terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Presidente da Câmara esquece Ulysses Guimarães e Eunice Paiva

No seu discurso de candidato a presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB) citou Ulysses Guimarães e concluiu seu discurso com uma referência ao filme brasileiro Ainda estou aqui, baseado na história de Eunice Paiva, viúva do ex-deputado federal Rubens Paiva (PTB-SP), durante a ditadura militar. "Temos que estar sempre do lado do Brasil, em harmonia com os demais poderes", disse. "Encerro com uma mensagem de otimismo: ainda estamos aqui". Ovacionado pelo plenário ao concluir, foi eleito com 444 votos dos 513 deputados. Motta recebeu apoio do PT ao PL, apenas o PSol e o Novo ficaram de fora do seu arco de alianças.

Era sábado retrasado, 1º de fevereiro. Elaborado a seis mãos, com a assessoria de dois jornalistas, o discurso fora feito sob medida para sinalizar uma posição política ancorada ao centro e contrária à radicalização política. Entretanto, em uma semana de entrevistas e declarações à imprensa, Motta esqueceu Ulysses e Eunice, deu uma guinada à direita, com críticas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e acenos de anistia aos mais radicais aliados e ao próprio ex-presidente Jair Bolsonaro.

De todas as entrevistas, a que gerou mais mal-estar no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF), sem falar na opinião pública, foi concedida na sexta-feira, numa rádio da Paraíba, sua base eleitoral. Motta negou que a invasão dos palácios da Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, foi uma tentativa de golpe de Estado para destituir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que havia tomado posse uma semana antes. "O que aconteceu não pode ser admitido novamente, foi uma agressão às instituições. Agora, querer dizer que foi um golpe. Golpe tem que ter um líder, uma pessoa estimulando, tem que ter apoio de outras instituições interessadas, e não teve isso", disse.

Naquela ocasião, centenas de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro quebraram as sedes dos Três Poderes pedindo um golpe e a destituição de Luiz Inácio Lula da Silva. Motta ignora deliberadamente tudo o que já se sabe sobre o 8 de janeiro, a partir de investigações da Polícia Federal (PF), no inquérito a cargo do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

A conspiração urdida na alta cúpula do governo Bolsonaro para impedir a posse da gestão Lula está muito bem documentada, a ponto de o vice de Bolsonaro, general Braga Neto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil Braga Netto, general de quatro estrelas, estar preso. O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, que fez delação premiada, revelou toda a trama golpista.

Não se sabe os acordos de bastidores feitos por Hugo Motta para se eleger presidente da Câmara, mas o parlamentar tem fama de cumpri-los. Suas declarações e os elogios que recebeu de Jair Bolsonaro sinalizam que a anistia aos envolvidos nos episódios de 8 de janeiro e ao ex-presidente da República (que está inelegível por crime eleitoral) está no pacote do PL.

·        Biografia

Aos 35 anos, Motta é o mais jovem presidente da Câmara dos Deputados. Lidera uma nova geração de políticos representantes de velhas oligarquias. Seu pai é prefeito de Patos pela quarta vez, cidade que já foi comandada pelo avô e pela matriarca da família, sua avó Francisca Motta, de 84 anos, que sucedeu o marido na prefeitura após sua morte e exerceu seis mandatos de deputada estadual.

Médico, Motta nasceu em 11 de setembro de 1989, ano da primeira eleição direta para presidente da República. Não entendeu (ou não assistiu) Ainda estou aqui, o premiadíssimo filme de Walter Salles Filho, que concorre ao Oscar em três categorias e venceu o prêmio Goya de melhor filme ibero-americano, a principal premiação do cinema espanhol, no último sábado.

Com Fernanda Torres no papel da viúva Eunice, a obra conta o que se passou com a família do ex-deputado Rubens Paiva (PTB-SP), que foi assassinado num quartel do Exército no Rio de Janeiro, durante o regime militar. Motta citou o filme no discurso como uma frase de efeito, numa jogada de marketing. Sua declaração sobre o 8 de janeiro só torna mais atual o longa brasileiro ser mais atual, cuja importância política nos mostra o historiador Alberto Aggio, no artigo Tempos e silêncios em Ainda estou aqui (leia abaixo):

<><> Tempos e silêncio em Ainda estou aqui: Por Alberto Aggio

Ainda estou aqui é um grande filme. Muito já se escreveu e se falou sobre ele por diversos ângulos e razões. E se vai continuar falando e escrevendo sobre ele por algum tempo. Seu lugar na cultura brasileira vai além da filmografia, da arte. Trata-se de um filme político, de ensinamentos e aberto à reflexão política. Pela amplitude de espectadores, ele é também um fenômeno político. Cativa por expressar o desejo de compreender o que se passou no Brasil nas últimas décadas do século 20 e o que esse período nos legou.

O filme, dirigido por Walter Salles, diz muito sobre o Brasil desse período, mas também sobre o Brasil dos dias que correm, por meio dos acontecimentos que marcaram a vida da família do ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado e assassinado pela ditadura no início da década de 1970, especialmente pela resistência da mulher, Eunice Paiva, a principal protagonista do filme, representada de maneira extraordinária por Fernanda Torres.

O início e o final do filme mostram reuniões familiares que evidenciam as marcas do tempo em que se sustenta a narrativa do filme. No início, a reunião familiar é repleta de alegrias de uma típica família de classe média alta do Rio de Janeiro no início da década de 1970. O ambiente é vivo e cheio de cores, num magnífico sobrado em frente à praia. No final do filme, a reunião familiar é de uma alegria contida, densa e preocupada com a saúde da matriarca da família.

No início, os personagens vivem as interações de um Brasil culturalmente aberto ao mundo, uma continuidade, sem interrupções, dos "gloriosos anos" cinquenta e início dos sessenta. Para além da tranquila vida familiar, os sinais de que havia ocorrido uma dura interrupção aparecem de maneira esparsa e sutil, embora carregada de tensões, evidenciando o temor a cada cena. A reunião familiar do final do filme também mostra um Brasil aberto ao mundo, sinalizada previamente por passagens relativas aos anos 1990, quando Eunice Paiva passa a viver em São Paulo, 25 anos depois da tragédia familiar provocada pelo sequestro e assassinato do marido. O Brasil da globalização e da democratização convive, ao final, com aquela herança maldita, ao lado do peso dos anos que se passaram na vida de todos os protagonistas ali reunidos, as filhas e o filho, todos adultos, e a matriarca já padecendo da doença de Alzheimer.

Entre um tempo e outro, os 25 anos, que expressam a transição e a democratização, estão silenciados, o que é também uma forma de dizer e dar sentido. O filme é a expressão das pesadas consequências da repressão da ditadura e a resistência - penosa, mas vitoriosa - da chefe de uma família, que não permitiu que ela fosse destruída. No final, os anos da ditadura são imagens do passado, em preto e branco, que ainda tocam — mesmo que abatida pela doença — a velha senhora que protagoniza dramaticamente a narrativa. No final do filme, as cenas sobre a ditadura que aparecem num documentário na TV chamam a atenção mais de Dona Eunice do que dos familiares que espreitam de soslaio seu comportamento.

Pelos olhos e pelas mãos de Salles, os tempos do Brasil se sucedem e, recortados, ganham sentido na trajetória da família Paiva. Ali estão a esperança de um país melhor interrompida pela ditadura e, ao final, independentemente dos protagonistas, o cenário de inserção do país no mundo globalizado, anteriormente antevisto. No Brasil do ex-deputado assassinado, a opção de um caminho de tipo cubano ainda era acalentada como alternativa por muitos setores da esquerda. Mas isso não prosperou. A resistência democrática encontrou sua via de passagem pela política, derrotando a ditadura.

Pode-se dizer que esse é um dos silêncios do filme. Ele não pretendeu incluir na narrativa as complexas dimensões da superação da ditadura por meio de um processo de transição e construção democrática que seguiu seu curso ascendente, mas carregou consigo muitos deficits políticos, institucionais, sociais e culturais. O filme também nos sugere que pensemos sobre as razões que levaram com que a conquista da democracia não tenha se configurado como uma ruptura, que delimita um antes e um depois, e, mesmo assim, podemos nos postar sorrindo — como fez Eunice Paiva, de forma admirável — para uma foto que possa retratar o país como, de fato, ele é.

¨      O estilo Motta de legislar na primeira semana à frente da Câmara

A mudança no comando da Câmara dos Deputados trouxe um novo perfil de presidente à Casa Baixa. Jovem e com capacidade de construir acordos, Hugo Motta (Republicanos-PB) foi eleito com o discurso de que seria um líder humilde, ouviria a todos e atuaria para jogar panos quentes na briga entre governo e oposição.

Motta começou o mandato estendendo a mão ao Planalto, mas sem deixar de defender o parlamento. Encontrou-se com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na segunda-feira ao lado do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), e prometeu uma atuação em conjunto para avançar em pautas de interesse nacional.

Ao longo de sua primeira semana no cargo, no entanto, demonstrou que será um presidente atuante: dará entrevistas, comentará os temas que achar pertinentes e criticará as atitudes, seja do Executivo, seja da oposição, que entender que atrapalham o andamento dos trabalhos da Câmara. Prova disso foi seu posicionamento sobre a "guerra de bonés" iniciada por parlamentares e ministros do governo que foram à eleição na Câmara e no Senado com mensagens que diziam "O Brasil é dos Brasileiros" — uma referência ao adereço usado por apoiadores do presidente norte-americano Donald Trump (Republicanos), que diz "Make America Great Again". A oposição respondeu e começou a fazer suas próprias versões.

"Para mim, boné serve para proteger a cabeça do Sol, e não para resolver os problemas do país", disse Motta em uma postagem em seu perfil na rede social X (ex-Twitter). Um tipo de troca de farpas em que o antecessor, Arthur Lira, do PP de Alagoas, não costumava se meter. O alagoano guardava suas críticas aos adversários políticos ou a quem ele entendesse que estava prejudicando os acordos da Câmara, como foi quando o Supremo Tribunal Federal insistiu no bloqueio de emendas parlamentares por falta de transparência.

Motta deu várias entrevistas ao longo da semana. Os assuntos mais quentes foram o projeto de anistia aos golpistas do 8 de janeiro e a eventual discussão, pela Câmara, de um texto para alterar a Lei da Ficha Limpa e abrir espaço para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) concorrer em 2026. Na sexta-feira, o presidente pegou o Planalto de surpresa, ao dizer em uma entrevista a uma rádio da Paraíba que não houve tentativa de golpe. Defendeu, ainda, que os bolsonaristas com menor participação nos atos de vandalismo tenham penas menores.

"O que aconteceu não pode ser admitido que aconteça novamente. Foi uma agressão às instituições inimaginável. Agora querer dizer que foi um golpe, golpe tem que ter um líder, tem que ter uma pessoa estimulando, tem que ter apoio de outras instituições interessadas, como as Forças Armadas, e não teve isso", disse Hugo Motta. As falas irritaram representantes do governo na Câmara, que precisarão lidar com Motta quase diariamente para defender os interesses do Executivo.

O medo é de que Motta comece a atender os interesses da oposição controlada por Bolsonaro, com quem o novo presidente tem uma relação cordial e conversou recentemente sobre a eventual votação do projeto da anistia. O presidente deixou claro, nas entrevistas da última semana, que entende que a anistia é o tema que mais divide a Casa atualmente, mas disse que se sentir clima para levar adiante a discussão, fará isso com "responsabilidade", exatamente como pediu Bolsonaro. 

"Na conversa que eu tive com o presidente Bolsonaro, em um determinado momento, ele falou: 'Eu queria que, se houver o acordo no colégio de líderes e se houver o ambiente na Casa, você não prejudique a pauta da anistia'", disse Motta ao jornal O Globo na sexta-feira. O presidente da Câmara também já se mostrou simpático à outra pauta crucial para o bolsonarismo: a alteração da Ficha Limpa para diminuir o prazo de inelegibilidade para dois anos. Isso beneficiaria diretamente o ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado duas vezes pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e que está inelegível até 2030. Segundo Motta, oito anos é uma "eternidade" na política brasileira.

<><> Impeachment e emendas

O Republicanos, do qual faz parte o deputado, é uma sigla em franco crescimento no Congresso. Tem ministério na Esplanada e também abriga nomes fortes da direita, como o ex-vice-presidente Hamilton Mourão (RS); a senadora Damares Alves (DF) e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (SP), cotado para ser um dos candidatos ao Planalto em 2030.

Apesar dos acenos à extrema-direita, no entanto, Motta também disse na última semana que "não está no horizonte" fazer avançar um processo de impeachment contra o presidente Lula. "Não é gerando mais instabilidade que nós vamos resolver o problema do país. O presidente Lula foi legitimamente eleito pelo nosso povo, pela maioria da população. Está respaldado por esse povo para governar e tem, agora, que conseguir corresponder à confiança da população brasileira que o confiou. Ele é o presidente de todos. Então não será este presidente aqui que gerará instabilidade", disse à rádio paraibana Arapuan, na sexta-feira.

"Não está no nosso horizonte fazer nenhum tipo de movimento que traga para o país instabilidade, incertezas, porque fazendo isso nós só vamos conseguir aumentar mais os desafios que temos pela frente", afirmou.

Motta também se mostrou disposto a resolver, de uma vez por todas — e de forma amigável — o impasse da transparência das emendas com o Supremo Tribunal Federal. O tribunal bloqueou valores bilionários indicados por deputados e senadores porque o Legislativo não cumpriu diversas exigências para garantir a rastreabilidade dos recursos. A aprovação do Orçamento deste ano também dependerá de um entendimento com o STF e com o governo sobre a destinação das verbas.

"Eu tenho plena confiança de que nós vamos, durante o mês de fevereiro, com muito diálogo entre a Câmara e o Senado, nós temos uma ótima relação com o senador Davi. Devemos ter uma sintonia fina na atuação da Câmara e do Senado, o que vai facilitar para que essa agenda possa ser propositiva das Casas, do Poder Legislativo, para que esse diálogo possa se dar com o próprio Poder Judiciário e também com o Poder Executivo e essa questão das emendas ser uma página virada para que o nosso orçamento possa ser votado e, quem sabe, de uma vez por todas, já resolver, entender o modelo que esteja ali à altura daquilo que o Supremo espera sem abrir mão das nossas prerrogativas, porque o Poder Legislativo não abre mão de participar da indicação ao orçamento", diz Motta.

<><> As declarações do presidente da Câmara

Sábado (1º/2), dia da vitória

  • Defendeu as “prerrogativas” do parlamento, foi enfático ao defender a democracia, repetiu a frase de Ulysses Guimarães sobre ter ódio à ditadura e disse que será um líder humilde;

Domingo (2/2)

  • Afirmou que a anistia aos golpistas do 8 de janeiro será discutida pela Câmara e tratada com “imparcialidade”;

Segunda (3/2)

  • Reuniu-se com Lula ao lado de Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) e disse que a Câmara está à disposição para construir uma “pauta positiva para o país”.

Terça-feira

  • Em entrevista à CNN, disse que oito anos de inelegibilidade é um “tempo extenso” e que poderá discutir a Lei da Ficha Limpa (isso beneficiaria Bolsonaro) se houver interesse dos parlamentares.

Quarta-feira

  • Criticou as manifestações da oposição e do governo usando bonés em referência ao boné “Make America Great Again.” No mesmo dia, recebeu de Fernando Haddad (Fazenda) uma lista de prioridades para a
    economia. 

Sexta-feira

  • Disse que não houve tentativa de golpe no 8 de Janeiro e defendeu penas mais brandas a alguns dos condenados. Também criticou os “vacilos” do governo na economia e disse que não se pode ficar refém de posicionamentos ideológicos. “Não adianta Lula fazer o que Bolsonaro fez e ficar o tempo todo falando para uma bolha que o fez errar”, disse ao jornal O Globo.

 

Fonte: Correio Braziliense
 

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