, em especial, pelo
necessário controle de tais atividades”, pontua Fábio Takeshi Ishisaki,
assessor de políticas públicas do Observatório do Clima. Ele destaca ainda
outros impactos do setor, como a exploração de minérios e a geração e
destinação de resíduos.
O segmento de data centers, em geral, defende
a dispensa de licenciamentos ambientais para acelerar e desburocratizar os
investimentos no setor.
Em 2023, o Ministério de Desenvolvimento,
Indústria e Comércio, MDIC, publicou um estudo encomendado à Agência Brasileira
de Desenvolvimento Industrial, a ABDI, para embasar a política nacional de data
centers. E ele incorpora esse discurso.
Encomendado em 2020 durante a gestão do então
ministro Paulo Guedes, o relatório foi feito pelas empresas Frost &
Sullivan e Prospectiva, que atuam na área de relações governamentais, e foca em
maneiras de atrair investimentos para desenvolver data centers no Brasil. A
elaboração do estudo custou R$1,1 milhão de reais e foi pago com recursos de um
convênio entre o então Ministério da Economia e a ABDI.
Uma das ações sugeridas é justamente a
desburocratização com a dispensa de licenciamentos pelo Ministério do Meio
Ambiente. O estudo cita que data centers são projetos de baixo impacto e que,
portanto, não precisam de licenciamento. Um dos países apontado como exemplo
disso é o Chile. Mas o Chile é, na verdade, um alerta.
O país possui hoje 22 data centers, dos quais
16 estão na região metropolitana da capital Santiago. Em dezembro, o governo
anunciou um plano nacional que inclui 30 novos projetos. Isso enquanto o país
atravessa uma seca que tem previsão de durar até 2040.
Mas governo e empresas têm enfrentado
resistência. Em 2019, quando o Google anunciou o plano de construir um segundo
data center em Santiago, um grupo de ativistas ambientais chamado Movimento
Socioambiental pela Água e Território, Mosacat, analisou a documentação e
calculou que o data center obteve autorização para extrair 7 bilhões de litros
por ano.
Entre 2019 e 2023, o grupo realizou uma série
de manifestações que levaram um tribunal de Santiago a analisar o projeto. No
início de 2024, a Justiça suspendeu o projeto até que o Google reveja o impacto
ambiental.
Questionado sobre o estudo da Frost &
Sullivan e Prospectiva, o MDIC disse que ele foi encomendado em 2020 e
publicado em 2023 e que ele foi apenas “uma das fontes de informações” usadas
pelo ministério e outros órgãos federais para formular a política pública de
data centers.
A pasta disse ainda que o conteúdo do
documento “reflete o estudo e pesquisas feitos pela empresa contratada, não
representando o posicionamento oficial das instituições públicas”. Já o MMA
informou que não havia sido comunicado, até a publicação desta reportagem,
sobre a sugestão de dispensa de licenciamentos feita no estudo.
• Janela
de oportunidade mira ‘refinarias de dados’
Não é exagero dizer que todos os olhos estão
voltados para o Brasil quando se trata de data centers. Em comparação aos
Estados Unidos e à Europa, o Brasil tem uma das matrizes energéticas mais
limpas do mundo, com 44,8% de fontes renováveis. Enquanto isso, nos Estados
Unidos, o presidente Donald Trump ventilou a ideia de usar carvão para atender
à demanda energética da IA.
“O Brasil tem energia sobrando, limpa. Então,
nós podemos atrair investimentos para cá com inteligência”, disse o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, em programa da TV Brasil, no final de março.
Em um evento promovido em 2022 pela Agência
Brasileira de Desenvolvimento Industrial, ABDI, representantes de big techs
compararam o armazenamento de dados ao “novo petróleo” e os data centers às
refinarias.
“A comparação é tão sintomática quanto
absurda: estamos diante de um setor que assume, com todas as letras, estar
seguindo os passos da indústria fóssil – justamente aquela que nos levou à
emergência climática que hoje ameaça a própria vida no planeta”, ressalta Dias,
do Idec.
Para ela, é urgente que a proteção da
natureza esteja centralizada no debate sobre data centers. “Se os data centers
são mesmo as ‘“novas refinarias’”, é inconcebível que o MMA esteja não apenas
ausente dessa discussão, mas também sem protagonismo em pautar e centralizar as
dimensões socioambientais e climáticas do debate”.
Em um relatório para investidores de julho de
2024 sobre oportunidades no setor de data centers brasileiros, ao qual o
Intercept teve acesso, o banco Santander pontuou que, além da matriz energética
limpa, o Brasil tem “preços competitivos” de eletricidade em comparação aos
Estados Unidos e a outros países europeus.
Mas, no mesmo relatório, o banco reconhece
que a abertura do mercado de energia brasileiro para data centers poderá
encarecer o custo da energia ao consumidor final.
O relatório destaca ainda que o Brasil se
torna um destino mais interessante para investimentos à medida que a situação
regulatória se acirra em outros países. Nos Estados Unidos, novas legislações
federais apresentadas ao Senado poderiam apertar regulações sobre
desenvolvimento de data centers, incluindo leis de zoneamento e avaliações
obrigatórias de impacto ambiental e de recursos, bem como diretrizes sobre uso
da água.
“Alguns estados dos Estados Unidos têm tido
dificuldades para fornecer energia e água para data centers e enfrentam a
oposição de comunidades locais, já que a alta demanda por energia dessas
instalações pode sobrecarregar a rede de serviços local”, cita o Santander, no
relatório.
• Vantagens
para o Brasil ainda não estão claras
No Brasil, é esperado que o governo apresente
em breve a política nacional de data centers. O texto já foi mostrado ao
presidente Lula em março, segundo Haddad. O protagonismo da Fazenda no tema
teria despontado após o ministro ter se convencido de que era preciso um
“arcabouço regulatório” para aproveitar uma “janela de oportunidade”.
Desde 2024, o governo federal tem tomado
ações para canalizar o interesse do segmento no Brasil. Em agosto, lançou o
Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, o PBIA, no qual prevê a destinação
de R$ 23 bilhões em investimentos. Em setembro, o BNDES anunciou uma linha de
crédito de R$ 2 bilhões específica para investimentos em data centers.
A localização do Brasil também é estratégica,
podendo conectar o restante da América Latina à Europa e aos Estados Unidos
através de uma rede complexa de cabos submarinos. E, por fim, há uma quantidade
massiva de dados sendo produzidos e trocados em território nacional, graças à
adesão massiva da população brasileira às novas tecnologias.
Em dezembro de 2024, enquanto o Senado
discutia um projeto de lei para regulamentar inteligência artificial, o setor
de data centers publicou uma carta pedindo a retirada de um artigo que previa
remuneração por direitos autorais para detentores de conteúdo usado para
treinamento de IA.
Segundo representantes do setor, a manutenção
do artigo poderia afastar investimentos em desenvolvimento e treinamento de IA.
A versão do PL aprovada no Senado incluiu o artigo, mas há expectativa de que
ele seja retirado na tramitação na Câmara dos Deputados.
Na avaliação de Leite, do Instituto E+, o que
não está claro ainda é o que o Brasil tem a ganhar com uma política de atração
de data centers, já que o segmento não tende a gerar empregos e nem
arrecadação, além de utilizar recursos hídricos e energéticos. “Nós temos
concedido incentivos para atrair investimentos sem exigir nada em troca em
termos de sustentabilidade ou contrapartida local”, pontuou.
Fonte: Por Laís Martins, em The Intercept

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