Alejandro Galliano:
A ingovernabilidade do capitalismo 4.0
Em tempos recentes,
as sociedades ocidentais compartilham a sensação de estar atravessando dois
processos simultâneos: por um lado, uma aceleração tecnológica e
econômica; e por outro, uma crise dos valores e das instituições políticas
da democracia
liberal,
dominantes durante os últimos 40 anos. Para muitos analistas, é irresistível
vincular ambos os processos: ou as novas tecnologias corroem a capacidade de
governança das instituições democrático-liberais, ou esse sistema político, que
o Ocidente consagrou no pós-guerra e tentou globalizar com relativo sucesso,
tornou-se obsoleto diante das mudanças tecnológicas e econômicas que já não
consegue conter. No entanto, seria conveniente não se deixar deslumbrar pela
novidade da aceleração. Em 1886, Werner von Siemens dizia: "Esta
lei, claramente reconhecível, é a da aceleração constante do atual
desenvolvimento da nossa civilização". É mais, poderia-se narrar toda a
história do capitalismo como a das sucessivas crises
de ingovernabilidade que
a disrupção técnica e econômica gera, e as novas formas de governabilidade que
essas mesmas tecnologias tornam possíveis.
Em 2001, no
contexto da crise
das pontocom,
o coletivo anarquista Tiqqun publicou "A hipótese
cibernética". Nele, sustenta-se que: A relação entre capitalismo
e cibernética se
inverteu ao longo do século: enquanto que, após a crise de 1929, foi construído
um sistema de informações sobre a atividade econômica para servir à regulação –
esse foi o objetivo de todos os planejamentos –, a economia, após a crise de
1973, faz descansar o processo de autorregulação social sobre
a valorização da informação (...). O problema da cibernética não é
mais o da previsão do futuro, mas sim o da reprodução do presente. Já não se
trata de uma ordem estática, mas sim de uma dinâmica de autoorganização. O
indivíduo já não é legitimado por nenhum poder: seu conhecimento do mundo é
imperfeito, seus desejos lhe são desconhecidos, ele é opaco para si mesmo.
Tiqqun se
dissolveu pouco depois do atentado
contra as Torres Gêmeas. Seus herdeiros, do Comitê Invisível, chamaram a
atenção do Buró Federal de Investigação (FBI) e, mais tarde, ficaram envolvidos
em um sabotagem ferroviária na França que resultou em prisões e nove
processos criminais. Suas ideias têm um antecedente, citado explicitamente:
o Manual de sobrevivência, publicado por Giorgio Cesarano em
1974. Nele, diz-se: O capital quer se tornar nada mais nada menos que o gestor
cibernético e quantificador do "Outro", o caldo de cultivo das
"comunas" autoanalíticas, onde cada um autogestione sua própria
reestruturação descentralizada (se transforme em uma "terminal
biológica" do computador que o minimiza estatisticamente…). Próximo ao
operaísmo italiano e herdeiro tanto do marxismo quanto do vitalismo
irracionalista fascista, Cesarano participou da reflexão que seguiu
ao refluxo de 1968, e na crise
do Estado de Bem-Estar viu uma nova forma de governança capitalista.
Meio século antes
de Cesarano, no alvorecer do fordismo e no meio da inquietante paz que se
estendeu entre as duas guerras mundiais, o jornalista e funcionário
estadunidense Walter Lippmann observou que o ambiente tecnológico e
informacional estava evoluindo a uma velocidade maior que a espécie humana e
sua capacidade de se adaptar: "A sociedade moderna não é visível para
ninguém nem inteligível de forma contínua como um todo (...). Já é
suficientemente ruim hoje (...) estar condenado a viver sob um bombardeio de
informações ecléticas". Ele propôs usar esse mesmo parque infotécnico para
"fabricar consenso" por meio da propaganda de um governo dirigido por
especialistas. E um século antes de Lippmann, o médico e geólogo
escocês Andrew
Ure publicou The
Philosophy of Manufactures [A Filosofia das Manufacturas], onde concebia a
fábrica como um autômato, e a mecanização, como uma via de disciplinamento
humano por uma força autorregulada: "Por causa da fraqueza da natureza
humana, acontece que quanto mais hábil é o trabalhador, mais obstinado e
intratável tende a se tornar e, claro, menos apto como componente de um sistema
mecânico. O grande objetivo, portanto, do fabricante moderno é, por meio da
união do capital e da ciência, reduzir a tarefa de seus trabalhadores ao
exercício da vigilância e da destreza."
A
aparente crise de governabilidade que marca nosso presente é outro
capítulo da dialética entre um fluxo tecnoeconômico que abala e
eventualmente derruba as instituições e valores existentes para governar a
sociedade, e os novos mecanismos de governo que esse fluxo tecnoeconômico torna
eventualmente possíveis. Um resumo esquemático dessa dinâmica nos permitiria
situar melhor nossa época e tentar vislumbrar as possíveis saídas.
·
Quatro
versões do software capitalista
A fim de evitar
caracterizações opacas como "neoliberalismo", "fordismo",
"capitalismo manchesteriano" e um longo etc., optarei por periodizar
cada fase e transformação do capitalismo como versões de um
mesmo software. A metáfora é inspirada no já esquecido conceito de "indústria
4.0"
proposto por Wolfgang Wahlster, diretor do Centro de Pesquisas de
Inteligência Artificial da Alemanha, durante a Feira de Hannover de 2011. E se
fundamenta no fato de que qualquer sistema econômico é um conjunto de
procedimentos para circular matéria, energia e informação (o que comumente
chamamos de "riqueza"), ou seja, um software, que deve ser
instalado em um hardware: um ambiente mais estável de instituições,
recursos, territórios, etc. Assim, o capitalismo é um software que deve
desenvolver diferentes versões para enfrentar as sucessivas crises que gera sua
própria disrupção.
O capitalismo
1.0 corresponde
ao período da chamada "Revolução Industrial", que se estendeu durante
a primeira metade do século XIX, quando os fluxos mercantis que se vinham
desenvolvendo desde o século XVII se consolidaram em torno de um paradigma
tecnológico (a máquina a vapor e, por extensão, a termodinâmica) e um modelo de
negócios (a empresa capitalista conduzida por seu proprietário). A crise de
governabilidade do capitalismo 1.0 torna-se evidente se observarmos
que nasceu em um ambiente conflituoso (as guerras e revoluções que se sucederam
de 1756 a 1815) e os traços de seu desenvolvimento acelerado (a mecanização da
produção, a globalização do comércio e a proletarização do trabalho) alteraram
a estrutura arraigada das sociedades que ia incorporando em suas redes. Este é
o problema que atacaram tanto Andrew Ure como Charles
Babbage, Henri
de Saint-Simon, Karl
Marx e John
Stuart Mill,
entre outros, todos interessados em governar, de uma forma ou de outra, a nova
sociedade emergente com suas próprias ferramentas, mas governá-la no fim das
contas. Para meados do século, um conjunto básico de instituições (o padrão
ouro, a hegemonia britânica e as sucessivas "leis dos pobres")
ordenaram a aceleração do capitalismo 1.0. Mas, a médio prazo, essa mesma
aceleração levou a uma saturação da oferta, que resultou na grande depressão do
final do século XIX. Dessas crises, e dos diferentes experimentos políticos e
empresariais pensados para superá-las, surgiu o capitalismo
2.0,
caracterizado por um novo e mais complexo paradigma tecnológico (a
eletricidade, a motorização e a produção em série) e um tecido institucional
mais robusto (Estados intervencionistas, grandes sociedades empresariais
oligopolistas). Sob o capitalismo 2.0, as empresas se transnacionalizaram,
e o consumo e o trabalho se massificaram.
A nova escala
do capitalismo 2.0 tornou obsoleta a hegemonia britânica para
garantir uma ordem global e produziu tensões entre as nações e dentro das
sociedades que resultaram na grande crise de 1914-1945 (guerras, revoluções,
quebras financeiras). Essa crise de governabilidade foi resolvida
apenas durante a Segunda Guerra Mundial com a consolidação dos Estados
Unidos dentro
de um sistema aparentemente bipolar (desde a década de 1960,
a União Soviética estava economicamente e tecnologicamente
atrás, e militarmente na defensiva). As preocupações
de Lippmann e John
Maynard Keynes sobre
a viabilidade de um sistema de tal escala encontraram eco no complexo tecido de
instituições públicas nacionais e internacionais montado em Bretton
Woods com
o objetivo de garantir a governança nacional e global do capitalismo 2.0.
Mas, tal peso institucional não conseguiu evitar que a ordem fosse cedendo nas
bordas: desde o final da década de 1960, a periferia do mundo começou a
resistir à hegemonia dos Estados Unidos, a disciplina laboral começou a se
ressentir nas grandes plantas industriais e os novos atores da sociedade de
massas (estudantes, trabalhadoras, aposentados) começaram a reclamar maiores
benefícios. O peso fiscal das instituições que tentavam atender a esses
conflitos por meio da intervenção militar (warfare state) ou da compensação
econômica (welfare state) tornou-se intolerável para o capital, que aproveitou
suas redes transnacionais para se evadir de qualquer regulação estatal. Foi uma
crise de governabilidade da periferia, do trabalho e do capital.
A saída que o
capital encontrou para essa crise deu origem ao capitalismo 3.0, baseado
em um novo modelo de negócios: a empresa conectada a fluxos financeiros globais
e adaptada a ciclos de negócios curtos por meio da
terceirização, offshoring e mercantilização crescente de áreas
inteiras da sensibilidade humana, desde o lazer com o turismo até a imaginação
com a publicidade. De alguma forma, consagrou-se a "cibernética"
que Cesarano denunciou nos anos 70 e que Tiqqun viu crescer
no final do século XX. Ao redor desse modelo de negócios, desenvolveram-se
novas tecnologias (a microeletrônica, a informática, os organismos geneticamente
modificados), novas instituições internacionais ou velhas instituições
adaptadas ao novo sistema
financeiro global (a
Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o Sistema da
Reserva Federal, a Bolsa de Valores de Nova York).
Os sistemas fiscais
nacionais também se reconverteram: deixaram de distribuir a riqueza para baixo,
a fim de estimular a demanda agregada, e começaram a fazê-lo para cima,
cortando gastos sociais para reduzir impostos sobre o capital e estimular o
investimento. Também se manteve a velha hegemonia dos Estados Unidos, atingida
pela crise dos anos 70, mas revitalizada pelo colapso do bloco comunista no
final dos anos 80. Tratava-se de um sistema extremamente frágil e instável, que
no início do século XXI se sustentava em redes financeiras tão aceleradas
quanto volúveis e um endividamento sistemático dos Estados, indivíduos e
empresas. A crise de 2008 veio para derrubar o capitalismo 3.0. O capitalismo
4.0 é
o que está nascendo dessa crise, que já vai para sua segunda década. Seria
fácil citar a suposta afirmação do líder chinês Zhou Enlai com aquilo
de que "é muito cedo para opinar" (em referência à Revolução
Francesa),
mas a crise
de governabilidade global é tão evidente que não podemos suspender os
julgamentos até que a coruja de Minerva abra suas asas. Qualquer análise
histórica de um presente que se precipita para o futuro corre o risco de se
tornar obsoleta, mas, mesmo assim, vale a pena tentar.O paradigma tecnológico
de nossa época parece se acomodar em torno da chamada "inteligência
artificial"
(IA), na verdade, o aprendizado de máquinas em redes focadas em funções
específicas. A IA vem para expandir um sistema ciberfísico já em
curso, de crescente integração de objetos e pessoas com a web por
meio de plataformas. A difusão e adoção, muitas vezes experimental, da IA em
diferentes modelos de negócios altera tanto as formas das empresas (que podem
prescindir cada vez mais de ativos graças à digitalização e a um sistema de
financiamento nos fluxos financeiros globais), como a produção, o consumo e,
finalmente, a subjetividade. Essas microeconomias e modelos de negócios são
possíveis por uma infraestrutura física de escala quase planetária composta por
cabos submarinos, centros de dados, satélites, antenas, servidores, etc., e uma
disputa aberta em torno da hegemonia que governará este capital global. Essas
são as bases da atual crise de governabilidade.
·
Da
precarização à pós-normalidade
Para caracterizar sumariamente
a ingovernabilidade do capitalismo 4.0, vou delimitar duas tendências que
considero nodais, embora de nenhuma maneira esgotem as características do
sistema: a precarização
global e a deriva da web. São duas denominações arbitrárias,
comecemos pela primeira. Precarização é um conceito normativo porque
supõe o deterioro de uma condição normal (seja o trabalho formal, o
melhoramento das condições materiais, a previsibilidade de certos processos na
vida das pessoas, etc.). Denunciar uma "precarização" muito
disseminada no tempo ou dentro da sociedade implica assumir que essa
"condição normal" está deixando de ser. Atualmente, o deterioro da
"normalidade" é impulsionado por dois fatores estruturais e globais.
O primeiro fator é a crise
climática,
um fenômeno difícil de datar e que está longe de ser novo, mas cujos efeitos
(inundações, secas, variações térmicas atípicas, redução da biodiversidade) já
fazem parte dos cálculos e considerações de governos e empresas. Também há uma
consciência generalizada de que não se trata de fenômenos naturais, mas da
irrupção de forças planetárias em que se entrelaçam processos naturais com
fatores artificiais ou humanos: emissões
de dióxido de carbono,
epidemias sintetizadas pelo tráfego global, pântanos soterrados que inundam
cidades. É evidente que esses processos precarizam a existência humana ao
racharem o suporte material de nossa civilização e de nossas vidas individuais:
uma nova inundação ou incêndio florestal desloca populações inteiras, uma nova
variação de vírus pode se transformar em uma epidemia, etc.
O segundo fator é
a digitalidade como paradigma tecnoeconômico, do qual o aprendizado
automático por redes é apenas uma parte. A difusão e aplicação dessas
tecnologias a diferentes modelos de negócios e seu impacto na economia já foram
bastante estudados: a empresa se encolhe em startups, os ciclos de negócios se
encurtam, as intermediações (logística, comercialização) são puladas, mais
empregos são destruídos do que criados e os novos trabalhadores são
desassalariados. É a famosa "disrupção" que, além de seus ecos
schumpeterianos e seu viés ideológico, descreve uma dinâmica de instabilidade e
precarização. Já na década de 1990, os epistemólogos Silvio
Funtowicz e Jerome Ravetz falaram da "era pós-normal" ou
"pós-normalidade" para designar uma escala de problemas que escapam
aos parâmetros da ciência normal e à abordagem dos especialistas. À medida que
a precarização se universaliza montada sobre dois fenômenos estruturais,
globais e de tendência crescente como a crise climática e
a disrupção tecnológica, o problema epistemológico
que Funtowicz e Ravetz diagnosticaram há mais de 30 anos se
transforma em um problema global: a voz dos especialistas se deteriora, a
incerteza dá lugar à pura e simples ignorância, os dados se tornam maleáveis e
os valores sociais se tornam rígidos. Pudemos ver isso em 2020 nos debates
sobre o isolamento social e a vacinação obrigatória, já havíamos visto
anteriormente nos debates sobre a crise climática, e parece que veremos isso
com cada vez mais frequência em qualquer tema supostamente consensuado durante
os anos de hegemonia democrática liberal. Para Ravetz e Funtowicz,
essa ingovernabilidade responde à contradição principal da modernidade:
queremos viver melhor e temos os meios técnicos para isso, mas desconhecemos o
impacto material desses meios. Isso nos leva ao segundo fator de
ingovernabilidade.
Uma rápida e
canônica história da internet começa em 1969, quando duas universidades da
Costa Oeste norte-americana conseguiram conectar seus computadores para se
comunicar no âmbito do programa Arpanet, desenvolvido pelo Departamento de
Defesa durante a Guerra Fria. Vinte anos depois, em um contexto de distensão
geopolítica e maior acessibilidade das tecnologias, Tim
Berners-Lee criou
uma série de protocolos e linguagens que conectavam essas informações em uma
teia de hipertextos, a web. Se em 1969 o Arpanet havia
descoberto um mundo imaterial, em 1990 a web traçou as ruas e sinais de
trânsito que nos permitiriam passear por ele de forma tranquila e segura. Berners-Lee estava
totalmente consciente do sentido político de sua inovação: tornar a internet
acessível a todos. A partir de 2001, após a crise das "dotcoms", com
a consequente concentração do setor digital em um punhado de big
techs,
e no meio da virada securitária após o atentado contra as Torres Gêmeas,
começou a surgir a web 2.0: redes sociais e plataformas que já não compartilham
seus dados com a web e retêm o usuário dentro delas por meio de uma série
de gadgets e funcionalidades internas. Aqui predomina o chamado
design centrado no usuário, o feedback constante da experiência dos
usuários com as interfaces digitais. Foi a primeira deriva da web:
se Berners-Lee fez da internet uma cidade, as plataformas são bairros
privados que exploram recursos públicos sem contribuir para seu
desenvolvimento. Desde então, se acumularam análises de diferentes tons e
qualidades que falam sobre o deterioramento da web como espaço de troca e seu
impacto sobre os usuários como um novo sujeito social. Desde a
"enshittification" (decadência das plataformas) (Cory
Doctorow),
a "silicolonização do mundo" (Éric
Sadin)
e o "capitalismo de vigilância" (Shoshana
Zuboff),
até abordagens mais complexas e atraentes como o "tecnofeudalismo"
(Cédric Durand),
o "tecnoceno" (Flavia
Costa)
ou o "nanofundismo" (Agustín
Berti).
A priori, todas essas análises se concentram na capacidade de controle social
das novas tecnologias. Existe um ecossistema digital envolvente que permite
capturar dados de cada um de nós, fundi-los em um montão estatístico e
devolvê-los a um indivíduo redefinido como perfil de targeting, que vai
desde um potencial cliente até um possível terrorista. O volume de informação
extraída dos usuários da internet e processada permite cruzar e escalar os
antigos dados biométricos com os novos dados comportamentais registrados
pela digitalidade. O resultado é um sujeito plano e transparente, do
qual é mais importante prever o comportamento do que compreender os motivos. No
entanto, seria um erro considerar o novo sujeito como argila dócil nas mãos do
algoritmo. A web 2.0 é um recipiente de sites e programas formatado
por seus usuários, que foram projetando plataformas e aplicativos, e
transformando uma rede pensada para o intercâmbio e compartilhamento de
agradáveis sujeitos neoliberais em um espaço de reafirmação identitária e
cultivo de seguidores. O mesmo pode ser dito sobre muitas redes sociais,
videogames, etc. Foi substituída uma lógica de comunicação massiva e industrial
(poucos meios de comunicação produzindo informações homogêneas para muitos
usuários) pela horizontalização da rede: todos os usuários produzindo
informações personalizadas para pequenos grupos. O feedback dentro
desse ecossistema derivou em uma conectividade cada vez menos
orientada ao intercâmbio e mais voltada à reafirmação de um "eu"
tribal e emocional, sobrecarregado de informações polêmicas que não consegue
absorver. Tem que escolher, além de qualquer evidência. E no exercício dessa
liberdade não racional rompe qualquer previsibilidade e ordenamento
coletivo. O mesmo ecossistema tecnológico que nos tornou transparentes
para um algoritmo nos tornou opacos para nós mesmos.
Vários analistas
incorporam esse ambiente tecnológico como um fator da ingovernabilidade
atual. Para William
Davies,
a sobrecarga informativa não só desautorizou as vozes de especialistas com um
fluxo de dados tão precisos quanto variáveis, mas também permitiu
"personalizar" a verdade. No século XXI, a autoridade dos dados
deixou de ser um sol que brilha para todos e passou a ser um conjunto de
estrelas cadentes ao redor de cada um. Para Martin
Gurri,
em algum momento do século XXI as novas tecnologias deram voz a um público
massivo, que abandonou o papel passivo ao qual havia sido reduzido durante
aquele século pelo mainstream das instituições autorizadas e
concentradas, que Gurri chama de "Centro". Agora esse
público se organiza em seitas de opinião marginais, que o autor chama de
"Fronteira": "O resultado é uma paralisia por desconfiança. Já
está claro que a Fronteira pode neutralizar o Centro, mas não substituí-lo. As
redes podem protestar e derrubar, mas não governar. A inércia burocrática
confronta o niilismo digital. A soma é zero." As análises
de Davies e Gurri, embora relativamente recentes, ainda tomam
como base a já antiga web 2.0. Hoje entramos em uma terceira deriva
desse ambiente digital. A IA não faz mais do que extremar as
tendências sociais da web 2.0. Trata-se de uma tecnologia – o aprendizado
automático por redes – que vem sendo desenvolvida desde 1943, mas que passou
por um "inverno" de desinvestimento durante as décadas de 1970 e
1980, quando se espalhou a desconfiança em replicar o funcionamento neuronal
com eletrodos. O desenvolvimento da web nos anos 90 forneceu a essas redes um
volume de dados até então inacessível, e assim retornou a "primavera"
da IA. Em 2012, uma equipe liderada por Geoffrey
Hinton e
associada ao Google apresentou
uma rede neural artificial capaz de reconhecer objetos com 70% mais precisão do
que outras redes. Nascia o "aprendizado profundo": o processamento
paralelo por várias redes neurais e o treinamento dos algoritmos por
retropropagação em direção a um objetivo específico. O design centrado no
usuário segue sendo fundamental: "Não vamos compreender plenamente o
potencial e os riscos sem que os usuários individuais realmente brinquem com
ela", diz Alison Smith, responsável pela IA da consultoria Booz
Allen Hamilton. Essa nova primavera
da IA se
alimenta dos dados e conteúdos que brotam do seio da web. Os preconceitos e
estereótipos, a desinformação deliberada, a violação dos direitos autorais e a
agressividade fazem parte dos nutrientes que ela assimila.
·
"China
ou o caos": em busca de uma governança 4.0
Gurri considera
que essa nova ingovernabilidade pode levar tanto ao "caos quanto à China". A dicotomia
é pertinente. De um lado, estão aquelas projeções que se concentram no novo
paradigma tecnoeconômico como mecanismo de controle e veem
a China como um laboratório replicável no Ocidente.
Um ecossistema digital semicerrado, com aplicativos nativos
(Baidu, Weibo, TikTok), centros de dados próprios, empresários
vorazes e uma quantidade imensa de dados que ficam dentro do mesmo ecossistema,
gerido por um Estado com menos barreiras legais para intervir nesse ecossistema
e na vida dos seus usuários. Se a China conseguiu desenvolver seu
próprio ecossistema digital, outros também tentarão. Ainda mais quando há novas
fronteiras a serem conquistadas: a inteligência artificial e a computação
quântica, entre outras. A desglobalização que caracteriza o capitalismo
4.0, com seu reshoring e disputas pela hegemonia, também pode se
estender à web. Esse modelo de governança fechado e desglobalizado pode
permitir que ressurjam certo grau de diversidade tecnológica e cultural, após
meio século de homogeneização global das tecnologias e consumos. Mas também
pode apresentar problemas de governança mundial, ao fragmentar o capitalismo
4.0 em blocos competitivos entre si, sem uma hegemonia clara que os
regule. Por outro lado, existe a opção caótica: transformar a ingovernabilidade
em uma governança por si só. Um dos ensaios mais vendidos sobre isso é Os
engenheiros do caos, do consultor ítalo-suíço Giuliano da Empoli.
Essencialmente descritivo e consideravelmente superficial em suas
conceituações, o livro aborda vários "engenheiros do caos"
(Gianroberto Casaleggio, Dominic Cummings, Steve Bannon, Milo
Yiannopoulos), consultores políticos ou especialistas em marketing que
entenderam que, na opinião pública digital e na nova política, "o jogo já
não consiste em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, pelo
contrário, em inflamar as paixões de tantos grupos quanto possível e depois
somá-los, até mesmo aos predeterminados. Para obter uma maioria, não irão
convergir para o centro, mas se unirão aos extremos". Mais uma vez, o
ambiente digital é determinante para essa engenharia do caos: Esses engenheiros
do caos estão no caminho de reinventar a propaganda adaptada à era dos selfies
e das redes sociais e, como consequência, transformar a própria natureza do
jogo democrático. Sua ação é a tradução política do Facebook e Google.
É naturalmente populista, porque, assim como as redes sociais, não admite
qualquer tipo de mediação e coloca todos no mesmo plano.
Aqui também é
preciso não exagerar na novidade: já em 1942, Franz
Neumann considerava que a estrutura e a prática de poder do regime
nacionalsocialista alemão eram essencialmente caóticas. Se a proposta é
governar por meio do caos, inflamar as paixões e destruir as mediações, também temos
um modelo oriental: a Grande
Revolução Cultural Proletária chinesa, proclamada e conduzida por Mao
Zedong entre
1966 e 1976, uma mobilização exaltada de juventudes e milícias não apenas
contra os restos da cultura burguesa (o Partido Comunista Chinês estava no
poder desde 1949), mas contra qualquer forma de autoridade (a família, os
professores, os especialistas e intelectuais) e, especialmente, contra os
próprios líderes do Partido, suspeitos de querer burocratizar a revolução como
o "revisionismo" soviético posterior a Stalin. No centro dessa
espiral de caos, o próprio Mao reforçava seu poder e liderança
pessoal. Dentro dos modestos limites materiais da República Popular da
China, o maoísmo também explorou seu ambiente tecnológico: o governo
instalou um sistema de alto-falantes nos telhados de cada prédio de
apartamentos, nas escolas rurais e nas bases militares, transmitindo a rádio
estatal em alto volume desde as 6 da manhã. Como modelo para o Ocidente, a
engenharia do caos maoísta não tem muito a oferecer: extinguiu-se no próprio
apetite de destruição, colapsou economicamente a nação e não conseguiu evitar a
efetiva burocratização da liderança comunista. No entanto, para o cientista
político Roland Lew, o maoísmo, involuntariamente, lançou as bases para o
posterior desenvolvimento acelerado do capitalismo na China: destruiu
grande parte das instituições tradicionais que poderiam obstruir o fluxo de
capital e disciplinou tanto a sociedade quanto a liderança comunista para a
sobrevivência e flexibilidade diante da constante instabilidade. Enquanto
a Rússia saltou de um comunismo planejado para um capitalismo
caótico, a China conseguiu transitar de um comunismo caótico para um
capitalismo planejado. Talvez a maior lição maoísta que o Ocidente possa
extrair seja que a engenharia do caos prepare o caminho para
um capitalismo 4.0 ordenado. E é difícil não pensar que a
democracia liberal hoje seja vista como uma dessas instituições e práticas
tradicionais que podem obstruir o fluxo de capital.
Fonte: Nueva
Sociedad
Nenhum comentário:
Postar um comentário