terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Brasil mira descarbonização, mas segue subsidiando combustíveis fósseis

O Brasil se comprometeu a reduzir, até o ano 2035, de 59% a 67% das emissões de gases de efeito estufa, na comparação com os níveis de 2005. A meta é apresentada na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, em inglês), que é o compromisso climático firmado pelos países signatários do Acordo de Paris. Mas, apesar dos objetivos ambiciosos, os incentivos aos combustíveis fósseis ainda predominam na cadeia produtiva nacional.

De acordo com dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), hoje são R$ 81,9 bilhões (cerca de 16,38 bilhões de dólares) em subsídios para combustíveis fósseis, contra apenas R$ 18,06 bilhões (3,61 bilhões de dólares) para renováveis. Ou seja, 81,9% dos incentivos fiscais oferecidos pelo governo federal para o setor de energia são direcionados para os fósseis.

Para realizar o monitoramento, o Inesc levou em conta todas as formas de subsídios, incluindo isenções tributárias, despesas diretas e outras concessões fiscais, abrangendo tanto o consumo quanto a produção de energia.

Petróleo e gás também levaram vantagem na última edição do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O governo federal pretende investir pelo menos R$ 335 bilhões em projetos de petróleo e gás nos próximos anos. No total, 61% do investimento no eixo do programa intitulado “transição e segurança energética” ficou para os petróleo e gás.

Questões como a tentativa, por parte da Petrobras, de exploração de novos poços perfurados na foz do rio Amazonas, apesar da negativa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ditam o tom da falta de compasso entre o compromisso de descarbonização e o incentivo ao setor dentro do próprio governo.

“Isso acontece porque, dentro de um governo, com pessoas políticas, temos um Ministério do Meio Ambiente competente e capaz, mas não consegue penetrar nas decisões de outras pastas, como Agricultura e Minas e Energia”, aponta Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental.

O peso econômico da exploração de petróleo e gás conta a favor do setor nas decisões governamentais. Segundo a Confederação Nacional das Indústrias, o setor de petróleo e gás emprega mais de 21 mil pessoas, e as exportações representam 10,3% da participação do PIB industrial.

“O Brasil é um grande produtor de commodities. Além do setor do agrícola, mais recentemente, temos um destaque do setor de extração de petróleo de gás, devido ao aumento expressivo da produção do setor. Hoje somos exportadores líquidos. Há 10 anos éramos importadores”, afirma a economista Silvia Mattos, coordenadora do FGV/Ibre.

·        Beneficiado por subsídios, setor planeja expansão

Em 2023 o Brasil arrecadou mais de R$ 420 milhões em um leilão com mais de 190 blocos exploratórios, localizados por diversos estados, como Amazonas, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte. As empresas vencedoras, entre elas a Petrobras, prometeram mais de R$ 2 bilhões em investimentos.

Com os arremates deste leilão, a estatal agora tem uma área exploratória de 50 mil km² espalhada pela costa brasileira, o que equivale a praticamente a 33 municípios de São Paulo em extensão territorial.

Entre alguns especialistas, o episódio foi chamado de “leilão do fim do mundo”.

“Deveríamos ter um plano de descarbonização bem claro. O Brasil precisa intensificar a produção de biocombustíveis, controlar o desmatamento e promover a agricultura de baixo carbono. Temos mais facilidade do que países dependentes de carvão. Precisamos de um plano claro para liderar pelo exemplo”, aponta Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e conselheira-sênior do Observatório do Clima.

A Petrobras perdeu o monopólio da exploração no final do século 20. Desde então o país realizou mais de 30 licitações para novas perfurações em blocos. Neste período, a produção cresceu de 970 mil barris por dia para 3,5 milhões por dia. Mas a conta está chegando.

“Ao intensificar a produção de combustíveis fósseis, o país está caminhando na direção contrária ao que deveria fazer. Isso gera um ônus que será compartilhado por todos nós. Em 2024, vemos inundações no Rio Grande do Sul e seca na Amazônia. Temos demonstrações claras de que a crise chegou. Não estamos fora dessa realidade, é uma verdadeira tragédia. Todos os países, em seu esforço, deveriam estar intensificando os esforços para reduzir os gases do efeito estufa”, complementa Araújo.

No plano estratégico que mira os investimentos da Petrobras até 2028, a companhia pretende investir US$ 73 bilhões em exploração e produção de petróleo, contra apenas US$ 9 bilhões em aplicações para energia de baixo carbono, além de reduzir em 30% a intensidade de emissões de gases do efeito estufa do portfólio até 2030.

“A Petrobras precisa ser uma empresa de energia, não apenas petroleira. Quando falamos em energia renovável, a empresa deveria ter um cronograma sério e ser líder num processo de descarbonização”, pontua Araújo.

Procurada pela reportagem, a Petrobras não se manifestou.

·        Reforma tributária pode mudar o cenário

Em 2017 foi sancionada a Lei 13.586, que consolidou e ampliou os benefícios fiscais do Repetro, um regime aduaneiro especial para a indústria de petróleo e gás fóssil. A lei garante a tributação especial para petrolíferas pelo menos até 2040. Com isso, investimentos na exploração de óleo e gás ficam isentos de pagamento de impostos, como por exemplo de importação e contribuição para a seguridade social.

Segundo o Ministério de Minas e Energia (MME), o Repetro é o principal subsídio para fósseis atualmente. A pasta defendeu, em nota, que o regime especial consiste em um “adiamento estratégico da cobrança de impostos para o momento em que os projetos começam a gerar receita”, viabilizando projetos de grande escala.

Já o projeto de reforma tributária, aprovado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, aguardando a sanção presidencial, traz um aumento na tributação dos fósseis. O projeto prevê que o setor entre na regra do Imposto Seletivo, popularmente conhecido como “Imposto do Pecado”, que tem por objetivo tributar bens ou serviços que sejam prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

Entidades da sociedade civil veem o momento como “uma oportunidade histórica de redirecionar e focalizar incentivos tributários à transição energética justa”. Já para o Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP) esse percentual de tributação tiraria a competitividade nacional comparada ao mercado global.

Para ampliar investimentos em economia de baixo carbono, mirando na transição energética, o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) aumentou seu investimento em projetos renováveis. “O BNDES possui um portfólio de US$ 36,4 bilhões em renováveis, financiados nas últimas duas décadas, sendo o maior banco financiador de energia renovável no mundo”, diz Luciana Costa, diretora de transição energética do banco estatal.

A diretora acredita que a transição energética precisa ser justa, por isso o país ainda precisa manter investimento em combustível fóssil. “O setor de óleo e gás não é incompatível com a transição energética. O mundo não vai abandonar o petróleo rapidamente; precisamos de uma transição gradual para garantir a segurança energética”, opina Costa.

Já o Ministério de Minas e Energia alega que que o Brasil possui a maior participação de energia limpa entre os países do G20 e que o governo federal reonerou os combustíveis, como a gasolina e o diesel, retomando as alíquotas de PIS, COFINS e CIDE, zeradas durante a gestão presidencial anterior, alterando um ‘subsídio’ de R$ 40,6 bilhões em 2022, para arrecadar mais de R$ 50 bilhões neste ano.

A pasta cita ainda que o país também tem um Plano Nacional de Transição Energética (Plante). “É um plano de longo prazo, compatível com cenários de transição energética e requisitos de desenvolvimento socioeconômico”, afirmou o ministério.

¨      Caatinga desmatada para instalação de painéis solares mobiliza comunidade na Bahia

No dia 14 de maio de 2024, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) da Bahia autorizou a empresa norueguesa Statkraft Energias Renováveis a realizar o desmatamento de 1.524 hectares de floresta de caatinga arbórea – cerca de 1.500 campos de futebol – no topo das serras situadas entre as cidades de Uibaí e Ibipeba, no centro-norte da Bahia. O objetivo era a instalação de 1.384.240 painéis de placas solares.

Segundo estudo publicado pelo próprio Inema, a área diretamente afetada possui 230 espécies de plantas, das quais 15 estão ameaçadas de extinção, e outras 200 espécies animais do bioma Caatinga, sendo que 64 espécies não sobrevivem fora do ambiente de floresta. As águas também são impactadas pelo empreendimento, pois a área serve de recarga para os rios Verde e Jacaré, afluentes do Rio São Francisco. Do total desmatado, 441 hectares são áreas de preservação permanente (APPs). Mesmo assim, o relatório técnico considerou o empreendimento de baixo impacto ambiental e o Inema concedeu a licença.

Vale lembrar que a mesma Statkraft já está instalada na região com o Complexo Eólico Ventos de Santa Eugênia, onde 14 parques eólicos, totalizando 91 turbinas, constituem o maior empreendimento da empresa fora da Europa.

Segundo Edimário Oliveira Machado, uma das principais lideranças contra a instalação do parque solar, o desmatamento autorizado pelo Inema é “inadmissível”: diz ele que, a poucos metros das áreas licenciadas, há terrenos em abundância, já desmatados, com condições para acolher o empreendimento e ainda gerar receitas de arrendamento para a agricultura familiar local.

Isso numa região que já tem mais de 90% de sua caatinga desmatada na área agricultável. “Nós precisamos da Caatinga lá do alto da serra para manter o equilíbrio do ambiente. Sem a vegetação, não teremos água para alimentar os aquíferos nem o ambiente necessário para a reprodução da fauna”, diz Edimário.

Willianilson Pessoa da Silva, mestre em Zoologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), confirma a fala de Edimário, sustentando que a recomendação é que os parques solares sejam feitos em áreas já desmatadas. “Já que vai precisar fazer terraplanagem, o correto é procurar uma área já degradada, e na Caatinga existem muitas áreas desertificadas. E o melhor é que a instalação do parque solar não necessita de altitude, como os eólicos, por causa do vento. O mesmo sol que bate lá em cima chega aqui embaixo”, ele explica.

Edimário é presidente da Umbu (União Municipal em Benefício de Uibaí) e coordenador do Colegiado de Desenvolvimento Territorial de Irecê (Codeter). Foi através dessas representações, e em parceria com o Sindicato dos Produtores Rurais de Irecê e o Comitê das Bacias Hidrográficas dos Rios Verde e Jacaré, que Edimário ingressou com mandado de segurança pleiteando uma ordem judicial liminar suspendendo as licenças ambientais que autorizam o desmatamento de reservas de caatinga nas serras dos municípios de Uibaí e Ibipeba. O pedido de socorro ao Judiciário se deu porque o Inema adotou postura inflexível em relação às ponderações da sociedade civil, encaminhadas em dezembro de 2023 através de seis representações formais.

 “A licença está cheia de vícios, erros e irregularidades”, diz Edimário, argumentando que, em uma reunião em Salvador com a diretoria do Inema, o diretor de fiscalização do próprio órgão reconheceu que um licenciamento desse porte jamais poderia ser feito sem analisar ao menos três alternativas locacionais. “E não houve nenhuma alternativa analisada, somente a que foi apresentada pelo empreendedor. E nós sabemos que, em um raio de 1 quilômetro, existem áreas sem vegetação, planas e com o mesmo nível de insolação, o que permite que o complexo solar seja híbrido.”

Quem também esteve presente nessa reunião foi a educadora ambiental Marilza Pereira da Silva, conhecida como Índia Catingueira, que levou à equipe da Mongabay a conhecer a área onde estão acontecendo as obras para a instalação do complexo solar. Ali, declarou que “é doloroso assistir máquinas e caçambas depositando o que sobrou da vegetação retorcida no solo. Mais doloroso ainda é visualizar, durante o caminho, as placas de boa intenção da empresa com o meio ambiente, sinalizando as nascentes, as cachoeiras. Mas não há de fato uma consciência. Eles colocam essas placas como um ato de reparação, mas sem plantar uma árvore. Nós visitamos o Riacho do Garapa após a chuva e não havia água porque a nascente está soterrada.”

<><> A batalha judicial

Diante das irregularidades verificadas no licenciamento, no dia 29 de novembro de 2024 o Tribunal de Justiça da Bahia acolheu o pedido do Ministério Público e suspendeu a instalação do complexo solar. No entanto, no dia 20 de dezembro, Statkraft conseguiu a suspensão, por 90 dias, dessa decisão de primeira instância. O prazo de 90 dias é o tempo suficiente para que seja finalizada o desmatamento. Quem requereu essa decisão ao Tribunal foi o Estado da Bahia.

Procurada pela reportagem da Mongabay, a empresa emitiu uma nota informando que, “após a suspensão da liminar que paralisou as obras no final de novembro, o Complexo Santa Eugênia Solar informa que os mais de 600 trabalhadores retornarão às atividades, contribuindo diretamente para o desenvolvimento da região, na sequência do recesso de final de ano.  Documentos adicionais serão entregues para reforçar que o licenciamento atendeu rigorosamente todos os requisitos legais e ambientais.”

E continua: “A empresa reafirma sua confiança no processo de licenciamento, que foi conduzido com profundidade técnica e transparência, cumprindo todas as regras legais e ambientais. Todos os estudos necessários para a compreensão integral dos eventuais impactos ambientais na área de instalação foram realizados, incluindo análises detalhadas de fauna, flora, patrimônio natural, entre outros. Com base nesses estudos e em boas práticas ambientais, foram implementados programas de monitoramento, controle e mitigação dos impactos socioambientais.”

Em resposta à retomada das atividades, no dia 6 de janeiro de 2025 uma grande mobilização foi montada: o “Grito da Caatinga”, que reuniu em Uibaí representantes de 68 instituições locais, unidas em protesto para exigir o imediato cancelamento da licença ambiental. A manifestação foi realizada na estrada e teve forte adesão da população local, com faixas, carros de som e gritos de ordem. Os trabalhadores da empresa escutaram as reivindicações dos manifestantes até as 9:30, quando a manifestação se dissipou.

Um vídeo da fala de Edimário durante a manifestação circula na internet e faz a pressão sobre a empresa crescer dentro da Noruega. O ministério  norueguês da Indústria e da Pesca, responsável pela empresa Statkraft, está sofrendo questionamentos de reportagens locais sobre a forma como a empresa vem se posicionando em relação ao desmatamento em áreas desertificadas no Brasil.

<><> Uma revolução verde

Em paralelo à batalha contra o desmatamento, a comunidade local vem também se empenhando em recuperar aquilo que já estava degradado. Em Uibaí, uma das figuras fundamentais nesse processo é Hamirto da Rocha Machado, conhecido na região pelo apelido de Hamirtão.

Ele é responsável por uma verdadeira revolução verde na região, concentrada em seu sítio Rancho Fundo, onde desde 1976 vem se dedicando a replantar espécies nativas da Caatinga. Hamirtão não faz ideia de quantas árvores já plantou, mas afirma que já saíram mais de 1 milhão de mudas do Rancho Fundo e que elas estão espalhadas por todo o Brasil. Sem contar as mudas que ele mesmo plantou na região.

Diz Hamirtão que levou um tempo até encontrar a maneira certa de fazer suas mudas vingarem: “Eu colocava as mudas de plantas junto dos minadores de água, aí era eu colocando de manhã e as cabras comendo de tarde. É porque eu plantava na seca, até que eu aprendi a fazer o reflorestamento depois da chuva. Porque quando chove cria mato e as cabras sobem pela serra para comer. Quando elas descem já estão de barriga cheia e deixam as mudas que eu havia plantado lá”.

Foi observando o trabalho de reflorestamento de Hamirto que Edimário resolveu chamá-lo para fazerem juntos o replantio da grota do Mané José, uma importante área de minação de água que havia secado após o local ser utilizado para criação de gado e ter sofrido repetidas queimadas durante seis décadas. Desde 2008 já foram plantadas mais de 8 mil mudas de plantas nativas. E o local, que estava quase desertificado, se transformou. Hoje produz sementes e garante parte da água que é consumida pela comunidade de Uibaí.

Durante o processo, os sócios da Umbu adquiriram uma área vizinha à grota do Mané José, onde fizeram a primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) da região, a primeira ação desse tipo feita pela população com o intuito de preservar a natureza local.

Segundo Edimário, a grota do Mané José deverá ser impactada novamente pelo desmatamento que acontece no topo da serra: “Lá em cima, no topo da serra, é ponto de recarga de toda essa parte baixa, e essa água não vai mais infiltrar como antes. Ela vai escorrer por outros caminhos e vamos ter uma perda de suprimentos para os minadores”.

 

Fonte: Mongabay

 

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