Horrores da medicina: os infames experimentos
da sífilis na Guatemala
Entre 1946 e 1948, o governo dos Estados
Unidos conduziu na Guatemala um dos experimentos mais repugnantes da história
da medicina. Ao menos 1.300 cidadãos guatemaltecos foram propositalmente
infectados com sífilis, gonorreia e cancro mole durante um estudo sobre doenças
sexualmente transmissíveis. As vítimas nunca deram seu consentimento para
participar do experimento — e muitas foram deliberadamente privadas de
tratamento.
A infame pesquisa conduzida pelo governo
norte-americano na Guatemala foi precedida por outros experimentos hediondos.
Em 1932, o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos selecionou 600 homens
negros na cidade de Tuskegee, no Alabama, para serem utilizados como cobaias em
um estudo sobre a progressão natural da sífilis. Esse grupo incluía 399 homens
diagnosticados com sífilis e 201 indivíduos saudáveis, usados como base de
comparação. O estudo foi realizado em conjunto com a Universidade de Tuskegee —
instituição de ensino tradicionalmente voltada a atender a comunidade
afro-americana. As cobaias eram todos homens pobres, em sua maioria lavradores.
Eles jamais foram informados que estavam com
sífilis. Os pesquisadores apenas diziam que eles possuíam “sangue ruim” e que
por isso estavam recebendo tratamento gratuito do governo — o que era mentira.
As cobaias infectadas recebiam somente placebos, uma vez que o objetivo do
estudo era registrar os efeitos da sífilis não tratada em homens negros. Mesmo
após o desenvolvimento de tratamentos eficazes contra a doença, à base de
penicilina, os pesquisadores optaram por não tratar as cobaias. O experimento de
Tuskegee se estendeu por 40 anos.
Dos 399 homens sifilíticos acompanhados, 128
morreram de sífilis ou de complicações da doença. Ao menos 40 das esposas das
cobaias foram infectadas e 19 crianças nasceram com sífilis congênita. Um outro
experimento sobre infecções sexualmente transmissíveis utilizando cobaias
humanas foi realizado no estado de Indiana durante a Segunda Guerra Mundial.
Incomodado com o custo financeiro e com as baixas geradas pelo grande número de
soldados adoecidos durante a guerra, o governo norte-americano passou a financiar
pesquisas sobre novos tratamentos profiláticos contra ISTs. Uma dessas
pesquisas foi realizada na penitenciária de Terre Haute, entre 1943 e 1944.
Cerca de 240 prisioneiros da instituição foram submetidos a um estudo que
visava desenvolver novos tratamentos para gonorreia. Os detentos eram
convencidos a participar do experimento mediante a promessa de recomendação de
liberdade condicional e a concessão de um bônus de US$ 100. Em seguida, eram
propositalmente infectados com os agentes patogênicos da doença.
Os estudos na penitenciária de Terre Haute
duraram cerca de 10 meses, mas acabaram sendo interrompidos em função da
ineficácia do método de inoculação. Os cientistas responsáveis pelo estudo
sugeriram então retomá-lo na Guatemala. Além das motivações racistas — a
percepção de que negros, latinos e indígenas eram indivíduos descartáveis e,
portanto, cobaias ideais — os pesquisadores apontavam a conveniência do fato da
Guatemala ainda não possuir códigos de ética restringindo a realização de
experimentos não consentidos. Também acreditavam que realizar os experimentos
em outro país diminuiria os riscos de responsabilização legal. Por fim, caso os
experimentos fossem revelados ao público, o dano à reputação dos envolvidos
provavelmente seria menor se as cobaias não fossem norte-americano.
O experimento na Guatemala teve início em
1946, já no governo de Harry Truman. A iniciativa foi conduzida pelo Serviço de
Saúde Pública dos Estados Unidos, com financiamento dos Institutos Nacionais da
Saúde. A autorização para prosseguir com o estudo na Guatemala foi concedida
por Thomas Parran, chefe operacional do Corpo Comissionado do Serviço de Saúde
Pública. Ele já havia participado tanto do experimento da sífilis em Tuskegee
quanto do estudo sobre gonorreia na penitenciária de Indiana. O projeto recebeu
o aval de alguns membros do governo da Guatemala — em especial o médico Juan
Funes, chefe do Departamento de Controle de Doenças Venéreas. Os médicos John
Charles Cutler e John Friend Mahoney, que lideraram a pesquisa sobre a
gonorreia em Indiana, foram incumbidos de chefiar os trabalhos também na
Guatemala. Genevieve Stout, bacteriologista da Repartição Sanitária Pan
Americana (atual Organização Pan-Americana da Saúde) e Carlos Salvado, diretor
do Hospital Psiquiátrico da Guatemala, também colaboraram com o experimento.
Os cientistas norte-americanos infectaram
propositalmente ao menos 1.308 pessoas com doenças como sífilis, gonorreia e
cancro mole durante os experimentos na Guatemala. O número exato de vítimas,
entretanto, pode ser bem maior, como evidenciam os relatórios informando a
existência de 5.128 indivíduos sendo monitorados para o surgimento de sintomas.
Em geral, as cobaias eram pessoas pobres, indígenas e indivíduos marginalizados
ou vulneráveis — presidiários, soldados do Exército guatemalteco, prostitutas,
crianças órfãs, pacientes de hospitais psiquiátricos, etc. A idade das vítimas
variava de 10 a 72 anos. A maioria eram jovens na casa dos 20 aos 30 anos.
O objetivo do estudo era testar a eficácia de
novos antibióticos no combate às infecções sexualmente transmissíveis. No
entanto, somente 700 cobaias receberam algum tipo de tratamento. Mais de 600
indivíduos infectados foram deliberadamente deixados sem tratamento para que os
pesquisadores pudessem observar os sintomas e os efeitos da progressão das
doenças. As cobaias não deram consentimento para participar do estudo, nem
foram informadas sobre a sua condição médica.
O estudo da sífilis contou com ao menos 532
cobaias. Para potencializar ao máximo a infecção, os pesquisadores inoculavam o
patógeno da sífilis em prostitutas. Passado o período de incubação, as
prostitutas eram pagas para manter relações sexuais com prisioneiros. Já no
caso de pacientes de hospitais psiquiátricos, os cientistas preferiam inocular
diretamente os patógenos nas cobaias, injetando cepas de sífilis no líquido
espinhal das vítimas. Também era comum derramar soluções contendo altas
concentrações da bactéria causadora da sífilis em feridas, cortes e nos
genitais dos pacientes.
As mesmas estratégias foram adotadas no
estudo da gonorreia. Ao menos 600 soldados guatemaltecos foram propositalmente
infectados com gonorreia por meio de relações sexuais com prostitutas
previamente infectadas ou por meio da injeção do pus gonorreico. A pesquisa de
cancro mole mobilizou ao menos 80 cobaias. Elas sofriam incisões sobre a pele,
que eram então infectadas com a bactéria causadora da moléstia.
Os prisioneiros e pacientes
institucionalizados eram submetidos a testes e procedimentos extremamente
cruéis, análogos às piores formas de tortura. O caso de uma paciente
psiquiátrica chamada Berta, relatado pela Comissão Presidencial para o Estudo
de Questões Bioéticas, dá uma ideia da crueldade do experimento. Conforme o
relatório, “Berta recebeu uma injeção de sífilis no braço esquerdo. Um mês
depois, ela desenvolveu uma infecção cutânea. Várias semanas depois, o Dr.
Cutler notou que ela também desenvolveu inchaços vermelhos no local da injeção,
além de lesões em seus braços e pernas, e sua pele estava começando a definhar.
Berta só foi tratada da sífilis três meses após a injeção. Logo depois, em 23
de agosto, o Dr. Cutler escreveu que Berta aparentemente ia morrer, mas não
especificou o motivo. Naquele mesmo dia, ele colocou pus gonorreico de outro
homem nos olhos de Berta, bem como na uretra e no reto. Ele também a reinfectou
com sífilis. Vários dias depois, os olhos de Berta estavam cheios de pus gonorreico
e ela sangrava pela uretra. Três dias depois, em 27 de agosto, Berta faleceu”.
A infecção proposital de pessoas foi
encerrada em 1948, mas os estudos sorológicos continuaram sendo conduzidos na
Guatemala até 1953, envolvendo os grupos sociais que já eram visados, mas
também novos alvos, como alunos de escolas públicas e crianças internadas em
orfanatos. Ao menos 83 mortes foram registradas ao longo do estudo, mas é
possível que o número real de vítimas seja bem maior.
Os registros, relatórios e a amostras
coletadas na Guatemala foram remetidos para os Estados Unidos e
disponibilizados para a produção de pesquisas em laboratórios privados. Os
pesquisadores que lideraram os experimentos na Guatemala jamais foram responsabilizados
pelos seus atos. Ao contrário: foram beneficiados. Thomas Parran tornou-se
presidente da poderosa Fundação Avalon e foi homenageado emprestando seu nome à
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Pittsburgh, dita “Parran Hall”.
John Mahoney foi laureado com o Prêmio Lasker, destinado às personalidades que
deram as contribuições mais significativas para a medicina, e se tornou
presidente da Organização Mundial da Saúde (OMS). O Doutor Cutler tornou-se
porta-voz do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos e aceitou o convite
para colaborar com os estudos da sífilis não tratada em cobaias da comunidade
negra de Tuskegee nos anos 60.
Os experimentos de Tuskegee somente foram
interrompidos em 1972, após um membro da equipe de pesquisadores denunciar o
caso à imprensa. O escândalo gerado pelo vazamento repercutiu mundialmente e
levou à criação de novos códigos de ética médica. Os procedimentos adotados na
pesquisa, entretanto, já eram banidos pela legislação internacional há muito
tempo, desde a criação do Código de Nuremberg, em 1947, que estabelecia
diretrizes internacionais para a pesquisa com seres humanos.
Os experimentos na Guatemala, por sua vez,
somente foram revelados publicamente em 2005, quando uma professora chamada
Susan Mokotoff Reverby encontrou documentos sobre o experimento enquanto
realizava uma pesquisa sobre o trabalho do doutor Cutler em Tuskegee. Em
outubro de 2010, o presidente Barack Obama reconheceu a veracidade da denúncia
e pediu desculpas formais pelos experimentos conduzidos na Guatemala, além de
determinar a instalação de uma comissão para investigar o caso.
Até o presente momento, no entanto, nenhum
tipo de indenização foi concedida às vítimas dos experimentos e seus
descendentes.
Fonte: Por Estevam Silva, em Opera Mundi

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