“Só entra autoajuda e Bíblia”: presídios
barram literatura para detentos
Sempre que visita o
filho encarcerado num dos seis presídios de Ribeirão das Neves, na região
metropolitana de Belo Horizonte, Júlia* leva a ele um livro. As regras básicas
ela conhece: publicações de capa dura, que façam apologia ao crime ou com
conteúdo pornográfico são vetadas. As regras não escritas, porém, podem variar
de um agente penal para outro, diz ela, e nem sempre coincidem com o que
determina a Lei de Execução Penal (LEP) – que estabelece o direito da pessoa
privada de liberdade “à educação, cultura, atividades intelectuais e o acesso a
livros e bibliotecas”.
Foi assim que, no fim
de 2023, quando esperava presentear o filho com um exemplar de Os velhos
marinheiros, de Jorge Amado, ouviu de um carcereiro que literatura “não estava
entrando” no presídio. Ela quis saber o porquê: “Não temos autorização”,
respondeu o homem. Mas, então, nenhum livro podia entrar?, tornou a perguntar
Júlia. “Só autoajuda e a Bíblia”, concluiu o agente.
Júlia tentou
argumentar: sob certo ponto de vista, os livros ajudavam o filho a passar o
tempo, servindo, portanto, como uma forma de autoajuda; questionou também se
havia uma lista de livros proibidos e se ficaria registrado que ela tentara
entrar com um objeto vetado na visita. Não haveria registro, não havia lista, e
tampouco a literatura brasileira era vista pela direção da unidade como
benéfica ao preso. Com essas respostas, e o Jorge Amado debaixo do braço,
Júlia, que, por temer represálias ao filho pediu que seu nome fosse trocado na
reportagem, voltou para casa.
Cenas como essa
repetem-se em diversos presídios de Minas Gerais, conforme a Agência Pública
apurou com assistentes sociais e psicólogos penais que trabalham no sistema
carcerário do estado. A reportagem conversou também com familiares de presos e
egressos das prisões.
A reportagem ouviu
ainda a policial penal Maristela Esmério, 29 anos, que é diretora de Ensino e
Profissionalização do Departamento Penitenciário do Estado (Depen-MG). Entre as
suas atribuições, está a de zelar pelos programas de remição de leitura nas 172
unidades prisionais do estado.
Em entrevista à
Pública, ela disse desconhecer a existência de casos de censura a livros no
sistema carcerário de Minas. Esmério afirmou que não há nenhuma lei ou
regimento interno que respalde o veto à entrada de livros nas prisões. O
esforço do Depen, concluiu a diretora, é “assegurar a diversidade de gêneros
literários e autores” disponíveis às pessoas em privação de liberdade.
<< Por que isso
importa?
• Segundo denúncias, agentes
penitenciários estariam barrando a entrada de livros de literatura para presos,
contrariando as determinações da Lei de Execução Penal
• Muitas das prisões em Minas Gerais não
possuem bibliotecas e um dos principais projetos de leitura para presos não
existe mais
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Livros que “despertam a consciência” do preso são barrados, diz assistente
social
Márcia Lopes, 47 anos,
trabalha há 15 como assistente social no sistema prisional de Minas Gerais. Já
foi diretora de atendimento e ressocialização no presídio Bicas 2, em São
Joaquim de Bicas, na região metropolitana de BH, local voltado para a população
LGBTQIA+. Segundo ela, leituras que não sejam religiosas são consideradas por
muitos policiais penais como potencialmente libertadoras e passíveis de
“despertar a consciência” do preso, podendo, assim, “comprometer a ordem e a
segurança” nas colônias penais.
Em seus atendimentos
aos custodiados, costuma ouvir que “qualquer ação que envolva prazer,
satisfação e conforto para ‘nós, presos’ incomoda a segurança custodial”, conta
Márcia.
No complexo
penitenciário Estevão Pinto, casa de detenção que abriga mulheres em Belo
Horizonte, a censura aos livros não religiosos atingiu o paroxismo. Na unidade,
o doutor em direito Virgílio de Mattos coordenou uma pesquisa sobre a
criminalização da pobreza e o encarceramento de mulheres, que resultou no livro
A invisibilidade do invisível. Em 2020, o Grupo de Amigos e Familiares de
Pessoas em Privação de Liberdade (GAFPPL) quis distribuir a obra na
penitenciária, para que as detentas pudessem ler o que havia sido publicado
sobre elas próprias. A entrada do livro foi vetada.
“Livros que falem de
política, cartilhas sobre direitos humanos, as publicações que nascem dos
seminários do nosso grupo e que discutem o encarceramento em massa, nada disso
os agentes penitenciários deixam entrar”, afirma Miriam Estefânia dos Santos,
46 anos, uma das coordenadoras do GAFPPL.
Segundo Márcia Lopes,
entre as alegações que já ouviu da Polícia Penal ao vetar a entrada de livros
está a de que as brochuras seriam usadas para guardar drogas, a de que suas
folhas poderiam ser material para a feitura de cigarros e a de que, por fim, as
unidades já contam com bibliotecas onde os presos podem tomar livros
emprestados – a existência de uma biblioteca em cada prisão, com efeito, é uma
das determinações da LEP.
Quanto a esse
argumento, o mestre em segurança pública e cidadania Kalil Lauar, 36 anos, que
trabalha como assistente social num presídio em Teófilo Otoni, faz uma
ressalva.
“Muitas unidades não
possuem bibliotecas, e, entre a Polícia Penal, prevalece a ideia de que apenas
livros religiosos podem ser aceitos. Consequentemente, os detidos são privados
do acesso a uma variedade de literatura”, conta o pesquisador.
Das 172 unidades
prisionais de Minas, informou o Depen-MG, 50 não possuem bibliotecas em
funcionamento (aproximadamente 30%). Já em todo o Brasil, informa o Ministério
da Justiça, a proporção é ainda menor: das 1.458 unidades prisionais, 615 não
contam com bibliotecas (cerca de 42%).
• Após insistência de mãe, livro de
gramática chega a filho, que passa no Enem
No início de 2020,
Luan Souza, que aos 39 anos cumpria pena por tráfico de drogas num presídio em
Ribeirão das Neves, preparava-se para prestar o Enem. Para tanto, pediu a sua
mãe que levasse a ele um livro de gramática. Os carcereiros proibiram a entrada
do livro, afirmando que materiais didáticos tinham de passar pela vistoria da
escola do presídio – que, no entanto, estava fora de funcionamento.
A mãe de Luan
insistiu, procurou a Diretoria de Humanização do presídio e enfim conseguiu
fazer com que o livro chegasse ao filho, que foi aprovado no Enem no mesmo ano.
José Lino, 48 anos,
que desde 2008 trabalha na área educacional do sistema penitenciário de Minas
Gerais e é um dos líderes da categoria, afirma que desavenças entre
funcionários da segurança e do atendimento aos apenados são comuns nas prisões,
o que gera situações como a vivida por Luan e sua mãe.
“As carreiras que
cuidam da ressocialização estão relegadas à própria sorte. O investimento nas
prisões, quando há, é para as áreas de repressão. Não há um ponto de equilíbrio
entre a assistência humanizada e a repressão. Não à toa, os índices de reincidência
em delitos dos egressos continuam altos”, reclama Lino.
A diretora de Ensino e
Profissionalização do Departamento Penitenciário do Estado, a policial penal
Maristela Esmério, diverge de Lino. Ela afirma que todos os profissionais
trabalham por um mesmo objetivo – “a custódia e a ressocialização” dos apenados
–, não havendo, pois, em sua opinião, discordância alguma entre as áreas.
Mesmo com as barreiras
impostas por uma parcela dos agentes penitenciários, há presos e presas que
conseguem acesso à literatura, o que os ajuda não só a passar o tempo e a
abater parte de suas penas por meio de programas de remição por leitura; em
alguns casos, os livros alteram radicalmente suas perspectivas de vida.
Foi o que aconteceu a
Samuel Lourenço Filho, 37 anos, condenado por homicídio no Rio de Janeiro em
2007. Antes da prisão, Samuel não era um leitor contumaz; foi no cárcere que,
para fugir do ócio, passou a ler diariamente. Como tantos presos, começou pela
Bíblia, convertendo-se ao protestantismo. Poderia ter ficado nisso, mas, em
2008, Samuel trabalhou como bibliotecário da prisão – ele não tinha acesso à
sala dos livros, mas era o responsável por passar a lista das obras entre os
presos, que escolhiam seus títulos preferidos. O sucesso de público, lembra o
ex-bibliotecário, era o autor de autoajuda Augusto Cury.
Um dia, um dos títulos
chamou sua atenção: Crime e castigo, de Dostoiévski. Iniciou a leitura para não
parar mais. “O que me impressionou foi o retrato da miséria humana. Tudo é
muito verdadeiro, e ler me ajudou a pensar o meu contexto pobre e hostil na prisão.
Eu sentia o frio siberiano, o abafamento dos locais superlotados, a escuridão,
o gosto das sopas aguadas… Era tudo como no cárcere. Ele não traz um tom de
esperança, mas fala da capacidade de suportar tudo aquilo. Eu me enxergava
ali”, diz.
Terminado o livro,
Samuel escreveu a editoras, pedindo a doação de obras que não aquelas
normalmente encontradas na cadeia. Foi atendido algumas vezes e descobriu outro
livro que o levou a querer registrar também suas experiências, O processo, de
Kafka.
“Aquele processo
avassalador, que nunca acaba e que não permitia ao sujeito compreender por que
aquilo acontecia com ele… Isso me fez entender que a prisão é uma estrutura que
não sabemos bem de onde vem, mas que ela vai nos fustigar o tempo todo. Diferente
do K. [personagem principal do livro], eu sabia o que estava acontecendo
comigo, eu não fui condenado injustamente, mas a minha pena era desmedida em
relação ao que está posto na legislação”, diz ele, referindo-se às condições
degradantes da cela, por onde transitavam ratos e baratas, à alimentação de má
qualidade e à conduta agressiva dos carcereiros.
Samuel ganhou fama de
escritor na cela, que chegou a dividir com outros 70 homens. Nesse ambiente que
ele descreve como insalubre, ele escrevia cartas para os colegas analfabetos,
ora para suas mães, ora para advogados, e também para namoradas. Foi assim
exercitando o seu estilo de escrita.
Samuel foi aprovado no
vestibular de pedagogia quando estava preso e em 2013 ganhou o direito a saídas
semanais da prisão para assistir às aulas. Publicou suas crônicas do cárcere na
internet, e elas chegaram até o escritor Luiz Alberto Mendes. Morto em 2020,
Mendes foi ex-detento no Carandiru e amigo do médico Drauzio Varella, sendo o
autor de seis livros e colunista, à época, da revista Trip. Os dois ficaram
amigos, e Mendes, que viu em Samuel a veia de escritor, incentivou-o a seguir
no ramo.
Em 2018, um ano depois
de ter alcançado a liberdade condicional, Samuel publicou, por financiamento
coletivo, seu livro de estreia, Além das grades, que reúne crônicas e contos.
Na época do lançamento, Samuel estava desempregado. Vendeu todos os 250 exemplares
num só dia e, com o dinheiro, reformou a casa que dividia com a namorada, hoje
sua esposa. “A minha ressocialização eu devo, também, à literatura”, conta.
Vieram mais três
livros: Gangrena, de poemas, publicado em 2019, o ensaístico Ressocializando na
cidade do caos, de 2022, e outro volume de ensaios, Penitência, de 2023. Todos
trazem reflexões sobre o cárcere, o crime e a religião. Samuel trabalha atualmente
com projetos sociais voltados para a juventude no Rio de Janeiro. Pensa em
estudar letras. O último livro que leu (e de que gostou) foi A fé e o fuzil, do
jornalista Bruno Paes Manso.
• Programa de discussão de livros nas
prisões terminou com gestão de Romeu Zema
Em novembro de 2018, o
poeta belo-horizontino Ricardo Aleixo aceitou um convite do professor de
literatura Alexandre Amaro para discutir a sua coletânea de poemas Pesado
demais para a ventania (Todavia, 2018) numa roda de leitura com internos de um
presídio em Sete Lagoas, na região central de Minas.
Ao ultrapassar os
muros da prisão, encontrou leitores curiosos, cheios de perguntas sobre o que o
inspirava a escrever, as dificuldades de publicar poesia no Brasil, o que era
ficção e o que era biográfico em seus versos. “Eram pessoas que se aplicaram a
conversar com os meus poemas. E, nessa conversa, esses poemas já não eram mais
só meus. Saí de lá como quem tivesse conquistado o Nobel”, lembra Aleixo.
Um ponto memorável
deu-se após a leitura de “Poética”, poema de gosto concretista que, explica o
autor, “tira partido da palavra ruir dentro de construir”. Um dos detentos
comentou de pronto: “Isso é a nossa vida. Estamos aqui para construir sobre
ruínas”.
Em 2023, Amaro
publicou um livro sobre as suas experiências discutindo literatura com detentos
de Minas Gerais. Ele estudou as relações entre literatura e o cárcere em seu
doutorado em letras, quando participava, como voluntário, do programa Rodas de
Leitura, implementado em Minas Gerais durante o governo de Fernando Pimentel
(PT). A participação de Aleixo, porém, foi um dos últimos lances do programa.
Em 2019, quando Zema (Novo) assumiu o governo, o Rodas de Leitura deixou de
existir.
Segundo a Diretoria de
Ensino e Profissionalização do Depen-MG, o cancelamento do Rodas de Leitura não
foi uma decisão do governo de Minas, mas sim do Serviço Social Autônomo
(Servas), entidade sem fins lucrativos que, embora criada e fomentada pelo governo
de Minas, atua de maneira independente, não se tratando de uma instituição
governamental. Procurado para comentar a afirmação do Depen, o Servas não se
manifestou até a publicação desta reportagem.
O Rodas de Leitura, no
entanto, operava em parceria com a administração prisional. “Projetos costumam
ter início, meio e fim”, avalia a diretoria de Ensino, para quem o Rodas de
Leitura já havia cumprido “o seu ciclo”, uma vez que, ainda segundo a diretoria,
a remição por leitura já está “consolidada” no estado.
Mesmo sem o apoio do
governo do estado, há voluntárias que levam a ficção e a poesia aos presos e
presas. É o caso do “LiLi – Literatura Livre”, projeto de extensão da UFMG
iniciado em 2022 pela professora Nayara Noronha, também autora da novela Filha
(7Letras, 2023).
Há algum tempo a
escritora tinha interesse em organizar um grupo de leitura com detentas. A
ideia era apresentar livros escritos por mulheres que, de alguma forma,
dialogassem com as realidades daquelas pessoas. Nayara passou mais de um ano e
meio em contato com a Secretaria de Justiça de Minas até conseguir autorização
para entrar numa unidade prisional, o Centro de Referência à Gestante Privada
de Liberdade, em Vespasiano, na Grande BH.
A conversa mensal com
as detentas dura cerca de uma hora e meia, e, após a leitura, para conseguirem
o benefício da remição da pena, as apenadas têm de escrever um diário com suas
impressões do livro da vez. Também esses diários Nayara deseja transformar em
livro.
Alguns títulos
causaram forte impressão nas leitoras. Em Quarto de despejo, uma das presas
emocionou-se ao reconhecer em Carolina Maria de Jesus, a autora, uma mulher com
a vida árdua e os dilemas semelhantes aos de sua própria mãe; Tudo é rio, de
Carla Madeira, circulou de mão em mão inclusive entre as detentas que, por
estarem presas provisoriamente (isto é, sem terem sido condenadas), não podiam
participar do programa de remição da pena. Já a poética reflexão sobre o luto
de Todo o mar vai ser você, de Glaura Santos, foi o primeiro livro que uma das
presas leu do início ao fim em toda a sua vida.
Flávio Morais,
conhecido no sistema carcerário mineiro como “Tio Flávio”, há mais de dez anos
realiza trabalhos voluntários em presídios do estado. Para ele, a literatura é
um meio efetivo de resgatar o apenado de uma realidade violenta.
“O crime é um assunto
corriqueiro nos presídios: quando chega alguém novo, o primeiro papo é ‘e você,
caiu por causa de quê?’. A literatura é algo que pode quebrar esse círculo.
Quando se discute um livro, não se trata mais de uma conversa entre presos, mas
entre indivíduos que são pais, filhos, que são irmãos de alguém. O objetivo é
ampliar as perspectivas para além da criminalidade”, explica.
Fonte: Por Leandro
Aguiar, Agência Pública
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