A verdade sobre o
'café fake': por dentro do 'parece, mas não é' que se espalha pelos
supermercados
"O café é um
monoproduto extraído do grão do café. Junto a esse grão, depois de secado e
beneficiado, sobram casca, mucilagem (camada viscosa do grão), pau, pedra,
palha e tudo o que vem junto com o café – mas não é café."
Foi assim que o
diretor da Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic), Celírio Inácio da
Silva, descreveu, em um vídeo que circulou na última semana, o
"cafake", item que vem sendo encontrado em alguns supermercados com embalagem semelhante à
do café, mas que é outra coisa.
Trata-se de um
"pó para preparo de bebida à base de café", que viralizou nas redes
sociais como "café fake" e "cafake", uma mistura de café
com impurezas que, segundo a Abic, não tem registro da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) para ser comercializada.
Na imagem que tem
sido compartilhada na internet, o pacote de meio quilo sai por R$ 13,99, menos
da metade do preço médio do café no varejo atualmente, quase R$ 30.
Presente na grande
maioria dos lares brasileiros, o café foi um dos itens que mais
encareceram em 2024,
com alta de 39,6%, conforme o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA),
contra 4,83% do índice geral de inflação.
O
"cafake" é um caso extremo de uma tendência que se fortalece em
momentos de aceleração da inflação de alimentos como o atual: a proliferação
dos produtos que parecem, mas não são.
A lista é longa e
tem desde "sósias" mais conhecidos, como a bebida láctea, similar ao
iogurte, até outras mais recentes, como o óleo composto, uma mistura de azeite com outros
óleos vegetais, e o creme culinário, vendido como similar ao creme de leite.
Nesses casos, as
categorias são permitidas pela legislação e estão liberadas para
comercialização, desde que deixem bem claro que não se tratam dos produtos
"originais" – o que nem sempre acontece (leia mais abaixo).
A discussão sobre
os alimentos que 'parecem, mas não são' esquentou na semana passada com uma declaração
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugerindo que os consumidores trocassem
produtos que estivessem caros por similares como estratégia para baixar os
preços.
"Se todo mundo
tivesse a consciência e não comprar aquilo que está caro, quem está vendendo
vai ter que baixar para vender , senão vai estragar. Isso é da sabedoria do ser
humano. Esse é um processo educacional que nós vamos ter que fazer com o povo
brasileiro", afirmou Lula em entrevista a rádios da Bahia na quinta-feira
(06/02).
A principal razão
de os produtos similares existirem é econômica. Quando o custo dos itens
básicos aumenta, comprometendo o orçamento doméstico, as famílias de baixa
renda brasileiras tradicionalmente se veem sem outra alternativa a não ser
substituir os produtos que costumam consumir por outros de menor qualidade ou
similares, diz Luciana Medeiros, sócia e líder do setor de varejo na
consultoria e auditoria PwC.
"Ele começa
comprando um suco de uma qualidade que ele julga melhor. Começou a apertar, ele
troca por um suco mais simples. Apertou de novo, troca por suco em pó",
ela ilustra.
O creme culinário
vem de uma leva recente de novos produtos lácteos que a indústria alimentícia
desenvolveu a partir de um subproduto da produção do queijo, o soro do leite,
lembra Ana Paula Bortoletto Martins, professora da Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo (USP).
Décadas atrás, a
substância era descartada durante o processo de produção. Por ser altamente
poluente, contudo, ela passou a ser alvo de uma legislação mais rigorosa de
manejo, que exige que as empresas tratem o soro do leite antes de o despejarem
no ambiente.
O aumento de custo
estimulou a indústria a pesquisar alternativas para o aproveitamento do
material, e daí surgiram itens como a mistura láctea condensada (similar ao
leite condensado), o composto lácteo (similar ao leite em pó), a cobertura
cremosa (similar ao requeijão), a mistura alimentícia com queijo ralado
(similar ao queijo ralado).
Apesar de as
embalagens costumarem ser muito parecidas com as dos produtos tradicionais, a
ponto de confundir os consumidores em alguns casos, a lista de ingredientes é
bastante diferente.
Além do soro do
leite — um líquido aquoso que sobra no processo de coagulação do leite para a
produção de queijo, com menos nutrientes e proteínas do que o leite em si —
outros itens de menor qualidade do que os tradicionais também são adicionados à
composição, como gordura vegetal e amido modificado.
"A indústria
tira a matéria-prima que custa mais e substitui pela que custa menos. Isso é
comum de acontecer principalmente nos países em desenvolvimento", diz
Martins.
A prática também é
recorrente na indústria da carne, acrescenta a especialista.
"Ainda é comum
você encontrar produtos que são uma mistura de carnes com adição de um sabor,
um aroma, uma cor, também pra baratear, vendidas como 'tipo alguma
coisa'", acrescenta.
É o caso da
linguiça "tipo calabresa", que além da carne suína geralmente tem
proteína vegetal e ossos de animais.
"Você acha que
vai comer uma linguiça calabresa, mas na verdade não é bem isso, né?"
Esse é um dos
principais problemas envolvendo os produtos similares, quando a rotulagem
dificulta a diferenciação por parte do consumidor, diz Mariana Ribeiro,
nutricionista do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de
Defesa de Consumidores (Idec).
"A gente
sempre analisa a denominação de venda [a categoria de fato do produto] e a
lista de ingredientes em contraste com as alegações publicitárias que estão
presentes nos rótulos", ela detalha.
No caso do
"cafake", por exemplo, ainda que ele fosse um produto regulamentado e
que o rótulo trouxesse em alguma parte a informação de que se trata de uma
"bebida sabor café", seria problemático o fato da comunicação do
rótulo induzir o consumidor a crer que se trata de um café convencional.
A nutricionista
afirma que os consumidores brasileiros estão cada vez mais interessados em
verificar o que de fato estão consumindo e se informar sobre o rótulo.
A questão é que, na
correria do dia a dia, muita gente só percebe que comprou uma coisa pela outra
depois que chega em casa. É isso que o Idec tem percebido em seu Observatório
da Publicidade de Alimentos (OPA), alimentado com denúncias de publicidade
enganosa enviadas pelos consumidores.
"O produto
muitas vezes está na mesma gôndola de um produto de uma categoria parecida… o
consumidor compra [achando que é o tradicional], mas quando consome percebe
algo diferente, vai ler o rótulo e percebe que não levou o que achava que
estava comprando."
·
Ingredientes
fantasmas
Dois casos recentes
marcantes nesse sentido para a nutricionista são de produtos com
"ingredientes fantasmas", que estão na embalagem, mas não na
composição do alimento.
Um deles era um
creme de avelã que não continha avelã — era feito de cacau com aromatizante de
avelã. Outro era um biscoito "fitness" de sabor aveia e mel, com
favos de mel na ilustração da embalagem, mas ausentes entre os ingredientes —
tratava-se, também, de um aromatizante.
"A gente
percebe que as pessoas ficam muito indignadas principalmente quando são
produtos que têm um certo apelo de saudabilidade", comenta Ribeiro.
Nesse sentido, a
categoria de produtos saudáveis está repleta de "parecem, mas não
são", ressalta Ana Paula Bortoletto Martins.
Se no caso dos
similares o barateamento é um dos principais motores de propulsão, nesse caso é
o apelo à alimentação mais leve e menos calórica — o que muitas vezes não se
observa na prática.
A professora dá
como exemplo os produtos "plant-based", feitos de vegetais e
consumidos, por exemplo, por quem quer evitar proteína animal: apesar de muitas
vezes se venderem como saudáveis, muitos desses itens são ultraprocessados.
·
Faz
mal?
Todos esses
alimentos são prejudiciais à saúde? Não necessariamente.
No caso dos
similares feitos à base de soro de leite, eles à priori têm menos nutrientes e
menor qualidade do que os tradicionais.
É preciso ficar de
olho em quais entram na seara dos ultraprocessados, categoria que o Idec
recomenda que não seja consumida por crianças menores de dois anos e que seja
evitada por adultos.
Os ultraprocessados
passam por uma série de etapas dentro da indústria até chegarem à prateleira do
supermercado e são, em geral, ricos em açúcares, sal e gorduras. São
refrigerantes, por exemplo, alguns frios e embutidos, bebidas lácteas, sorvetes,
pizza, lasanha e massas congeladas de forma geral.
Seu consumo está
ligado ao aumento dos riscos de desenvolvimento de obesidade, de sobrepeso, de
doenças cardiovasculares e de síndrome metabólica (que inclui diabetes).
Uma dica fácil para
identificar esses produtos, segundo a nutricionista Mariana Ribeiro, é procurar
por três tipos de ingredientes no rótulo: corantes, aromatizantes e
edulcorantes.
Ela lembra ainda
que a ordem em que os ingredientes aparecem na composição do produto é
decrescente, ou seja, vai da matéria-prima mais presente para a que existe em
menor quantidade. Se o açúcar aparece na frente da fila, por exemplo, é sinal
de que ele existe em proporção relevante na fabricação do alimento.
No caso específico
do "café fake", a Abic afirma que a disponibilização de novos
alimentos e novos ingredientes requerem autorização prévia da Anvisa, como
prevê a legislação sanitária, para garantir que sejam seguros para consumo.
O produto que tem
circulado nas redes sociais, ainda segundo a associação, apresenta na embalagem
duas resoluções já revogadas pela Anvisa, a RDC 27/2010 e a RDC 240/2018.
"Vale ressaltar que não existe essa categoria", afirmou a entidade,
por meio de sua assessoria de imprensa.
Fonte: BBC News
Brasil
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