Ladislau Dowbor: Crônica da jornada
humana pelas religiões
Nunca ninguém viu nenhum deus, e, no entanto, as
divindades, as religiões, as cerimônias, os cantos, os medos e tantas dimensões
íntimas e sociais da espiritualidade são tão presentes em todas as sociedades.
Bertrand Russell achou necessário explicar, e escreveu o livrinho Porque não sou
cristão. Richard
Dawkins escreveu um livro bem persuasivo, A Ilusão de Deus, sobre a
quantidade de lendas absurdas presentes nas mais variadas religiões.
Christopher Hitchens, no seu God is not great, elenca as barbáries
que já se fizeram, e se fazem hoje, em nome de deus. Igualmente interessante é
a linda edição do Sesc, Mitologia: um guia dos mundos
imaginários, de
Dell Christopher, que analisa este universo não por religião, mas por temas
comuns às diversas religiões.
É interessante pensar de onde vem a força de tantas
lendas. Com milênios de evolução, com crenças sempre renovadas, e tão diversas,
parece mais importante pensar nas necessidades que elas preenchem para os
pobres mortais que somos do que pesquisar qual deus efetivamente existe. A ideia
geral que aqui apresento é que a força das religiões está ancorada não em uma
motivação apenas, como o medo da morte, ou em uma verdade revelada – provas, de
certa maneira – mas na convergência de um conjunto de motivações, psicológicas,
culturais, políticas, militares, até econômicas. Vale a pena juntar as peças.
Eu trabalhei em numerosos países e continentes, e acho
curioso que uns rezem de pé e se balançando, outros de joelhos, outros de
cócoras, outros ainda sentados de pernas cruzadas, ou cantando e dançando, mas
cada religião e todo crente convencidos de que o seu deus, ou os seus santos, é
que são verdadeiros. De conversar com as pessoas, e de ler os textos ditos
sagrados de diversas religiões, bem como de historiadores, fui anotando um
leque de motivações possíveis para tantos deuses, tantas religiões, tantas
cerimônias e rezas, e na realidade tanto sentimento investido numa realidade
mágica. Obviamente, com tantos deuses e tantas religiões, não podem ser todos
verdadeiros, e na realidade nenhum pode se arvorar em verdadeiro. Na ausência
de provas, de fatos concretos, pedem-nos ter fé, ou seja, precisamente
acreditar sem provas. O que passa a dominar é o sentimento do sagrado, a
atitude de submissão a poderes imaginários, mas tão superiores, nas nossas
convicções. O divino é profundamente humano, e respeitável, dentro de limites.
·
A morte: medo e mistérios
É interessante pensar nas raízes de tanta força do
imaginário, sem entrar em polêmicas, ser contra ou a favor, sem escolha de qual
religião é mais verdadeira. Uma motivação óbvia é o medo da morte. Inúmeras
religiões introduziram a crença na vida eterna, e os detalhes já existiram no
zoroastrismo, milênios atrás, dos quais herdamos precisamente a ressurreição
dos mortos, o julgamento final, o messias, e a vida eterna. Realmente, pensar
que somos apenas primatas conscientes, que passam algumas décadas nessa terra e
desaparecem, gera um profundo sentimento de absurdo. E o vazio da morte
assusta. Inventar a vida eterna gera um imenso alívio, ainda que as dúvidas
persistam no íntimo. É claramente um pensamento mágico, mas justifica
amplamente a adesão. E promove a criação de tantos universos imaginários do
pós-morte, já muitos milênios antes da nossa Era. A Divina Comédia é bem poderosa, na
riqueza do desenho do além, e constitui apenas um exemplo de tantas descrições,
nas diversas crenças.
Mas também as mais variadas crenças e religiões
souberam explorar e ampliar os medos. Segundo Hitchens, “desde já não haveria
tantas igrejas se a humanidade não tivesse tanto medo do tempo, da escuridão,
da praga, do eclipse e de tantas coisas atualmente facilmente explicáveis.”
Sempre haverá quem navegue nas nossas fragilidades e inseguranças.
·
A busca do sentido da vida
Outra poderosa motivação está ligada não ao medo da morte,
mas ao próprio sentido da vida. Wim Wenders tem essa frase bonita: “Humanity is
craving for meaning”, a humanidade anseia por sentido. Shakespeare trouxe com
força este “life’s but a walking shadow…”: a vida como uma sombra que passa, o
conto de um idiota. Qual o sentido dessa nossa passagem barulhenta ou
silenciosa num mundo de alegrias, paixões e sofrimento, da guerra de todos
contra todos, da banalidade de tantas coisas. Acho que é uma motivação
poderosa, alguém lá em cima está olhando para o que fazemos, nos julga,
contabiliza os pecados e os bons comportamentos, vai nos punir ou recompensar.
Ou seja, há sentido, e os inúmeros escribas das diferentes religiões, e tantos
sermões e falas de religiosos, definem, segundo a religião, o que é bom e o que
é condenável, gerando milhares de preceitos e proibições. Até hoje estamos
diariamente confrontados com gente que tem por missão definir como devemos nos
comportar. Ou seja, haveria um sentido superior no que fazemos, há regras, e o
caos que vemos no mundo é culpa dos que não as seguem. Nos sentiremos menos
perdidos, pouco importa a realidade. E haja criatividade.
·
A ansiedade por “pertencer”
Mais poderoso ainda talvez seja o sentimento de
pertencimento social que nos assegura ter uma crença comum com nossos vizinhos,
com a nossa comunidade, por meio de religiões organizadas. Não estamos
sozinhos, rezamos da mesma maneira, traduzimos em exclamações religiosas os
acontecimentos na rua ou nos encontros, “vá com Deus”, “Deus te ajude”, “Virgem
Maria!”, “o Diabo que te carregue”, “vade retro Satanás!”, somos todos um
grupo, uma comunidade que se entende. Gera uma convicção de identidade, somos
católicos, judeus, protestantes, muçulmanos, budistas, evangélicos, animistas,
pouco importa, o importante é que conhecemos cada um a sua tribo, não estamos
sozinhos. A desgraça do pertencimento religioso é que também nos distingue dos
“outros”, e é espantoso como hoje, na era das mídias sociais, as fraturas
explodem. Max Fisher, no seu A máquina do caos, mostra bem como
os algoritmos de maximização da atenção das pessoas navegam nos conflitos
religiosos. Pouco importa aqui qual a religião, qual a mitologia, conquanto
permita uma clara delimitação entre “nós” e “eles”. Pertencer é também excluir,
mas atrai. O tribalismo, religioso ou político, continua poderoso.
·
O sentimento de estar
juntos: a sociabilidade perdida
O pertencimento está ligado a outra dimensão que é a
sociabilidade. Neste mundo em que estamos cada vez mais isolados uns dos
outros, mal conhecendo os nossos vizinhos no ambiente urbano, na solidão da
família nuclear com o filhinho, o sofá e a televisão, ou o celular, a perda de
contato humano real pesa. Nos lugares mais perdidos vamos encontrar a igreja, o
templo, frequentemente uma casinha modesta onde o culto permite que as pessoas
se reúnam, se cumprimentem, cantem juntas, se prometam visitas, se deem
parabéns pelo filho que está crescido, escutem juntas o que um padre ou um
pastor tem a dizer sobre a vida e sobre o além, pouco importa: estamos juntos.
Bem, o bar e o jogo de futebol também cumprem essa função, mal comparando. Es
os movimentos, sincronizados, ajudam na sociabilidade, como aponta Jonathan
Haidt, em A
geração ansiosa:
“Cristãos se ajoelham, muçulmanos se voltam para a Meca, dervixes rodopiam,
judeus têm o daven, que envolve orar
em voz alta enquanto se balança o corpo de determinada maneira. Congregações
cantam e dançam juntas, o que abre o coração de seus membros uns para os outros
e para Deus.” O resgate da sociabilidade, ainda que parcial, justifica muito as
motivações religiosas, sobretudo nesta sociedade em grande parte atomizada,
fragmentada. Estamos menos sozinhos. E o mesmo Haidt lembra o impacto negativo
das mídias sociais: “Mas o que acontece quando a vida social se torna virtual e
todo mundo interage através de telas? Tudo se transforma em um borrão
indiferenciado: é um mundo de anomia desestruturada.” (236)
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A magia dos rituais
E temos o teatro da vida. As pessoas adoram rituais,
obrigações agradáveis e assumidas que transformam as nossas vidas numa peça de
teatro. Shakespeare de novo: “a poor player that struts and frets his hour upon
the stage, and then is heard no more”, um pobre ator que saltita e se agita na
sua hora de palco, e de quem não se saberá mais. Mas o teatro é tão importante.
Lembro que perdi a minha religiosidade numa igreja em Campinas, assistindo à
missa com o meu pai, eu devia ter uns 17 anos, e vendo o padre passar entre as
fileiras de bancos, com todas as suas vestes do ofício, e balançando um incenso
que soltava uma fumacinha, me veio um momento desses que deslocam o conjunto da
visão que temos de uma realidade: vi a cena como teatro, as roupas, a fumaça,
os cantos, a hóstia, as figuras de santos, as luzes, as velas, tudo me apareceu
como algo que as pessoas claramente adoram, mas que evidentemente não tem nada
a ver com algum deus: o mistério desapareceu. Com o tempo, iria conhecer
inúmeras cerimônias religiosas diferentes, procissões, o dia de Iemanjá na
Bahia, ritos africanos. Respeitáveis, sem dúvida, frequentemente de beleza
emocionante, mas claramente um teatro humano. Os numerosos e variados deuses,
aqui, apenas pretextos. Pretextos, mas necessários. E atraentes.
·
O uso político da
espiritualidade
Menos respeitável é a apropriação política do
sentimento religioso. Dos primeiros ritos na Mesopotâmia, cinco mil anos antes
de Cristo, passando pelos deuses do Egito dos faraós, do tão divertido universo
de deuses gregos em brigas e paixões permanentes – tão humanos – a narrativa da
bíblia dos judeus, e mais recentemente o cristianismo, o islamismo ou o
hinduísmo, sem falar da bancada evangélica no Brasil atual, sempre tivemos o
uso da espiritualidade das pessoas com instrumento de poder político. Quando
Constantino, no ano 324 da nossa era, torna o cristianismo a religião do império,
simultaneamente reforça o seu poder político, e assegura poder político ao que
já eram os “bispos”, a igreja de Roma. De perseguida, a igreja se torna
perseguidora, dona de poder. J.M. Roberts, no seu History of the
World, o
descreve de forma elegante: “A Igreja se vestiu de púrpura imperial.”(228)
Aqui, promovida a religião de Estado, a religiosidade se torna imposição, e ai
de quem não aderir. O uso da religiosidade como instrumento de poder data de
milênios antes de Cristo. E haja barbárie em nome de deus.
Roberts, ao analisar as grandes civilizações no mundo,
mostra como praticamente todos os poderes políticos utilizaram a religião para
se legitimar, numa troca de vantagens entre a capacidade de governos enraizarem
o poder político e a capacidade de os cleros assentarem o seu poder espiritual.
Os reis “de direito divino” e o papa representante de deus, uma mão que firma a
outra. Não à toa a mais recente luta pela democracia foi, e continua sendo, uma
luta pelo Estado laico, a separação dos poderes. A colusão do poder político,
apoiado no poder militar, com o poder espiritual, apoiado nas estruturas
diversificadas dos cleros no decorrer de milênios da nossa história, sem dúvida
levou as populações a aceitarem as diversas narrativas de deus, inclusive se
convertendo sob pena de morte em tantas “civilizações”. Hoje, continuamos na
pré-história, e não é só no Afeganistão.
·
A atração das narrativas
Não podemos deixar de lado a fenomenal criatividade dos
que criaram as narrativas das grandes e pequenas religiões. As cosmogonias,
histórias de como se gerou o mundo, como fomos criados, são de uma riqueza
espantosa. Eu tenho minha visão particular do Bereshit: deus criou o homem, viu
o que tinha feito, balançou a cabeça, e decidiu que podia fazer uma coisa muito
melhor. E fez, bastou uma costela. O início da bíblia é lindo. Mas é só ver a
riqueza das mais variadas cosmogonias no mundo, para entender como foram
atrativas, só que no caso das narrativas de indígenas, por exemplo, serão
qualificadas de lendas. Muitas narrativas constituem empréstimos, como o
Júpiter romano relativamente ao Zeus grego. O islamismo usa a bíblia
amplamente, assim como a novas igrejas que surgiram nos Estados Unidos. Mas a
história da arca de Noé, inclusive com os animais e o pássaro que volta, data
de milênios antes da bíblia. O parto virgem, tão importante no cristianismo, já
era utilizado em dezenas de narrativas religiosas anteriores. Christopher
Hitchens apresenta uma lista delas (God is not Great, p.23). Mas quase
todos somos alimentados com essas narrativas desde a nossa infância, numa idade
em que o que os nossos pais nos contam é lei. E mais tarde, como resistir a
essa magia? Crescemos, mas continuamos a acreditar. Melhor a magia do que o
vazio.
·
A indústria da religião
A razão econômica é igualmente poderosa. A riqueza dos
templos, das igrejas, das catedrais, dos diversos monastérios é impressionante.
Lembro de visitar a Santa Sofia em Istambul, é absolutamente deslumbrante. As
diversas civilizações da antiguidade semearam o mundo com obras que comovem, e
a Grécia e a Itália são neste sentido impressionantes. Mas o dreno econômico de
muitas igrejas é igualmente poderoso. O fato de tantas terras na Europa
medieval pertencerem às diversas ordens religiosas levou a que com a Reforma no
século 16 a reapropriação de terras tivesse desempenhado um papel importante. E
a religião desempenhou um papel importante ao justificar a escravidão, o
colonialismo, as invasões. No Vietnã religiosos abençoavam as armas que os
americanos iriam utilizar para massacrar as populações.
Hoje, com o poder de comunicação online e TV, a
religião se transformou numa grande indústria, e fica simplesmente barato
chegar com mensagens a bilhões de pessoas. A dimensão industrial nos EUA é
impressionante, e faz parte sem dúvida da construção do poder político,
aproveitando uma pauta que cativa os menos informados, a da sexualidade, da
moralidade cristã e semelhantes, enquanto justifica a desigualdade e a
opressão. No Brasil Edir Macedo tem uma fortuna de 1,34 bilhão. Como é difícil
imaginar um bilhão, basta pensar que esta fortuna do bispo, aplicada no Tesouro
Direto, aumenta a sua fortuna em 385 mil por dia. A capacidade financeira de
manipular pessoas aumentou de maneira radical. Tantas pessoas baixam a cabeça e
acompanham. Não escolhem o caminho, são seguidores, e aderem. É tão mais fácil…
·
A barbárie justificada: em
nome de Deus
A capacidade de mobilização das pessoas para a
violência, através da religião, faz também parte importante do fanatismo em que
as crenças podem se transformar. A tragédia dos muçulmanos na Índia, que
atingiu milhões de pessoas, é característica, e hoje a polarização religiosa
continua a servir de trampolim político para a direita, por exemplo em Israel.
A guerra recente no território que foi a antiga Iugoslávia utilizou as
diferenças religiosas para estimular massacres espantosos, com Milosevic e
outros personagens. No passado, com as diversas guerras de religião, as
cruzadas, tudo se justificava como vontade de Deus, pilhagens inclusive. Os Templários
da Prússia massacravam as populações do Leste europeu em nome de lhes levar a
mensagem de cristo. O filme Alexander Nevsky, de Eisenstein, é um
belíssimo documento. Séculos mais tarde, o exército alemão nazista atacava com
o lema “Gott
mit uns”,
deus está conosco. Na guerra de Secessão, nos Estados Unidos, os defensores da
escravidão tinham um lema semelhante: “Deo Vindice”. O sionismo navega
na religiosidade. O livro A fé e o fuzil, de Bruno Manso,
ajuda muito. Não citarás o meu nome em vão?
·
A liberação do ódio
Não se deve esquecer o poder cativante, para as pessoas
religiosas, de dar vazão ao ódio mais visceral em nome dos princípios mais
elevados. A caça às bruxas permitia canalizar as tensões, e é impressionante
encontrarmos na bíblia a frase “não permitirás que as bruxas vivam”. Foi também
amplamente utilizada contra o universo mais amplo de heréticos, pessoas que
pensavam a religiosidade de maneira diferente, por exemplo ser contra ou a
favor de imagens religiosas. Queimar pessoas era excitante, e mobilizador, e a
igreja católica publicou um manual de tortura para que as pessoas acusadas
confessassem os seus pactos com o diabo: o Malleus Maleficarum, de 1486, é uma
leitura absolutamente impressionante. Poder soltar os seus ódios em nome de
deus era muito atraente, e lamentavelmente a prática ainda persiste. Silvia
Federici nos traz descrições poderosas. Deus como justificativa, a serviço da
barbárie.
·
O uso da sexualidade
Particularmente forte, como elemento de adesão aos
preceitos religiosos, é a regulação das atividades, e até pensamentos, sexuais.
Nas mais diversas crenças deus deve definir os comportamentos amorosos, com a
interpretação detalhada dos religiosos terrestres. Isso envolve padres, rabinos
e tantos “interpretes” da suposta vontade divina. A associação da sexualidade
ao pecado, as práticas da circuncisão ou da excisão, a condenação até da
masturbação, a abstenção sexual como prova de virtude, a denúncia e perseguição
de qualquer “desvio” sexual, a necessidade de confessarmos os “maus” pensamentos,
tudo isso assegura, nas mais diversas religiões – mas felizmente não em todas –
um poder de superego vigilante sempre presente nas atrações amorosas. As
perseguições e a criminalização que isso envolve constituem uma desgraça, mas
de certa forma amarra nosso subconsciente às respectivas religiões. O celibato
dos padres, no cristianismo católico, é particularmente danoso, com os desvios
que hoje conhecemos. O fato das religiões, bem como os seus preceitos, serem
essencialmente masculinos, e criminalizarem com particular violência a mulher,
é muito significativo. Sempre houve candidatos a atirar a primeira pedra, é
excitante. E em muitos lugares, como em muitas cabeças, pouco mudou. A
culpabilização da mulher constitui uma profunda covardia. A excisão e
infibulação então, que ainda atinge milhões, constitui barbárie criminosa. O
livro Anti-Gender
Politics in the Populist Movements detalha as articulações
antifeministas mais modernas, e o seu uso político, veja resenha no meu site.
O Economist de 5 de
outubro de 2024 dedica um número inteiro ao papel central da sexualidade na
religião cristã. Não estamos falando da antiguidade.
·
O perigo do homem solto: o
argumento moralista
Na minha infância, inculcaram-me com força a ideia de
que sem religião, sem o temor a deus, as pessoas se tornam descontroladas,
selvagens, perigosas. Realmente, o ser humano é perigoso, e tem instintos que o
transformam em ameaça. Mas não há base para considerarmos que os homens
religiosos apresentem comportamentos mais morais, mais cordatos, mais
respeitadores do próximo, do que a média geral. Aqui, basta ler um pouco de
história. Não me iludo, o ser humano é capaz de comportamentos abomináveis,
escrevi um texto forte a respeito, As profundezas da natureza humana. Jonathan Haidt, no
seu A
mente moralista, traz uma excelente visão de conjunto sobre o que somos,
com essa complexidade de motivações contraditórias. O que é inaceitável é a
imoralidade se cobrir de legitimidade através das religiões, com uma
legitimidade emprestada ao sagrado, como inclusive muitos fazem com o conceito
de pátria. A hipocrisia ronda esses argumentos. Mas para muita gente, o “temer
a deus” e as ameaças do inferno justificariam a religiosidade. Eu francamente,
acredito mais na racionalidade, e em particular no assegurar a cada um o
suficiente para uma vida digna. Aliás, para quem se interessar, eu publiquei no
meu site uma edição revista e atualizada dos dez mandamentos. Por exemplo,
respeitarás a mulher, e não apenas a mulher do próximo.
·
A convergência das motivações
O interessante, no conjunto, é que a tão forte presença
das religiões, nas mais diversas populações, e com as mais diferentes
narrativas, não resulta do fato de haver alguma prova de existência do
sobrenatural, mas da convergência de um conjunto de motivações, o medo da
morte, a vontade de pertencimento social, a construção de uma identidade, mas
também da força política aliada com o clero organizado, o poder das narrativas,
as mobilizações guerreiras, o dar vazão ao ódio, o controle da sexualidade. É
um conjunto de fatores que contribui para o peso da religiosidade nas diversas
sociedades, e nas diversas épocas. Não se trata simplesmente de ser a favor ou
contra, mas de entender um fator dos comportamentos sociais que não podemos
ignorar. Frente aos desequilíbrios a tensões, um ponto de apoio, ainda que
imaginário, é sempre útil.
Além dos pontos de convergência que apontei acima,
podemos trazer outros, como a poderosa motivação de ser o povo eleito, como por
exemplo dos religiosos judaicos, o que lhes permitiria tudo com outros povos; a
praticidade de explicar o mal através do diabo, ou dos diabos; o gosto de
deuses particulares sob forma de um santo para cada profissão ou cidade; o
prazer de se imiscuir nas sexualidade dos outros em nome da moralidade cristã
ou outra – deformação que eu atribuo a religiosos de buraco da fechadura,
obcecados com a intimidade dos outros – e de forma geral a utilidade de
recorrer ao pensamento mágico frente às desgraças, ao sentimento de impotência
humana.
No meu caso, conheci tantas religiões, e tantas
narrativas diferentes, por parte de pessoas convencidas de serem as únicas a
conhecerem a verdade, que só posso concluir que se trata de construções
humanas. Atribuir a responsabilidade do que fazemos a deus, francamente, não é
sério, em particular se considerarmos as guerras, a violência, a exploração, a
ganância descontrolada, a espantosa fome de milhões crianças quando temos o
suficiente. Temos de assumir a nossa responsabilidade, nos humanos, pela
barbárie do que fazemos.
Mas, no essencial, estou seguro que para muita gente o
sentimento de espiritualidade é necessário, e é profundamente respeitável. O
que não é respeitável é o uso político e comercial da espiritualidade, hoje
generalizado. A indústria das crenças constitui uma atividade vergonhosa,
radicalmente ampliada com as novas tecnologias da comunicação, permitindo o uso
dos nossos sentimentos mais íntimos para interesses que de místicos não têm
nada. Não usar a palavra de deus em vão seria um bom preceito a se recomendar a
esses pilantras.
E se tem uma coisa que os religiosos têm de aprender,
ou aplicar de maneira generalizada, é a tolerância do diferente. Os seres
humanos são facilmente manipulados, e passam a justificar o ódio e a violência
contra os que qualificam de infiéis, pagãos, ateus, por vezes com diferenças
absurdas como entre grupos cristãos ou entre sunitas e xiitas no islã. As
diferenças são humanas, o ódio ao diferente é que é patológico. Essa atitude de
tolerância, de compreensão das diferenças, é uma questão de elementar dignidade
humana, e envolve uma atitude bem-humorada frente aos que acham que são donos
da verdade, da Verdade.
Fonte: Outras
Palavras
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