Stefani
Costa: Da vassalagem europeia à ‘solução final’ de Trump para Gaza
As últimas declarações de Donald Trump sobre a guerra na Ucrânia e o
genocídio de Israel em Gaza indicam que os Estados Unidos estão dispostos a
reorganizarem as estratégias políticas e econômicas diante de uma nova
realidade global: a multipolaridade.
A percepção de que a hegemonia estadunidense está abalada com a ascensão
da China, por meio do seu desenvolvimento tecnológico e de sua aproximação com
a potência nuclear chamada Rússia, obriga o imperialismo norte-americano a se
reposicionar para manter o poder de influência sobre o mundo. A frequente
ameaça de “tarifaços” contra os países do BRICS é outro exemplo que reforça a
narrativa.
Simultaneamente, a União Europeia mostra que continua perdida no meio
desse debate, como na famosa analogia do cego em tiroteio, e insiste em
arriscar os interesses nacionais, incluindo o bem-estar das suas populações,
para se alinhar ao projeto belicista imposto pelos Estados Unidos e pela
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Esse fenômeno autodestrutivo
pode ser melhor compreendido a partir das duas últimas propostas, um tanto
absurdas, anunciadas pelo presidente estadunidense nesta semana.
A primeira está relacionada à oferta de Trump ao
presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, para que o país ceda terras
ricas em minerais em troca de apoio militar a Kiev. Segundo o republicano, o
governo ucraniano sinalizou estar aberto à ideia de fornecer lítio, titânio e
outros recursos aos Estados Unidos, desde que o apoio militar contra a Rússia seja
mantido.
A declaração de Donald Trump foi seguida por uma forte crítica à Europa,
que, segundo ele, não ofereceu ao exército
ucraniano o mesmo nível de apoio que foi proporcionado pela Casa Branca.
Enquanto isso, o Conselho Europeu, que se reuniu na última segunda-feira
(03/02) no Castelo de Limont, na Bélgica, discutiu mais cortes em serviços
públicos essenciais para aumentar os gastos com armamento – seguindo, claro, as
imposições dos Estados Unidos e da OTAN.
Em 2024, as despesas com o complexo industrial-militar dos
Estados-membros do bloco chegaram a 326 bilhões de euros, mais do que o dobro
do que foi gasto desde 2016. A forte pressão para reduzir custos em políticas
sociais, promovida pelo primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, e pelo
secretário-geral da OTAN, Mark Rutte, vai de encontro ao orçamento da União
Europeia aprovado para 2025, que também limita investimentos em setores
produtivos.
Durante o encontro, o presidente do Conselho Europeu, o português
António Costa, chegou a demonstrar certa confusão ao tentar rebater as
afirmações de Starmer, ao mesmo tempo em que admitia que a União Europeia
pretende ir além dos 2% do PIB em gastos com “defesa e segurança”.
Dito isto, podemos concluir que nos deparamos com uma política, no
mínimo, contraditória, que cada vez mais empurra os países europeus em direção
a uma crise profunda, a qual afeta setores estratégicos como energia, saúde e
habitação. Ademais, é importante destacar o impacto negativo dessas medidas no
poder de compra dos trabalhadores europeus, o que resulta na desvalorização dos
salários e na aceleração do empobrecimento das famílias.
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Cosplay de nazista
Outro importante anúncio que contribui para a compreensão deste novo
contexto geopolítico ocorreu na última terça-feira (04/02), durante a visita de
Benjamin Netanyahu à Casa Branca.
Após enfatizar seu compromisso com a limpeza étnica, Trump propôs uma
espécie de ‘solução final’ ao povo palestino, afirmando que os Estados Unidos
pretendem assumir o controle da Faixa de Gaza, e depois expulsar seus
habitantes para a Jordânia e o Egito, embora esses países já tenham rejeitado a
proposta.
Entidades palestinas como o Hamas e a Organização para a Libertação da
Palestina (OLP) também reagiram com perplexidade às declarações do presidente
estadunidense, enfatizando que o caminho “racista” traçado por Trump “está
alinhado com os planos da extrema direita israelense” e que isso só trará mais
instabilidade e conflitos à região, distanciando o Oriente Médio do horizonte
de paz e reconstrução.
Lideranças importantes do Sul Global apostam no caminho contrário ao
chamarem as políticas de Trump pelo nome que elas merecem, diferente dos países
europeus, que permanecem apostando
numa agenda que oculta o projeto de ocupação ilegal de Israel em Gaza, bem como os crimes de guerra cometidos no Líbano, passando, até mesmo,
pelo não reconhecimento do Estado da Palestina, como o caso de Portugal.
Um exemplo desse contraste foi a entrevista concedida por Lula na manhã
de quarta-feira (05/02), em que ele reiterou que o que ocorreu em Gaza foi um
genocídio e que os Estados Unidos também “fazem parte de tudo isso”. Apesar do
apoio declarado aos democratas durante as eleições estadunidenses, o presidente
brasileiro parece (finalmente) reconhecer que foram as administrações de Joe
Biden e Kamala Harris que enviaram bilhões de dólares para que Israel pudesse
destruir a Palestina.
Enquanto isso, seguimos assistindo a uma Europa distraída, que prefere
continuar reproduzindo os releases enviados pelo governo de Israel nos horários
nobres de seus telejornais, em vez de se concentrar nos reais problemas que
atingem diretamente o bem-estar e a dignidade do povo em nome de guerras que
não interessam aos trabalhadores.
Apesar de tantas evidências, infelizmente não há perspectivas de mudança
nas linhas editoriais da grande imprensa ocidental. Dificilmente veremos capas
de jornais classificando o governo Trump como uma ditadura, ou chamando
Netanyahu de terrorista, mesmo se ambos aparecerem no púlpito trajados de
Führer. E aqueles que ousarem levantar a voz contra a limpeza étnica em Gaza
continuarão sendo taxados de antissemitas.
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O monstro Trump deve ser levado a sério. Por Valério Arcary
Estas primeiras semanas do segundo mandato de Trump foram
terríveis. Uma sequência frenética de horrores, algo no estilo “sturm und
drang”, tempestade e ímpeto, agressão e ataque, ofensiva de choque,
insolência do terror. A defesa da limpeza étnica dos palestinos na Faixa de
Gaza culminou, nas investidas internas e externas, com a apologia de um crime
contra a humanidade. Mas é preciso considerar, também, o impacto nos outros
países imperialistas. O Reform UK, partido de Nigel Farage no Reino Unido,
apareceu em pesquisa, pela primeira vez, à frente do Labour Party do primeiro
ministro Keir Starmer; o AfD na Alemanha ameaça superar os 20% nas eleições
deste mês; opartido de Le Pen na França já se posiciona para tentar vencer as
próximas eleições presidenciais, e por aí vai.
Diante desta evolução catastrófica, as esquerdas, moderadas ou
radicais, estão diante de dois perigos. O primeiro é subestimar os
neofascistas. Diminuir o significado que Trump, desdenhando seus discursos como
bravatas, arroubos e fanfarronadas, é mais do que erro de análise de discurso.
A análise marxista não pode se reduzir à análise de discurso. Faz parte do
abecedário da luta política agigantar a própria força e apequenar a dos
inimigos. Trump faz provocações porque confia que pode acumular mais forças. O
autoengano, engrandecendo os obstáculos que ele ainda terá que enfrentar com os
contrapesos institucionais nos EUA, e fricções com alas burguesas na Europa e
Médio-Oriente, mesmo quando motivado pela boa intenção de não desesperar, não
serve.
O segundo perigo é a desmoralização por antecipação. Haverá
resistência e luta. As manifestações em Buenos Aires e Berlim sinalizam que
ainda há reservas nos setores mais conscientes dos trabalhadores e da
juventude, do feminismo e dos movimentos anti-racistas, dos LGBT’s e dos
ambientalistas, da arte e da cultura. A lucidez de reconhecer a força da
ofensiva deve ser indivisível da determinação de enfrentá-los. Uma esquerda sem
força moral está rendida. Quem não confia na possibilidade de vitória não luta.
Os neofascistas não são imbatíveis.
Os revolucionários são a ala da esquerda que se alimenta da
esperança. Estão engajados em um projeto estratégico que exige um realismo
radical. Mas abraçam o otimismo. Alguns até incorrigíveis. A causa
socialista atraiu pessoas com uma disposição subjetiva mais idealista ou
ardorosa. Militantes animados por uma atitude combativa incansável.
Essa perspectiva sobre o futuro da condição humana, ou das
possibilidades históricas da luta igualitarista dos trabalhadores ajuda a
manter, politicamente, um compromisso militante, para além das vicissitudes das
derrotas mais imediatas. Esta aposta repousou na esperança de que o
proletariado, uma maioria assalariada que permanece politicamente dominada,
socialmente oprimida e, economicamente explorada, seria capaz de lutar por si
mesma de forma independente.
Entre os fundadores, e no marxismo da Segunda e também da Terceira
Internacional, predominou uma inflexível confiança de classe, e um otimismo
histórico sobre a transição ao socialismo. Este otimismo foi criticado ou
acusado de fatalismo ou até mesmo teleologia. Uma das suas expressões teóricas
mais criticadas pode ser encontrada no Tratado sobre Materialismo Histórico de Bukharin. Convém
notar que a fórmula sempre condenada, porém pouco citada de Bukharin era,
essencialmente, condicional. Admitia a incerteza:
“A condição necessária para um ulterior desenvolvimento é também
chamada com muita frequência de necessidade histórica. É neste sentido do termo
‘necessidade histórica’, que podemos falar da ‘necessidade’ da revolução
francesa, sem a qual o capitalismo não teria continuado seu crescimento, ou da
‘necessidade’ da chamada ‘libertação dos servos’, em 1861, sem a qual o
capitalismo russo não teria podido continuar seu desenvolvimento. Neste sentido podemos também falar da
necessidade histórica do socialismo, desde o momento que sem ele a sociedade
humana não pode continuar seu desenvolvimento. Se a sociedade deve continuar sua marcha, o
socialismo é inevitável.” (tradução e grifo nosso)
Bukharin não estava errado. As lutas decisivas, portanto, a hora
da revolução, poderiam variar e tardar de nação para nação, mas a perspectiva
estratégica abraçada pelo marxismo era otimista sobre o futuro do socialismo. O
capitalismo estaria condenado a sucumbir de crise em crise, e cada terremoto
destrutivo teria que provocar uma reação e resistência do proletariado. A
vitória da revolução socialista, ou seja, a conquista do poder pelos
trabalhadores e seus aliados, permanecia condicionada pelas reviravoltas da
luta de classes: um desenlace incerto. Não obstante, as derrotas parciais e
nacionais seriam um momento de uma longa marcha que preparava, na dimensão
mundial, novos combates em condições mais favoráveis à vitória final.
Entretanto, os medos, as inseguranças e a imaturidade do
proletariado diante do desafio da luta pela direção da sociedade permanecem
sendo a tese que sustenta o desalento, a desesperança, portanto, o ceticismo na
possibilidade de triunfo de uma estratégia revolucionária. O argumento de que
150 anos de luta pelo socialismo teriam sido mais que o bastante para demonstrar
a viabilidade do projeto pode impressionar.
O argumento é forte, mas não é novo. Esta posição não deveria
surpreender em períodos de refluxo prolongado, ou depois de derrotas muito
sérias, derrotas históricas. Não foi diferente depois das derrotas das
revoluções de 1848, ou depois da derrota da Comuna de Paris, ou depois da
derrota da revolução de 1905 na Rússia, ou depois da derrota da revolução alemã
em 1923, ou depois da derrota diante do nazi-fascismo e da república na Guerra
Civil Espanhola.
O impressionismo foi sempre perigoso em política, e fatal em
teoria. Os receios e as angústias diante dos desafios da luta de classes se
alimentam na força de inércia que atua, poderosamente, no sentido de manutenção
e conservação da ordem. As forças de inércia histórica se apoiam, por sua vez,
em muitos fatores (materiais e culturais). Eles não devem ser subestimados. É
porque são grandes estas pressões que as transformações históricas foram sempre
lentas e dolorosas.
A transição socialista, a passagem do poder de uma classe
privilegiada para uma maioria despojada, algo muito diferente da passagem de
uma classe proprietária para outra classe proprietária, prometia,
previsivelmente, ser um processo extremamente difícil. São, em geral,
necessários grandes intervalos para que a classe trabalhadora possa se
recuperar da experiência de derrotas, e consiga gerar uma nova vanguarda,
recuperar a confiança em suas próprias forças, e encontrar disposição para
arriscar de novo pela via da organização coletiva, da solidariedade de classe e
da mobilização de massas.
O marxismo fez uma aposta nas possibilidades da luta política. O
que se quer dizer com uma aposta na política? Isso significava, para o marxismo
clássico, que o capitalismo empurrava o proletariado, apesar de suas
hesitações, pela via da experiência material da vida, das crises e catástrofes
cíclicas, na direção da luta de classes. A história está repleta de episódios
de rendição política de movimentos, frações, partidos, lideranças e chefes. Mas
as classes em luta “não se rendem”. Recuam, interrompem as hostilidades,
diminuem a intensidade dos combates, duvidam de suas próprias forças, mas,
enquanto existem, acumulam novas experiências, reorganizam-se sob novas formas
e voltam à luta. As classes podem agir, por um período, maior ou menor, contra
os seus próprios interesses. Mas não podem renunciar definitivamente à defesa
dos seus interesses: as classes não fazem “seppuku”.
As batalhas e os combates, ou cada luta, são, nessa escala e nessa
proporção, em uma perspectiva histórica, sempre batalhas parciais e
transitórias, vitórias ou derrotas momentâneas. As relações de forças se
alteram, e podem ser, por um período, mais desfavoráveis ou menos, com sequelas
mais duradouras ou mais superficiais. Entretanto, não existe, para uma classe
social, a possibilidade histórica do suicídio político.
Uma classe social pode ser “destruída materialmente”, para usar
uma expressão brutal, em função de um processo de desenvolvimento ou regressão
histórica profunda, e deixar de existir enquanto sujeito social. Isso também já
ocorreu várias vezes na história. Mas, sempre, de forma involuntária: enquanto
existir, ou seja, enquanto for econômica e socialmente necessária, resistirá e
lutará. Se o fará com disposição revolucionária ou não é uma outra questão.
Esse é o foco apropriado para a discussão dos vaticínios marxistas
sobre o papel do proletariado. Uma aposta na luta política, para o marxismo,
significava que o proletariado, mesmo consideradas todas as limitações
objetivas e subjetivas que o condicionavam, mais cedo ou mais tarde, se verá
diante da última alternativa, o caminho da revolução.
Os trabalhadores podem precisar de um longo período de
aprendizagem sindical e/ou parlamentar para esgotar todas as outras vias, para
vencer as ilusões. Ilusões nas possibilidades de reformar o capitalismo, por
exemplo. Podem, também, dispensar ou abreviar as décadas de experiência na
colaboração de classes: porque as lições se transmitem por variadas formas e,
mais intensamente, na medida em que a dinâmica internacional da luta de classes
se acentua.
Os proletariados aprendem com os processos de luta de classes uns
dos outros, em diferentes países, e não necessariamente terão que repetir
sempre os mesmos caminhos. Mesmo em um mesmo país, as “vantagens do atraso”
permitem que destacamentos da classe trabalhadora aprendam com a experiência
dos setores que se lançaram à luta na frente de forma pioneira.
Há, todavia, momentos na História em que as massas, exasperadas
por décadas de exploração e perseguição, perdem o medo. E se inclinam, então,
perante a “última alternativa”. É aí que a revolução surge aos olhos de milhões
não só como necessária, mas como possível.
Quando e em que circunstâncias, é um dos temas mais difíceis da
elaboração marxista. Mas esses momentos são mais frequentes do que usualmente
se pensa. E quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, toda a
sociedade mergulha em uma vertigem da qual não poderá emergir sem grandes
convulsões e mudanças. O turbilhão da situação revolucionária é uma das
tendências mais profundas da época histórica.
Quando esse sentimento de que não é mais possível continuar
vivendo nas condições impostas pela ordem do capitalismo é compartilhado por
milhões, então a força social da mobilização da maioria popular se transforma
em uma das forças materiais mais poderosas da história. Uma força material
terrível, maior do que os exércitos, do que as polícias, do que as mídias, as
igrejas, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias. Que a
maioria das revoluções do século XX tenham sido derrotadas não demonstra que
não venham a ocorrer novas ondas revolucionárias no futuro.
Não se trata somente de esperá-las. Mas de prepará-las. Elas
virão.
Fonte: Opera Mundi
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