Michael Löwy: Mapa
para superar o inferno climático
Hipocrisia do Acordo de Paris e das COPs mostra: não há solução para a
crise climática nos limites do modelo capitalista. Faltam alternativas radicais
ao ecocídio. Mas para chegar a elas, é preciso construir uma rota de vitórias
parciais, que levem “consciência ecológica e socialista”
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Contra o “ecocídio capitalista” e por uma ampliação da
autonomia da sociedade, “o sistema produtivo como um todo deve ser
transformado”, afirma o sociólogo marxista Michel Löwy. Diretor de pesquisas
emérito do Centro Nacional da Pesquisa Científica [Centre National de la
Recherche Scientifique], da França, autor de trabalhos sobre Karl Marx, Leon
Trótski, Rosa Luxemburgo, Georg Lukács, Lucien Goldmann e Walter Benjamin, Löwy
falou à Úrsula sobre
os princípios do ecossocialismo, que seria uma “alternativa radical” a um
modelo econômino que não apresenta perspectivas de contribuir para o confronto
da crise climática. Nesse sentido, ele denuncia a ineficácia das conferências e
acordos internacionais com esse objetivo, comenta os possíveis efeitos da
eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e defende uma rota de “vitórias
parciais” e de “consciência ecológica e socialista”. Além disso, o pesquisador
fala sobre seu interesse sobre o romantismo, que se afigura como um “movimento
heterogêneo”, que se fez também como crítica ao capitalismo.
>>> O romantismo como Janus cifrado
·
Daniel Placido – Para começar esta
conversa, gostaria de perguntar em qual momento da sua trajetória intelectual o
professor começou a se interessar pelo estudo do romantismo e quais razões
motivaram tal pesquisa?
Michael Löwy – Eu “descobri” o
tema do romantismo quando estava pesquisando para minha tese de doutorado de
estado sobre Lukács. Me dei conta de que os círculos intelectuais que
frequentava Lukács em Budapeste e em Heidelberg partilhavam de uma crítica
romântica da modernidade. O mesmo vale para o primeiro período do itinerário
cultural e político do jovem Lukács, e inclusive para seus primeiros escritos
marxistas em 1919. O celebre teórico da crítica cultural Raymond Williams
escreveu em 1981 uma simpática resenha da edição inglesa do meu livro (que
tinha como título Georg Lukács, from
Romanticism to Bolchevism); Williams insistia que não é necessário
deixar de lado a crítica romântica para aderir ao marxismo. Eu concordava com
isto. Havia começado a explorar esta temática em alguns artigos, recolhidos no
livro Marxisme et romantisme
revolutionnaire (1979). No começo dos anos 1980 encontrei
Robert Sayre, que havia sido, como eu, aluno de Lucien Goldmann. Começamos
então uma larga pesquisa comum sobre o romantismo, culminando no livro Revolte et Mélancolie. Le romantisme à contre-courant
de la modernité (1992) [Revolta
e Melancolia: o Romantismo na Contracorrente da Modernidade na
edição brasileira, de 2015]. Nosso sentimento era que o romantismo era muito
mais do que uma escola literária: se tratava de uma visão do mundo (no sentido que dava a
esse conceito Lucien Goldmann) que se manifestava em todos os terrenos da cultura
– até na economia política! – e se estendia de meados do século XVIII até hoje.
Uma visão do mundo pouco explorada pelas ciências sociais, e que tinha um papel
importante na cultura moderna.
Daniel Placido – Em diversas obras e
artigos, o senhor caracterizou o romantismo como uma visão de mundo cujo
componente central é a crítica à civilização capitalista moderna,
manifestando-se ora como um movimento conservador, ora como um movimento
revolucionário. Mesmo um filósofo liberal como Isaiah Berlin (por exemplo
em A força das ideias, de
2005) compreendeu o romantismo como um movimento ambivalente, gerando
características positivas, como a desconfiança de verdades universais, a
valorização da criatividade e o respeito à subjetividade, e características
negativas, como a exaltação de heróis sobre-humanos, da paixão e do poder
arbitrário. O romantismo é um “Janus bifronte” a ser ainda decifrado?
Michael Löwy – A visão romântica
do mundo é com efeito uma critica à civilização capitalista, tal como vai se
formar a partir da Revoluçâo Industrial no século XVIII. Uma crítica que se
refere a valores sociais, culturais, religiosos, políticos, do passado
pré-capitalista, e que vai denunciar a quantificação, mercantilização e
monetarização da vida social, o desencantamento do mundo, a dissolução das
comunidades humanas e a destruição da natureza.
Estou de acordo com Isaiah Berlin que se trata de um
movimento ambivalente. Ou melhor, um movimento heterogêneo, dividido em
orientações distintas, e às vezes, diametralmente opostas. Discordo de Berlin
com respeito ao heroísmo e as paixões: não são, em si mesmas, “características
negativas”! Depende de seu objeto e sua natureza… quanto ao poder arbitrário,
ele toma, na época moderna, formas burocráticas, militares ou totalitárias que
nada têm de “romântico”.
Muitos românticos voltam-se exclusivamente para o
passado, sonhando com uma restauração de formas de vida
pré-modernas: por exemplo, a Cristandade Medieval, na obra do grande
romântico alemâo Novalis. Pode-se citar muitos outros exemplos: os irmãos
Schlegel, Schelling, Chateaubriand, Balzac, Coleridge, o jovem Thomas Mann etc.
Se trata aqui de um romantismo regressivo, passadista, que desejaria uma
(impossível) volta ao passado. Muitos autores, em especial marxistas, – o Lukács
tardio é um bom exemplo – chegam à conclusão que o romantismo é uma crítica
reacionária do capitalismo.
O que se ignora com este enfoque é a existência de uma
outra forma da visão romântica do mundo, que nós chamamos de “romantismo
revolucionário”: para este, o objetivo não é a volta ao passado, mas um desvio pelo passado, em direção ao
futuro utópico e/ou revolucionário. O primeiro romântico revolucionário foi
Jean-Jacques Rousseau, em seu famoso Discurso
sobre a origem da desigualdade entre os humanos (1755) – um
dos textos fundadores da visão romântica. Rousseau compara a liberdade dos
selvagens das Caraíbas com a escravidão do homem moderno, mas ele não propõe
que os franceses voltem a viver na mata virgem: sua proposta é restabelecer a
liberdade perdida em uma forma nova, a democracia. Podem ser considerados
românticos utópico-revolucionários figuras como William Blake, Flora Tristan,
Hölderlin, Pierre Leroux, Moses Hess, William Morris, Gustav Landauer e Ernst
Bloch. O surrealismo é um exemplo extraordinário de movimento cultural
romântico revolucionário.
>>>> A aposta do ecossocialismo: ser ao invés
de ter
·
Rafael Bensi – Para nosso leitor
que não está familiarizado com o conceito, o senhor poderia definir em linhas
gerais o que é o ecossocialismo e como os ecossocialistas têm questionado as
bases do capitalismo predatório global?
Michael Löwy – O ecossocialismo
é uma tentativa de fornecer uma alternativa civilizacional radical ao ecocídio
capitalista, uma alternativa enraizada nos argumentos básicos do movimento
ecologista e na crítica marxista da economia política. Ele contrapõe ao
“progresso destrutivo” capitalista (Marx) uma política econômica fundada em
critérios não-monetários e extra-econômicos: as necessidades sociais e o
equilíbrio ecológico. Esta síntese dialética é, ao mesmo tempo, uma crítica à
“ecologia de mercado”, que não se confronta com o sistema capitalista, e ao
“produtivismo socialista”, que ignora a questão dos limites naturais.
Os ecosocialistas se inspiram nos comentários de Marx sobre
a Comuna de Paris: os trabalhadores não podem tomar posse do aparato de estado
capitalista e colocá-lo para funcionar a seu serviço. Eles têm que “quebrá-lo”
e substituí-lo por uma forma radicalmente diferente, democrática e
não-estatizante de poder político. Algo similar se aplica ao aparelho
produtivo: as forças produtivas, e não somente as relações de produção, têm que
ser profundamente modificadas – em primeiro lugar, através de uma revolução no
sistema energético, com a substituição da matriz essencialmente fóssil
responsável pela poluição e envenenamento do ambiente, por outras renováveis:
água, vento, sol. É claro que muitas descobertas científicas e tecnológicas da
modernidade são preciosas, mas o sistema produtivo como um todo deve ser transformado,
e isso só pode ser feito por métodos ecossocialistas, isto é, através de um
planejamento democrático da economia, que leve em conta a preservação do
equilíbrio ecológico.
A própria sociedade, e não mais uma pequena oligarquia
de donos de propriedades nem uma elite de tecnoburocratas, será capaz de
escolher, democraticamente, quais linhas produtivas deverão ser privilegiadas,
e o quanto de recursos que será investido em educação, saúde ou cultura. Os
próprios preços das mercadorias não serão entregues às “leis da oferta e da
demanda”, mas, até certo ponto, determinados segundo opções sociais e
políticas, assim como critérios ecológicos, levando à taxação de certos
produtos, e subsidiando o preço de outros.
Longe de ser “despótico”, o planejamento ecossocialista
é o exercício, pelo conjunto da sociedade, de sua liberdade: liberdade de
decisão, e libertação das alienadas e reificadas “leis econômicas” do sistema
capitalista, que determinam a vida e a morte dos indivíduos, e os encarceram em
uma “gaiola de ferro” (Weber). Planejamento e a redução do tempo de trabalho
são os dois passos decisivos da humanidade rumo ao que Marx chamou de “o reino
da liberdade”. O ecossocialismo é baseado em uma aposta, que já foi de Marx: o
predomínio, em uma sociedade sem classes e liberta da alienação capitalista, do
“ser” sobre o “ter”, isto é, do tempo livre para a realização pessoal de
atividades culturais, esportivas, ludicas, científicas, eróticas, artísticas e
políticas, ao invés do desejo pela posse infinita de produtos.
>>> Um “programa de transição” para a luta
climática
·
Thais Zwicker – De que forma as
metas estabelecidas nos acordos ambientais globais, como o Acordo de Paris,
podem ser compatíveis ou conflitantes com os princípios do ecossocialismo,
especialmente no que diz respeito à superação do modelo capitalista para
alcançar justiça climática?
Michael Löwy – As metas
estabelecidas no Acordo de Paris são legítimas: tomar as medidas necessárias
para impedir que a temperatura do planeta supere os 1,5° acima da época
pré-industrial, considerando que, a partir deste limite, existe o risco –
apontado pelo Grupo Internacional de Estuado do Clima (GIEC) – de um processo
incontrolável e irrreversível de aquecimento global. Os vários países
participantes se comprometeram a reduzir suas emissões de gases com efeito de
estufa. Este grande resultado é infelizmente comprometido por dois “detalhes”:
1) Nenhum dos participantes do Acordo de Paris cumpriu suas promessas; 2)
Cientistas calcularam que se todos os países que assinaram o Acordo de Paris
tivessem cumprido suas promessas, a temperatura do planeta ainda assim subiria
para mais de 3°.
Na verdade, as varias COPs [sigla de Conferências
das Partes, reuniões da Organização das Nações Unidas sobre o clima] que se
sucederam desde então nada de novo trouxeram, senão vagas promessas de
“reduçâo” das emissões, sem controle, sem sanções, sem resultado: as emissões
continuam subindo, e a temperatura também. É a prova mais evidente de que não
há solução para a crise climática nos limites do modelo capitalista.
Os principios do ecossocialismo exigem uma ruptura com
a lógica de expansão e acumulação do capital, a expropriação da “oligarquia
fóssil” – os interesses ligados ao carvão, petróleo, gás, indústria automóvel,
eletricidade, plásticos etc – e o início de uma processo de transição em
direção a uma nova sociedade.
Thais Zwicker – Como o senhor
avalia o papel do G20, composto pelas maiores economias do mundo, na promoção
(ou impedimento) de uma transição para modelos como o ecossocialismo,
considerando que esses países lideram tanto a emissão de gases do efeito estufa
quanto a implementação de políticas ambientais globais?
Michael Löwy – As conclusões que
se pode tirar das várias COPs valem para o G20: eles são parte do problema, não
da solução. Claro, existem diferenças entre governos diretamente
ecocidas, climato-negacionistas (Bolsonaro, Trump) e governos que têm algum
tipo de política ambiental (a União Europeia). No meio caminho se situam os
hipócritas, que falam de ecologia, mas queimam o carvão em quantidades
astronômicas (Modi, na Índia). Mas entre uns e outros, nada aponta às medidas
urgentes necessárias para tentar limitar o desastre. Estamos avançando para o
inferno climático, e o capital pisa no acelerador. A União Europeia fala em
“neutralidade de carbono” em 2050, mas recusa tomar agora e já iniciativas
visando a redução drástica das emissões. Como bem resume Greta Thunberg, “é
matematicamente impossível resolver a crise ecológica nos quadros do atual
sistema econômico”.
Sonhar e lutar por uma civilização ecossocialista não
significa que não se deva lutar por reformas concretas e urgentes. Sem nenhuma
ilusão sobre um “capitalismo limpo”, deve-se tentar ganhar tempo, e impor aos
poderes constituídos algumas mudanças elementares: o abandono de novos projetos
de exploração das energias fósseis, de novos oleodutos, de novas centrais
elétricas térmicas; a elaboração de um programa público de investimentos em
energias renováveis e na agricultura orgânica; o fim da obsolescência programada
dos produtos; a supressão da publicidade.
Essas e outras bandeiras ecossociais urgentes podem
levar a um processo de radicalização, sob a condição de não se aceitar limitar
alguma meta tendo em vista interesses do “mercado (capitalista)” ou da “competitividade”.
De acordo com a lógica do que os marxistas chamam de “um programa de
transição”, cada pequena vitória, cada avanço parcial pode imediatamente levar
a uma demanda superior, para uma meta mais radical. Essas lutas em torno de
questões concretas são importantes, não somente porque vitórias parciais são
bem-vindas, mas também porque elas contribuem para elevar a consciência
ecológica e socialista, promovem atividade e auto-organização desde as bases:
ambas são pré-condições decisivas e necessárias para uma radical, isto é,
revolucionária, transformação do mundo.
>>>> Trump traz prejuízos, mas o império já não
é o mesmo
·
Rafael Bensi – Recentemente, o
economista Jefrey Sachs concedeu uma entrevista
a Piers Morgan e
foi enfático em suas críticas ao governo americano. Dentre os assuntos, ele
tratou da influência negativa que os EUA exercem no mundo através de
interferências políticas. Ele disse que o governo americano não é confiável em
nenhum aspecto. Como o professor enxerga o futuro da política estadunidense sob
a administração Trump, principalmente no que tange aos compromissos
internacionais do clima? Existe alguma chance de uma transição para o
ecossocialismo tendo os EUA como opositor global?
Michael Löwy – Donald Trump é um
climato-negacionista declarado, um partidário incondicional das energias
fósseis e seu progama é claramente ecocida. Representante da oligarquia
fóssil e do setor mais reacionário do grande capital, ele recusa qualquer
regulamentação ecológica, nacional ou internacional. Já em seu governo
anterior ele havia se retirado dos Acordos de Paris e provavelmente fará o
mesmo agora 1. Os “compromissos internacionais do clima” já
estavam dramaticamente atrasados em relação à urgência da crise climática, e
sem dúvidas o governo Trump vai contribuir para agravar este atraso.
Dito isto, haverá sem dúvida oposição à politica
ecocida de Donald Trump em seu próprio país: uma oposição mais moderada, de
governadores democratas (California, Nova York etc), e uma oposição mais
radical de movimentos sociais, de forças políticas de esquerda (Democratic
Socialists of America, o Partido Verde etc), de comunidades indígenas (os
Sioux), de setores ecologicamente conscientes do movimento sindical, do
feminismo, do movimento negro, da juventude etc.
Processos de transição ecológica, mais ou menos
radicais segundo os países, em particular na América Latina, enfrentarão sem
dúvida a oposiçâo das oligarquias locais, apoiadas pelo imperialismo americano,
sob a égide de Trump. Mas o poder do imperialismo ianque não é o mesmo de 40
anos atrás: sua hegemonia econômica e política está bastante fragilizada. As
lutas de movimentos socioecológicos, com ou sem o apoio de governos
progressistas, se desenvolverão necessariamente, como resultado do agravamento
visível da crise climática (inundações, furacões, incêndios, temperaturas
insuportáveis, subida do nível do mar etc). Poderão vencer os obstáculos e
iniciar um processo de transição em direção ao ecossocialismo? Não existe
nenhuma garantia de sucesso… mas, como dizia Bertolt Brecht, quem luta pode
perder, quem não luta já perdeu.
Fonte:
Entrevista a Daniel Plácido, Rafael Bensi e Thais Zwicker, na Revista Úrsula
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