Jesus foi ao
inferno? O que diz a antiga crença cristã
A descida de Jesus ao inferno
faz parte da tradição cristã, embora de forma
não unânime, desde o segundo século. De acordo com essa crença, após a morte por
crucifixão e
antes de sua ressurreição, ele teria ido a este lugar mítico e libertado os
mortos que ali estariam.
Por este
entendimento, anteriormente a isso todos os que havia morrido estavam nesse
local. Somente após essa descida de Jesus é que houve a reorganização do espaço
pós-vida para que apenas os maus fossem ao inferno.
Mas toda essa
interpretação é cheia de camadas. Incorpora a tradição judaica, as mitologias
grega e romana, textos bíblicos, uma oração de
origem milenar — o credo repetido em missas e cultos cristãos — e escritos
apócrifos. E carrega nuances inclusive sobre a definição de inferno.
A origem desta
narrativa provavelmente remonta à segunda ou terceira geração dos seguidores de
Jesus — aqueles que não o conheceram em vida, portanto. Segundo pesquisadores,
os primeiros seguidores não se preocupavam com o pós-morte, pois acreditavam
que a volta triunfal de Jesus para instituir o prometido Reino de Deus
ocorreria ainda com eles vivos.
"A crença no
pós-morte como algo individual, ir para o céu ou para o inferno, se tornou mais
forte a partir do século 2º", afirma à BBC News Brasil o teólogo e
cientista da religião Marcelo da Silva Carneiro, pesquisador do cristianismo
primitivo e professor na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp).
"Isso aconteceu porque os primeiros cristãos, no século 1º, tinham a firme
crença de que a volta de Jesus seria imediata e mundial, ou seja, eles nem
chegariam a morrer."
"Mas isso não
aconteceu. As gerações foram passando e os cristãos precisaram ajustar seu
discurso sobre o fim, senão cairiam em descrédito", acrescenta ele. A
solução foi desenvolver a crença sobre o céu e o inferno, como lugares para
onde a pessoa iria após a morte.
·
O
evangelho de Nicodemus
A mais detalhada e
completa fonte dessa narrativa é um texto conhecido como Evangelho de
Nicodemos, um texto apócrifo que leva esse nome porque supostamente teria sido
redigido por um personagem contemporâneo de Jesus, o fariseu Nicodemus que o
teria defendido no julgamento e se encarregado de sepultá-lo.
Sabe-se, contudo,
que a redação do texto é posterior. No livro Evangelhos Apócrifos - Gregos
e Latinos, uma edição traduzida e comentada pelo professor Frederico Lourenço,
da Universidade de Coimbra, afirma-se que não é possível "datar com
segurança" este documento, mas que provavelmente "ele foi composto
entre os século 4º e 5º".
Contudo, antes de
merecer o registro, era uma história que circulava. "A origem [do relato]
é incerta, mas tudo indica que o texto registra crenças comuns aos primeiros
cristãos, de que Jesus teria libertado todos os mortos do inferno", diz
Carneiro.
E isto tem a ver
com o judaísmo. "Essa crença de que os mortos ficavam no inferno,
independentemente de ser como castigo ou não, vem do judaísmo antigo, que
atribuía ao sheol o lugar dos mortos, um espaço de ataraxia, ou seja,
inércia absoluta", explica o professor. "E, depois, em contato com a
cultura grega, associaram o conceito de sheol ao de hades, que
depois foi traduzido como inferno."
"A crença da
descida de Jesus ao inferno é comum a todos os cristãos, porém a Igreja
Católica assimilou mais profundamente por conta do apócrifo Evangelho de
Nicodemos", conta Carneiro, que é o autor de uma tradução do texto
publicada no Brasil pela editora Paulus.
O relato, escrito
do ponto de vista de quem estava no inferno, traz o episódio que teria ocorrido
entre a morte e a ressurreição de Jesus: sua descida ao espaço para libertar
aqueles que ali estavam.
"Aí vem uma
série de interpretações. O que ele foi fazer lá é o grande dilema",
comenta à BBC News Brasil o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes,
professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Ele foi pregar para o
arrependimento [daqueles]? Parece que não. Ele foi proclamar sua vitória sobre
a morte, mostrando que aquele ambiente não pode prendê-lo, pois haverá sua
ressurreição e a ressurreição de todos os que vêm? Esta segunda versão parece
muito viável."
Carneiro esclarece
que "o texto evidencia que Jesus foi tirar os mortos que estavam naquele espaço
de escuridão e ataraxia desde Adão [que, segundo o Gênesis da bíblia, teria
sido o primeiro ser humano]".
"O próprio
Adão, inclusive, [segundo o apócrifo] fica muito feliz com a chegada de Jesus
ao inferno, porque ele traz luz e vida", pontua o teólogo. "Assim
como os profetas e todas as demais pessoas que lá estão."
Este é um aspecto
crucial desta narrativa: nela, este lugar era o único destino pós-morte, por
isso até mesmo as pessoas vistas como boas ali estavam. "Aparentemente, só
a partir daí o inferno passa a ser o destino das pessoas ruins e que não creram
em Jesus como Salvador", contextualiza Carneiro.
"Eis o ponto
importante para este grupo: quem ouvir essa mensagem depois de Jesus ter
ressuscitado, caso caia no inferno, não sairá mais dele, pois agora Jesus está
no céu", completa.
Assim, o relato
também funciona como uma espécie de marco fundador da dicotomia entre céu e
inferno para os cristãos. E, claro, influenciou muito da cultura ocidental.
"Ficava a
questão: e o que Jesus fez no Inferno? A resposta vem do Evangelho de
Nicodemos: Jesus o esvaziou para todas as pessoas que morreram antes de ele
ressuscitar", comenta Carneiro. "A partir daí, o Inferno passa a ser
o lugar de punição."
"Em termos de
recepção desse texto, temos de destacar a [obra-prima] Divina
Comédia, de Dante [Alighieri, poeta que viveu entre 1265 e 1321]",
escreve Lourenço, ressaltando que a narrativa também se tornou
"significante para a história da arte".
·
Da
tradição judaica ao credo cristão
Na bíblia hebraica,
a palavra sheol aparece 65 vezes. Literalmente, significa sepultura,
mas suas menções retratam um local entendido como a região dos mortos ou o
mundo dos mortos.
Seria então o local
destinado a receber toda a humanidade depois da vida, nesse entendimento
antigo.
Quando esses
escritos antigos foram traduzidos para o grego, sheol acabou se
tornando hades — na mitologia grega, Hades é o deus do
mundo inferior e dos mortos, equivalente ao Plutão dos romanos.
"Na Bíblia há
diversos termos para se referir a esse lugar ou mansão dos mortos: Geena,
Hades, infernos… Neste caso, inferno deve ser entendido no seu sentido literal:
regiões inferiores da terra. E não como lugar de condenados", afirma à BBC
News Brasil a teóloga Adriana Barbosa Guimarães, pesquisadora na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP).
Assim, ela entende
que a descida de Jesus à mansão dos mortos seja um testemunho de sua
"solidariedade com o ser humano na sua vida e na sua morte".
Essas camadas são
necessárias para uma melhor compreensão sobre o pensamento daqueles primeiros
cristãos e as terminologias por eles escolhidas. Na versão católica
contemporânea do Credo dos Apóstolos, oração repetida em missas e cultos,
diz-se que Jesus "foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos,
ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus".
O Catecismo da
Igreja Católica, documento que consolida a doutrina da denominação, explica em
seu artigo 636 o que o credo quer dizer com "desceu à mansão dos
mortos". "[O trecho] confessa que Jesus morreu realmente e que, por
ter morrido por nós, venceu a morte e o Diabo, que tem o poder da morte'",
esclarece.
Mansão dos mortos,
portanto, acabou sendo a tradução conveniente para justificar o termo.
Acredita-se que o Credo tenha surgido — ou, ao menos, uma versão embrionária do
mesmo — pouco depois do ano 50. Foi a maneira, por tradição oral, que os
primeiros cristãos tinham para rememorar os episódios que julgavam importantes
da biografia de Jesus.
Vale ressaltar a
versão latina da mesma oração, que diz "descendit ad ínferos". O
termo inferno, em latim "infernus", é derivado de "inferos"
— literalmente "lugar abaixo". Etimologicamente, as palavras inferior
e inferno têm a mesma origem.
Na bíblia
Se o
apócrifo Evangelho de Nicodemos é a fonte mais completa sobre o
episódio, é fato também que diversas passagens da bíblia indicam essa mesma
crença da passagem de Jesus pelo inferno.
O teólogo Carneiro
explica que isso se deu porque, mesmo sendo hoje um livro apócrifo,
o Evangelho de Nicodemos "é diferente de muitos outros",
pois "ele cita diversas passagens dos evangelhos canonizados".
"Por isso, se
tornou menos questionável. E chegou a circular por vários séculos",
pontua.
"Acabou
virando uma história meio que canônica. Entrou pela janela da bíblia canônica
porque, mesmo de origem apócrifa, acaba sendo citado na bíblia", avalia à
BBC News Brasil o sociólogo Edin Sued Abumanssur, professor na PUC-SP.
Escrito por volta
dos anos 80, ou seja, possivelmente antes mesmo dos evangelhos, o livro
dos Atos dos Apóstolos registra uma profecia sobre Jesus que dizia
que Deus não o abandonaria "na morada dos mortos".
No Evangelho
de Mateus há um trecho em que o próprio Jesus teria dito aos seus
discípulos que "o Filho do Homem estará no seio da terra por três dias e
três noites".
Já a Primeira
Epístola de Pedro traz duas citações que indicam a partilha dessa mesma
crença. Diz a carta que Jesus "foi pregar até aos espíritos que se
encontravam na prisão". E que "até aos mortos foi anunciada a boa
nova".
Na Epístola de
Paulo aos Efésios, um trecho diz: "Ele subiu! Que quer dizer isto, senão
que ele também desceu até embaixo da terra? Aquele que desceu é também o que
subiu mais alto que todos os céus, a fim de plenificar o universo".
"A ideia
desses trechos é afirmar que Jesus, depois que morreu e antes de ressuscitar,
desceu ao inferno para pregar aos espíritos aprisionados", contextualiza
Abumanssur.
Mas há quem entenda
que dizer que Jesus desceu à mansão dos mortos seja apenas uma maneira de
indicar que ele, como qualquer ser humano, também experimentou a morte. Neste
caso, a teologia permite diversas explicações.
Considerado um dos
maiores teólogos do século 20, Karl Barth (1886-1968) costumava dizer que essa
ideia de Jesus descendo ao inferno é "o centro do centro" da
mensagem, por envolver o aspecto "mais humano possível".
"E aí vem tudo
aquilo: ele proclama que é o dono do céu e da terra, do lugar dos mortos,
evangeliza [também lá]… É o aspecto da humanidade de Cristo", concorda
Moraes.
A teóloga Guimarães
explica que "a descida à mansão dos mortos" deve ser entendida como
"mais uma etapa dos atos salvíficos de Jesus, que abraçou totalmente a
condição humana na vida e também na morte".
"Toda a
existência humana, desde a concepção até a sua morte foi assumida e tocada pela
salvação que Deus oferece ao ser humano na pessoa de Jesus", analisa.
Nesse sentido,
Guimarães defende que essa descida seja compreendida como a experiência de
Jesus ao encontro "dos seres humanos que já haviam passado pela morte e
que aguardavam a salvação".
Há nuances
semânticas. "Depende da linha que a pessoa adota em relação ao inferno e
ao pós-morte", esclarece Carneiro. "Teólogos mais estritos tendem a
considerar que o tempo entre a morte e a segunda vinda de Cristo, o juízo
final, não terá nenhuma atividade e os mortos não foram ainda designados, nem
para o céu, nem para o inferno."
"Então, tanto
o termo inferno quanto mansão dos mortos seriam uma questão semântica simbólica
para significar sepultura", complementa. "A outra linha adotou
concepções mais imediatistas e vinculadas a crenças populares: céu e inferno já
estão recebendo seus mortos."
De acordo com o
teólogo, "do ponto de vista prático, qualquer uma das formas está
correta" na crença cristã.
Fonte: BBC News
Brasil
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