quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Laura Santos Lopes: ‘Crise na transparência pública brasileira precisa acabar’

A transparência pública anda escassa em Pindorama, como diria o grande Elio Gaspari. No último dia 29, a organização Transparência Brasil (TB) apontou, em nota técnica, a continuidade do Orçamento Secreto via emendas parlamentares. 

Segundo a organização, os poderes Legislativo e Executivo federais continuaram a “destinar e executar parcelas significativas do orçamento da União sem transparência, longe dos olhos da sociedade e dos órgãos de controle”.

Como exemplo para tal afirmação, a TB mostrou que os valores utilizados nas emendas Pix saltaram de R$3 bilhões em 2022 para exorbitantes R$8 bilhões em 2024. Além disso, menos de 1% dessas emendas incorporadas à Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024 informaram o destino e a finalidade dos recursos empenhados. Ou seja: mais de 99% das emendas Pix saíram das linhas traçadas pela Constituição Federal, mais especificamente, do que prevê o art. 166, §3º da Carta Magna – aspecto similar, para não se dizer idêntico, à  prática deletéria que ocorria com as emendas do relator. 

Para quem não sabe, o fatídico Orçamento Secreto é um esquema que ganhou fama em 2020, ainda na gestão do ex-Presidente Jair Bolsonaro (PL) e que, inicialmente, funcionava por meio das chamadas emendas do relator (as RP9), verbas públicas emitidas pelo relator geral do Orçamento a pedido de senadores e deputados federais, muitos dos quais visavam atender aos seus redutos eleitorais, com foco na obtenção de votos e, ao que tudo indica, no desvio de uma fatia substancial de dinheiro público, sem qualquer preocupação com demandas reais da população.

Em resumo, essa farra ilimitada dependia de uma espécie de artimanha simbiótica: como as emendas do relator não eram impositivas (de execução obrigatória), cabia ao Presidente da República se mancomunar com os congressistas, majoritariamente os pertencentes ao fisiológico centrão, e assinar autorização para que essas emendas, de fato, fossem postas em prática. À época, um dos objetivos principais do Chefe do Executivo em participar da falcatrua era engavetar os inúmeros processos de impeachment contra si que estavam sobre a mesa do Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).

Rosa Weber, então ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), tentou dar um basta no esquema ao declarar a inconstitucionalidade do Orçamento Secreto em dezembro de 2022, o que não foi suficiente para que ele chegasse à sua fase derradeira, como mostraram inúmeras reportagens publicadas desde então. E não parou por aí. Além das emendas Pix, a Transparência Brasil demonstrou em sua nota que o artigo 8° da PEC da Transição reciclou as RP9 com as chamadas RP2 em 2023, uma mera mudança de nomenclatura que permitiu ao relator do orçamento do ano passado destinar R$ 9,85 bilhões em emendas de forma obscura.

No mês de junho, o ministro do STF Flávio Dino manifestou, no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854, que não houve “comprovação cabal” de que a prática do Orçamento Secreto foi inibida pelo Congresso e Executivo como determinado pela Corte. Dino convocou o Advogado-Geral da União, Jorge Messias, o Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas, o advogado do Psol (partido que ingressou com a ação na Corte)  e os advogados da Câmara e do Senado para audiência de conciliação que deve discutir a continuidade do esquema na quinta-feira, dia 1 de agosto.

No dia 25 de julho, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) ajuizou no STF uma petição para que o tribunal instaurasse uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a falta de transparência e fiscalização das emendas Pix. A ADI recebeu o número 7688 e foi distribuída inicialmente ao ministro Gilmar Mendes, mas repassada ao ministro Flávio Dino na última terça-feira, em virtude da similaridade com a ADPF 854.

É preciso ter mais pressa, no entanto. Enquanto a sociedade sofre ao aguardar o fim dessas práticas perniciosas, os parlamentares continuam abusando do dinheiro público em pleno ano eleitoral. Como mostrou a Folha de S. Paulo no último dia 23, as dez cidades proporcionalmente mais beneficiadas por emendas parlamentares têm menos de 6.000 moradores. A cidade alagoana de Mar Vermelho, por exemplo, recebeu R$6,4 milhões em emendas tendo apenas 3.000 habitantes, segundo a reportagem. Até o início de julho, o governo Lula liberou R$23 bilhões em emendas para fugir da trava eleitoral que começa a ser imposta nos três meses que antecedem as eleições municipais deste ano.

E não é só por causa do Orçamento Secreto que a transparência virou exceção em nossas terras tupiniquins, pelo contrário. Reportagem do colunista do UOL Thiago Herdy divulgou que o governo Lula negou um pedido de acesso à Declaração de Conflito de Interesses (DCI) do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. A Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CMRI) do Executivo, responsável pela decisão, ainda colocou a Declaração sob sigilo de 100 anos, o que vai na contramão das falas de Lula (PT) durante a campanha eleitoral de 2022, quando criticou enfaticamente os sigilos impostos pelo governo Bolsonaro. Como a sociedade civil pode formar opiniões sobre um governo sem saber o que acontece dentro dele?

A opacidade não ocorre apenas com o Legislativo e Executivo, tampouco é restrita ao âmbito federal: nos últimos meses, a ausência de informações sobre gastos de ministros do Supremo Tribunal Federal (sim, aqueles servidores que deveriam prezar pela transparência pública em grau máximo) em viagens internacionais tomou boa parte dos noticiários. O STF chegou até mesmo a tirar do ar a página de transparência sobre passagens e diárias após ter recebido questionamentos da Folha. Por quê? Não se sabe, mas pode-se presumir que os gastos sejam exorbitantes, seguindo o modus operandi da gastança dessa categoria.

Ademais, o Estadão publicou matéria sobre o sigilo de 100 anos imposto pela Polícia Militar de São Paulo  a processos disciplinares contra o coronel Ricardo Mello Araújo, aliado de Bolsonaro e candidato a vice-prefeito na chapa do atual mandatário da Prefeitura de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB). Ambos os exemplos vão de encontro às normas estabelecidas pela Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011). É justo dizer que o eleitor paulistano tomará sua decisão na urna em outubro conhecendo integralmente os candidatos? Não parece o caso.

Urge entender que não existe Estado democrático de Direito que navegue pelas águas turvas da inconstitucionalidade e da falta de transparência. Um Estado com essas características é um estado com ‘e’ minúsculo, que despreza a real democracia e os valores republicanos. Que recuperemos nosso ‘E’ maiúsculo.


Noticiário econômico: perdidos na selva financeira. Por Carlos Castilho

Tentar se informar sobre economia virou a mais desafiadora e frustrante missão a que pode se dedicar hoje um leitor comum na imprensa brasileira. Dólar, ajuste fiscal, corte de gastos públicos, desequilíbrio orçamentário, taxa de juros e déficit zero são temas que congestionam as primeiras páginas de jornais, chamadas de telejornais e pipocam freneticamente nas redes sociais. São questões que geram angústia e incertezas na hora de aplicar economias e um desafio enorme para o jornalismo preocupado em simplificar temas complicados para facilitar a compreensão pelo público.

A complexidade do mercado de capitais é parte estrutural do jogo de investimentos e fator chave nas estratégias de comunicação dos operadores de bolsas de valores, grandes bancos e consultorias de investimentos de risco. Das dez principais fontes de notícias econômicas no Brasil, seis são controladas por organizações do mercado financeiro, segundo uma reportagem da revista digital Piauí, publicada no final do ano passado. São estas empresas que servem de fonte e referência para a totalidade dos jornais, telejornais, revistas e sites jornalísticos no país. A lógica destas organizações não é a da informação como bem público, mas a do ganho financeiro, compartilhado com investidores interessados apenas em dividendos.

A fonte de informações econômicas mais consultada no país é a publicação Infomoney, da empresa XP Investimentos e que teria hoje mais de 40 milhões de visitas mensais de usuários da internet. A segunda fonte mais consultada é a revista Exame, controlada pelo BTG Investimentos, mas com menos da metade das visitas mensais do Infomoney. O terceiro lugar no ranking dos influenciadores empresariais no ambiente econômico brasileiro é a Money Times, também controlada por uma grande corretora, a Empiricus, vinculada ao BTG.

Somando o público das três maiores financeiras nacionais, chega-se a um total aproximado de 65 milhões de consultas mensais por indivíduos interessados em saber para onde vai a economia tupiniquim e como administrar a poupança individual. Trata-se de um formidável poder de influência sobre as decisões econômicas alheias, num ambiente em que as pessoas comuns não têm alternativas senão confiar nas informações disseminadas por publicações supostamente jornalísticas, ou seja, vistas como isentas e sem interesses próprios.

<><> Caixa preta do dinheiro

Este pequeno grupo de empresas, que controlam o fluxo de informações na área econômica, expande agora seu campo de ação para o segmento dos influenciadores digitais, o seu poder de incidência na agenda financeira da mídia. Trata-se de um “exército” informal de conselheiros que se nutrem dos dados e fatos fornecidos por Infomoney, Exame e Money Times para influenciar milhões de seguidores digitais. Em novembro de 2023, uma pesquisa feita pela Anbima mostrou que existem atualmente 515 influenciadores digitais especializados em questões financeiras com uma audiência global de 176,3 milhões de pessoas. A pesquisa também mostrou que, deste total, 249 influenciadores (48,3% do total) têm algum tipo de relação com as cinco maiores empresas do mercado financeiro. Ainda segundo a Anbima, entre 2020 e 2023, o número de influenciadores financeiros na internet cresceu 140%, a maioria focando no mercado de ações.

O mercado financeiro nacional e internacional se transformou numa caixa preta diante da qual você é levado a aceitar as regras do sistema sem poder questioná-las. Assumiu também uma enigmática personalidade informativa chamada ‘mercado’, frequentadora diária do noticiário sobre indicadores econômicos. Entender o funcionamento desta ‘caixa preta’ é quase impossível para um leigo porque o mercado de dinheiro fica cada dia mais sofisticado e complexo graças à multiplicação constante de novas modalidades de investimentos, com destaque aos controvertidos derivativos. A universalização da internet intensificou a diversificação dos derivativos, num processo que tende a se tornar simplesmente incontrolável com a inteligência artificial.

<><> Conflito cognitivo

O que a maioria esmagadora das pessoas não consegue entender é o fato de que a diversificação frenética do mercado de opções de investimentos tem como base o endividamento de governos, um processo que se tornou crônico e essencial no financiamento de obras públicas a partir da II Guerra Mundial. São papéis do governo, como por exemplo o Tesouro Direto, que alimentam a ciranda dos investimentos no mercado financeiro. Segundo a UNCTAD, um órgão da ONU, a soma dos títulos emitidos por governos e empréstimos oficiais tomados junto a instituições financeiras, chegou a 97 trilhões de dólares, um recorde histórico, quase duas vezes maior do que o total registrado em 2010. O Japão é o país mais endividado por habitante. Os Estados Unidos estão em oitavo lugar e o Brasil em 58º.

Os juros pagos pelos governos para rolar a dívida contraída pela emissão de títulos determinam a taxa de juros a ser paga aos compradores de títulos oficiais. Quando os juros sobem, por decisão do Banco Central, os investidores e as financeiras ganham, enquanto os governos perdem, ou seja, ficam com menos dinheiro para financiar aposentadorias, saúde, educação, obras públicas e salários. Mas o “mercado” definiu que a taxa de juros é determinada pela inflação e pelo dólar, outra relação que acabou se tornando um corolário econômico que 99% dos brasileiros não entendem, mas foram levados a aceitar por conta do noticiário econômico.

Não vamos discutir aqui erros ou acertos nas estratégias dos principais agentes do ‘mercado”. O que interessa destacar é o conflito cognitivo vivido por uma enorme parcela do público e causado pela contradição entre a crescente complexidade das finanças contemporâneas e a norma jornalística de simplificar as narrativas econômicas, reduzindo tudo a um choque entre o bem e o mal, entre o correto e o incorreto em matéria de negócios. O funcionamento do mercado financeiro tornou-se sofisticado demais e a complexidade acabou virando um enorme problema para os profissionais do jornalismo. O recurso à dicotomia, mesmo pretendendo servir aos leitores, ouvintes, telespectadores e internautas, acabou lançando-os numa verdadeira ‘selva’ informativa cheia de incertezas e desorientação.


Fonte: Observatório da Imprensa


 

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