terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Stefani Costa: Da vassalagem europeia à ‘solução final’ de Trump para Gaza

As últimas declarações de Donald Trump sobre a guerra na Ucrânia e o genocídio de Israel em Gaza indicam que os Estados Unidos estão dispostos a reorganizarem as estratégias políticas e econômicas diante de uma nova realidade global: a multipolaridade.

A percepção de que a hegemonia estadunidense está abalada com a ascensão da China, por meio do seu desenvolvimento tecnológico e de sua aproximação com a potência nuclear chamada Rússia, obriga o imperialismo norte-americano a se reposicionar para manter o poder de influência sobre o mundo. A frequente ameaça de “tarifaços” contra os países do BRICS é outro exemplo que reforça a narrativa.

Simultaneamente, a União Europeia mostra que continua perdida no meio desse debate, como na famosa analogia do cego em tiroteio, e insiste em arriscar os interesses nacionais, incluindo o bem-estar das suas populações, para se alinhar ao projeto belicista imposto pelos Estados Unidos e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Esse fenômeno autodestrutivo pode ser melhor compreendido a partir das duas últimas propostas, um tanto absurdas, anunciadas pelo presidente estadunidense nesta semana.

A primeira está relacionada à oferta de Trump ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, para que o país ceda terras ricas em minerais em troca de apoio militar a Kiev. Segundo o republicano, o governo ucraniano sinalizou estar aberto à ideia de fornecer lítio, titânio e outros recursos aos Estados Unidos, desde que o apoio militar contra a Rússia seja mantido.

A declaração de Donald Trump foi seguida por uma forte crítica à Europa, que, segundo ele, não ofereceu ao exército ucraniano o mesmo nível de apoio que foi proporcionado pela Casa Branca.

Enquanto isso, o Conselho Europeu, que se reuniu na última segunda-feira (03/02) no Castelo de Limont, na Bélgica, discutiu mais cortes em serviços públicos essenciais para aumentar os gastos com armamento – seguindo, claro, as imposições dos Estados Unidos e da OTAN.

Em 2024, as despesas com o complexo industrial-militar dos Estados-membros do bloco chegaram a 326 bilhões de euros, mais do que o dobro do que foi gasto desde 2016. A forte pressão para reduzir custos em políticas sociais, promovida pelo primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, e pelo secretário-geral da OTAN, Mark Rutte, vai de encontro ao orçamento da União Europeia aprovado para 2025, que também limita investimentos em setores produtivos.

Durante o encontro, o presidente do Conselho Europeu, o português António Costa, chegou a demonstrar certa confusão ao tentar rebater as afirmações de Starmer, ao mesmo tempo em que admitia que a União Europeia pretende ir além dos 2% do PIB em gastos com “defesa e segurança”.

Dito isto, podemos concluir que nos deparamos com uma política, no mínimo, contraditória, que cada vez mais empurra os países europeus em direção a uma crise profunda, a qual afeta setores estratégicos como energia, saúde e habitação. Ademais, é importante destacar o impacto negativo dessas medidas no poder de compra dos trabalhadores europeus, o que resulta na desvalorização dos salários e na aceleração do empobrecimento das famílias.

<><> Cosplay de nazista

Outro importante anúncio que contribui para a compreensão deste novo contexto geopolítico ocorreu na última terça-feira (04/02), durante a visita de Benjamin Netanyahu à Casa Branca.

Após enfatizar seu compromisso com a limpeza étnica, Trump propôs uma espécie de ‘solução final’ ao povo palestino, afirmando que os Estados Unidos pretendem assumir o controle da Faixa de Gaza, e depois expulsar seus habitantes para a Jordânia e o Egito, embora esses países já tenham rejeitado a proposta.

Entidades palestinas como o Hamas e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) também reagiram com perplexidade às declarações do presidente estadunidense, enfatizando que o caminho “racista” traçado por Trump “está alinhado com os planos da extrema direita israelense” e que isso só trará mais instabilidade e conflitos à região, distanciando o Oriente Médio do horizonte de paz e reconstrução.

Lideranças importantes do Sul Global apostam no caminho contrário ao chamarem as políticas de Trump pelo nome que elas merecem, diferente dos países europeus, que permanecem apostando numa agenda que oculta o projeto de ocupação ilegal de Israel em Gaza, bem como os crimes de guerra cometidos no Líbano, passando, até mesmo, pelo não reconhecimento do Estado da Palestina, como o caso de Portugal.

Um exemplo desse contraste foi a entrevista concedida por Lula na manhã de quarta-feira (05/02), em que ele reiterou que o que ocorreu em Gaza foi um genocídio e que os Estados Unidos também “fazem parte de tudo isso”. Apesar do apoio declarado aos democratas durante as eleições estadunidenses, o presidente brasileiro parece (finalmente) reconhecer que foram as administrações de Joe Biden e Kamala Harris que enviaram bilhões de dólares para que Israel pudesse destruir a Palestina.

Enquanto isso, seguimos assistindo a uma Europa distraída, que prefere continuar reproduzindo os releases enviados pelo governo de Israel nos horários nobres de seus telejornais, em vez de se concentrar nos reais problemas que atingem diretamente o bem-estar e a dignidade do povo em nome de guerras que não interessam aos trabalhadores.

Apesar de tantas evidências, infelizmente não há perspectivas de mudança nas linhas editoriais da grande imprensa ocidental. Dificilmente veremos capas de jornais classificando o governo Trump como uma ditadura, ou chamando Netanyahu de terrorista, mesmo se ambos aparecerem no púlpito trajados de Führer. E aqueles que ousarem levantar a voz contra a limpeza étnica em Gaza continuarão sendo taxados de antissemitas.

¨      O monstro Trump deve ser levado a sério. Por Valério Arcary

Estas primeiras semanas do segundo mandato de Trump foram terríveis. Uma sequência frenética de horrores, algo no estilo “sturm und drang”, tempestade e ímpeto, agressão e ataque, ofensiva de choque, insolência do terror. A defesa da limpeza étnica dos palestinos na Faixa de Gaza culminou, nas investidas internas e externas, com a apologia de um crime contra a humanidade. Mas é preciso considerar, também, o impacto nos outros países imperialistas. O Reform UK, partido de Nigel Farage no Reino Unido, apareceu em pesquisa, pela primeira vez, à frente do Labour Party do primeiro ministro Keir Starmer; o AfD na Alemanha ameaça superar os 20% nas eleições deste mês; opartido de Le Pen na França já se posiciona para tentar vencer as próximas eleições presidenciais, e por aí vai. 

Diante desta evolução catastrófica, as esquerdas, moderadas ou radicais, estão diante de dois perigos. O primeiro é subestimar os neofascistas. Diminuir o significado que Trump, desdenhando seus discursos como bravatas, arroubos e fanfarronadas, é mais do que erro de análise de discurso. A análise marxista não pode se reduzir à análise de discurso. Faz parte do abecedário da luta política agigantar a própria força e apequenar a dos inimigos. Trump faz provocações porque confia que pode acumular mais forças. O autoengano, engrandecendo os obstáculos que ele ainda terá que enfrentar com os contrapesos institucionais nos EUA, e fricções com alas burguesas na Europa e Médio-Oriente, mesmo quando motivado pela boa intenção de não desesperar, não serve. 

O segundo perigo é a desmoralização por antecipação. Haverá resistência e luta. As manifestações em Buenos Aires e Berlim sinalizam que ainda há reservas nos setores mais conscientes dos trabalhadores e da juventude, do feminismo e dos movimentos anti-racistas, dos LGBT’s e dos ambientalistas, da arte e da cultura. A lucidez de reconhecer a força da ofensiva deve ser indivisível da determinação de enfrentá-los. Uma esquerda sem força moral está rendida. Quem não confia na possibilidade de vitória não luta. Os neofascistas não são imbatíveis.

Os revolucionários são a ala da esquerda que se alimenta da esperança. Estão engajados em um projeto estratégico que exige um realismo radical. Mas abraçam o otimismo. Alguns até incorrigíveis. A causa socialista atraiu pessoas com uma disposição subjetiva mais idealista ou ardorosa. Militantes animados por uma atitude combativa incansável.

Essa perspectiva sobre o futuro da condição humana, ou das possibilidades históricas da luta igualitarista dos trabalhadores ajuda a manter, politicamente, um compromisso militante, para além das vicissitudes das derrotas mais imediatas. Esta aposta repousou na esperança de que o proletariado, uma maioria assalariada que permanece politicamente dominada, socialmente oprimida e, economicamente explorada, seria capaz de lutar por si mesma de forma independente.

Entre os fundadores, e no marxismo da Segunda e também da Terceira Internacional, predominou uma inflexível confiança de classe, e um otimismo histórico sobre a transição ao socialismo. Este otimismo foi criticado ou acusado de fatalismo ou até mesmo teleologia. Uma das suas expressões teóricas mais criticadas pode ser encontrada no Tratado sobre Materialismo Histórico de Bukharin. Convém notar que a fórmula sempre condenada, porém pouco citada de Bukharin era, essencialmente, condicional. Admitia a incerteza:

“A condição necessária para um ulterior desenvolvimento é também chamada com muita frequência de necessidade histórica. É neste sentido do termo ‘necessidade histórica’, que podemos falar da ‘necessidade’ da revolução francesa, sem a qual o capitalismo não teria continuado seu crescimento, ou da ‘necessidade’ da chamada ‘libertação dos servos’, em 1861, sem a qual o capitalismo russo não teria podido continuar seu desenvolvimento. Neste sentido podemos também falar da necessidade histórica do socialismo, desde o momento que sem ele a sociedade humana não pode continuar seu desenvolvimento. Se a sociedade deve continuar sua marcha, o socialismo é inevitável.” (tradução e grifo nosso)

Bukharin não estava errado. As lutas decisivas, portanto, a hora da revolução, poderiam variar e tardar de nação para nação, mas a perspectiva estratégica abraçada pelo marxismo era otimista sobre o futuro do socialismo. O capitalismo estaria condenado a sucumbir de crise em crise, e cada terremoto destrutivo teria que provocar uma reação e resistência do proletariado. A vitória da revolução socialista, ou seja, a conquista do poder pelos trabalhadores e seus aliados, permanecia condicionada pelas reviravoltas da luta de classes: um desenlace incerto. Não obstante, as derrotas parciais e nacionais seriam um momento de uma longa marcha que preparava, na dimensão mundial, novos combates em condições mais favoráveis à vitória final.

Entretanto, os medos, as inseguranças e a imaturidade do proletariado diante do desafio da luta pela direção da sociedade permanecem sendo a tese que sustenta o desalento, a desesperança, portanto, o ceticismo na possibilidade de triunfo de uma estratégia revolucionária. O argumento de que 150 anos de luta pelo socialismo teriam sido mais que o bastante para demonstrar a viabilidade do projeto pode impressionar.

O argumento é forte, mas não é novo. Esta posição não deveria surpreender em períodos de refluxo prolongado, ou depois de derrotas muito sérias, derrotas históricas. Não foi diferente depois das derrotas das revoluções de 1848, ou depois da derrota da Comuna de Paris, ou depois da derrota da revolução de 1905 na Rússia, ou depois da derrota da revolução alemã em 1923, ou depois da derrota diante do nazi-fascismo e da república na Guerra Civil Espanhola.

O impressionismo foi sempre perigoso em política, e fatal em teoria. Os receios e as angústias diante dos desafios da luta de classes se alimentam na força de inércia que atua, poderosamente, no sentido de manutenção e conservação da ordem. As forças de inércia histórica se apoiam, por sua vez, em muitos fatores (materiais e culturais). Eles não devem ser subestimados. É porque são grandes estas pressões que as transformações históricas foram sempre lentas e dolorosas.

A transição socialista, a passagem do poder de uma classe privilegiada para uma maioria despojada, algo muito diferente da passagem de uma classe proprietária para outra classe proprietária, prometia, previsivelmente, ser um processo extremamente difícil. São, em geral, necessários grandes intervalos para que a classe trabalhadora possa se recuperar da experiência de derrotas, e consiga gerar uma nova vanguarda, recuperar a confiança em suas próprias forças, e encontrar disposição para arriscar de novo pela via da organização coletiva, da solidariedade de classe e da mobilização de massas.

O marxismo fez uma aposta nas possibilidades da luta política. O que se quer dizer com uma aposta na política? Isso significava, para o marxismo clássico, que o capitalismo empurrava o proletariado, apesar de suas hesitações, pela via da experiência material da vida, das crises e catástrofes cíclicas, na direção da luta de classes. A história está repleta de episódios de rendição política de movimentos, frações, partidos, lideranças e chefes. Mas as classes em luta “não se rendem”. Recuam, interrompem as hostilidades, diminuem a intensidade dos combates, duvidam de suas próprias forças, mas, enquanto existem, acumulam novas experiências, reorganizam-se sob novas formas e voltam à luta. As classes podem agir, por um período, maior ou menor, contra os seus próprios interesses. Mas não podem renunciar definitivamente à defesa dos seus interesses: as classes não fazem “seppuku”.

As batalhas e os combates, ou cada luta, são, nessa escala e nessa proporção, em uma perspectiva histórica, sempre batalhas parciais e transitórias, vitórias ou derrotas momentâneas. As relações de forças se alteram, e podem ser, por um período, mais desfavoráveis ou menos, com sequelas mais duradouras ou mais superficiais. Entretanto, não existe, para uma classe social, a possibilidade histórica do suicídio político.

Uma classe social pode ser “destruída materialmente”, para usar uma expressão brutal, em função de um processo de desenvolvimento ou regressão histórica profunda, e deixar de existir enquanto sujeito social. Isso também já ocorreu várias vezes na história. Mas, sempre, de forma involuntária: enquanto existir, ou seja, enquanto for econômica e socialmente necessária, resistirá e lutará. Se o fará com disposição revolucionária ou não é uma outra questão.

Esse é o foco apropriado para a discussão dos vaticínios marxistas sobre o papel do proletariado. Uma aposta na luta política, para o marxismo, significava que o proletariado, mesmo consideradas todas as limitações objetivas e subjetivas que o condicionavam, mais cedo ou mais tarde, se verá diante da última alternativa, o caminho da revolução. 

Os trabalhadores podem precisar de um longo período de aprendizagem sindical e/ou parlamentar para esgotar todas as outras vias, para vencer as ilusões. Ilusões nas possibilidades de reformar o capitalismo, por exemplo. Podem, também, dispensar ou abreviar as décadas de experiência na colaboração de classes: porque as lições se transmitem por variadas formas e, mais intensamente, na medida em que a dinâmica internacional da luta de classes se acentua. 

Os proletariados aprendem com os processos de luta de classes uns dos outros, em diferentes países, e não necessariamente terão que repetir sempre os mesmos caminhos. Mesmo em um mesmo país, as “vantagens do atraso” permitem que destacamentos da classe trabalhadora aprendam com a experiência dos setores que se lançaram à luta na frente de forma pioneira. 

Há, todavia, momentos na História em que as massas, exasperadas por décadas de exploração e perseguição, perdem o medo. E se inclinam, então, perante a “última alternativa”. É aí que a revolução surge aos olhos de milhões não só como necessária, mas como possível. 

Quando e em que circunstâncias, é um dos temas mais difíceis da elaboração marxista. Mas esses momentos são mais frequentes do que usualmente se pensa. E quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, toda a sociedade mergulha em uma vertigem da qual não poderá emergir sem grandes convulsões e mudanças. O turbilhão da situação revolucionária é uma das tendências mais profundas da época histórica.

Quando esse sentimento de que não é mais possível continuar vivendo nas condições impostas pela ordem do capitalismo é compartilhado por milhões, então a força social da mobilização da maioria popular se transforma em uma das forças materiais mais poderosas da história. Uma força material terrível, maior do que os exércitos, do que as polícias, do que as mídias, as igrejas, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias. Que a maioria das revoluções do século XX tenham sido derrotadas não demonstra que não venham a ocorrer novas ondas revolucionárias no futuro.

Não se trata somente de esperá-las. Mas de prepará-las. Elas virão.

 

Fonte: Opera Mundi

 

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