João Filho: ‘Não existiu uma ‘Abin
Paralela’. O que houve foi uma total instrumentalização da Abin’
Há tempos já se sabe
que a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, do governo Bolsonaro
monitorou autoridades e adversários políticos de maneira clandestina. Dentre
todas as investigações que estão em curso, as da Operação Última Milha da
Polícia Federal têm sido as mais frutíferas, trazendo indícios que corroboram
as primeiras suspeitas dos investigadores.
A cada enxadada, uma
minhoca. Não é à toa que, entre todos os inquéritos abertos contra Bolsonaro, o
da chamada “Abin Paralela” é o que mais tira o sono do ex-presidente e dos
bolsonaristas. E, de fato, ela não tinha nada de “paralela”.
Quanto mais se
investiga, mais se percebe o tamanho do buraco do autoritarismo no qual o país
se enterrou e, por pouco, não continuou enterrado por mais alguns bons anos.
As provas recolhidas
até aqui mostram que o esquema de espionagem tem se mostrado muito mais amplo e
perigoso do que se imaginava. O monitoramento não era feito de maneira pontual
e restrita. Era algo permanente, sistemático e sem limites.
Quase 2 mil pessoas
consideradas inimigas do bolsonarismo foram monitoradas pelo software de
espionagem israelense FirstMile. Segundo a PF, o programa foi acessado mais de
30 mil vezes contra jornalistas, políticos, advogados, militantes, policiais,
ministros do STF e qualquer um que ousasse atrapalhar os planos da família
Bolsonaro e do seu grupo político. Todos esses planos atuavam sob o pano de
fundo de um plano maior: a permanência no poder mesmo com a derrota na eleição.
Os agentes da Abin
trabalhavam com a possibilidade de permanecer no poder através de um golpe de
estado. Recentemente, a investigação obteve uma conversa entre dois agentes do
órgão em que conversavam abertamente sobre a minuta do decreto de intervenção.
Um deles pergunta: “O
nosso PR imbrochável já assinou a porra do decreto?”, o outro responde “Assinou
nada. Tá foda essa espera, se é que vai ter alguma”. Ou seja, os agentes da
Abin trabalhavam de maneira coordenada com a cúpula do governo Bolsonaro e tinham
conhecimento dos seus planos golpistas.
Aqui temos o encontro
com o 8 de janeiro. Aliás, absolutamente todas as investigações das quais
Bolsonaro é alvo estão intercaladas de alguma maneira com o inquérito sobre o 8
de janeiro.
• Pavão misterioso
Lembram dos dossiês
produzidos pelo perfil anônimo Pavão Misterioso contra adversários políticos do
bolsonarismo e dois jornalistas do Intercept Brasil responsáveis pela série de
reportagens chamada Vaza Jato? O perfil foi usado para espalhar a falsa narrativa
de que o Intercept contratou um hacker russo para invadir telefones de
autoridades, entre elas o do ex-procurador da República Deltan Dallagnol.
Pelo menos desde
fevereiro deste ano, os investigadores já haviam identificado no sistema da
Abin a criação de um arquivo nomeado como “pavão.pdf”, feita em junho de 2019.
Nele havia prints de uma tela de pesquisas sobre os deputados Jean Willys,
David Miranda e o então jornalista do Intercept Leandro Demori.
Nesta semana, os
jornalistas Juliana dal Piva e Igor Mello, do ICL Notícias, revelaram que as
pesquisas no software espião foram feitas dois dias antes da publicação da
primeira reportagem da Vaza Jato e nove dias antes da criação do perfil Pavão
Misterioso. Ou seja, muito provavelmente a Abin já sabia que as reportagens
bombásticas estavam no forno e atuou para criar um antídoto.
Os falsos dossiês do
Pavão Misterioso, que tanto alimentaram a militância bolsonarista e
desvirtuaram o debate público durante meses, nasceu dentro do órgão de
inteligência do governo Bolsonaro. Esses crimes contra cidadãos brasileiros
foram planejados e executados dentro de um órgão do estado. É um escândalo de
proporções gigantescas.
O arquivo “pavão.pdf”
foi salvo em um diretório da rede da Abin que estava sob a responsabilidade do
setor de Coordenação de Operações de Inteligência de Sinais e Imagens. Na época
em que as pesquisas ilegais foram feitas, o chefe do setor era Fabrício Cardoso
de Paiva.
Poucos dias após essas
consultas, ele foi nomeado para trabalhar em cargo de confiança com o então
ministro de Infraestrutura Tarcísio de Freitas. O cargo? Coordenador-geral de
Pesquisas e Informações Estratégicas do ministério. Mais tarde, Paiva ganhou uma
licença da agência para poder trabalhar como segurança da campanha de Tarcísio
para governador de São Paulo.
O ex-agente da Abin,
aliás, foi protagonista de uma história nebulosa ocorrida durante a campanha
eleitoral. Durante evento do então candidato Tarcísio no bairro de
Paraisópolis, em São Paulo, houve um tiroteio envolvendo policiais militares e
um suposto bandido que foi assassinado. Imediatamente, bolsonaristas tentaram
emplacar a narrativa de que o candidato teria sofrido um atentado, mas acabaram
voltando atrás.
À época, uma
reportagem do Intercept revelou que Paiva exigiu que um cinegrafista da Jovem
Pan — emissora alinhada ao bolsonarismo — apagasse as imagens dos policiais
atirando. Até hoje essa história não foi completamente esclarecida. É esse o
tipo de sujeito que trabalhava na Abin de Bolsonaro.
• Um agente da Abin para chamar de seu
Mas não foi apenas
Tarcísio que ganhou um agente da Abin para a sua campanha. Nesta semana
revelou-se também que a PF tem fortes suspeitas de que agentes da Abin
trabalharam de forma clandestina na campanha eleitoral do ex-diretor-geral do
órgão Alexandre Ramagem para deputado federal em 2022.
Em uma busca e
apreensão, os policiais encontraram um documento de gastos da campanha que
inclui os nomes de dois agentes muito próximos de Ramagem. Eles possuíam as
senhas das contas dele nas redes sociais e faziam visitas constantes ao então
candidato durante a campanha eleitoral. Ramagem negou tudo em depoimento, mas
não conseguiu explicar esses indícios.
O fato é que não
existiu uma “Abin Paralela”. Essa definição ajuda a entender o caso, mas não é
precisa. O que houve foi uma total instrumentalização do órgão. A Abin durante
o governo Bolsonaro foi transformada em um órgão de inteligência a serviço dos interesses
do fascismo bolsonarista.
Dinheiro público foi
usado para montar uma estrutura que operava de modo permanente para atrapalhar
investigações contra a família Bolsonaro e seus aliados, municiar o Gabinete do
Ódio, forjar crimes contra jornalistas e políticos e disponibilizar agentes de
inteligência para trabalhar em campanhas eleitorais.
Os crimes foram
cometidos em larga escala e sem muita preocupação em ocultar seus vestígios.
Havia a certeza de que Bolsonaro se reelegeria ou, na pior da hipótes,
assinaria a “porra do decreto”. Por sorte, nada disso aconteceu.
É fundamental que esse
episódio seja passado a limpo e que os criminosos sejam punidos — como já estão
sendo. Não é difícil imaginar o que a Abin do segundo governo Bolsonaro faria
se tivesse ganhado o aval das urnas ou se o golpe de Estado fosse concluído.
• Sobre o bolsonarista não praticante. Por
Francisco Fernandes Ladeira
Comumente, o termo
“católico não praticante” é utilizado em referência aos indivíduos batizados e
autodeclarados católicos que não praticam a religião em sua plenitude, conforme
o estabelecido pela igreja.
Parafraseando esta
ideia, no atual contexto político brasileiro, marcado pela saída do armário dos
diferentes obscurantismos, podemos afirmar que um tipo ideológico tem se
destacado. Trata-se do “bolsonarista não praticante”.
Como a nomenclatura
aponta, o bolsonarista não praticante geralmente não coloca em prática os
“dogmas” do principal movimento da extrema direita brasileira. Sua militância é
restrita às redes sociais ou, no máximo, às discussões em família. Portanto,
não vamos encontrá-lo em carnagados, motociatas ou em atos golpistas Brasil
afora.
Evidentemente, ele é
armamentista. Porém, não tem armas ou, se tiver, jamais chegou a usá-la para
ameaçar alguém. Isso não o impede de vibrar com as eliminações de “CPFs” de
pobres e pretos noticiadas em programas policialescos. Afinal de contas,
bandido bom (pobre) é bandido morto”. Ladrões de joias, por motivos óbvios, não
se encaixam nesse perfil.
Mesmo não agredindo
fisicamente sua esposa, o que significaria se impor como o macho da casa, o
bolsonarista não praticante é saudosista da época em que a mulher era restrita
ao lar e se queixa constantemente das “leis misândricas”.
Apesar de não ter
espancado homossexuais, como faz todo adepto mais radicalizado da “cura gay”; o
bolsonarista não praticante é crítico da ditadura gayzista e, nas discussões em
família, é o primeiro a denunciar o kit gay (mesmo sem nunca apresentar provas
sobre isso).
O bolsonarista não
praticante não produz fake news (elaborar notícias falsas pode ser algo muito
além de sua capacidade intelectual), mas as reproduz em larga escala em grupos
do zap e no antigo Twitter.
O bolsonarista não
praticante é figura ausente no CarnaGado; tampouco veste a camisa da CBF em
público. Porém, não deixa de pagar o “dízimo” para financiar atos golpistas.
Ele também nunca foi à
Israel (embora, em muitas ocasiões, tenha contribuído para que seu pastor fosse
à “Terra Santa”). No entanto considera que a concretização do Estado Sionista é
condição indispensável para a segunda vinda do Messias (a despeito dos judeus
não acreditarem na divindade de Jesus).
A contragosto, muitos
bolsonaristas não praticantes não exercem um dos pilares do sistema econômico
que tanto defendem: explorar a mão de obra alheia. Como bons "pobres de
direita", sem consciência de classe, devem vender sua força de trabalho para
um capitalista.
Todavia, isso não os
impede de aplaudir o desmonte da CLT ou se considerarem livres empreendedores e
empresários de si mesmos.
Já os bolsonaristas
não praticantes mais envergonhados dizem que, na eleição presidencial de 2018,
votaram no candidato do Partido Novo, João Amoêdo, mas, na realidade, digitaram
17 com todas as suas forças na urna eletrônica.
Em relação ao
jornalismo, enquanto os “bolsonaristas praticantes” estão nas redações da Jovem
Pan e da Gazeta do Povo (eventualmente da CNN Brasil), os bolsonaristas não
praticantes trabalham na GloboNews, Veja, Folha e Estadão.
Por falar nisso,
quando Joel Pinheiro da Fonseca, em um dos momentos mais constrangedores da
imprensa brasileira nos últimos anos, sugeriu um “bolsonarismo moderado"
para enfrentar o PT; ele quis dizer sobre alguém, digamos assim, “metade
bolsonarista não praticante”. Ou seja, “bolsonarista praticante” em relação à
agenda econômica neoliberal; e “bolsonarista não praticante” no que diz
respeito ao comportamento boçal (pelo menos que saiba fingir).
Fonte: The
Intercept/Fórum
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