Quando a mercantilização da terra é
priorizada em detrimento da reforma agrária
Desde 2010, o contexto
no qual a questão agrária se insere se complexificou.
Na tentativa de
conciliar demandas dos distintos setores agrários, o primeiro governo Lula, ao
passo que colocou em prática políticas de reforma agrária e desenvolvimento
rural voltadas à pequena produção familiar, destinou um enorme esforço estatal
para criar condições para a expansão e fortalecimento do agronegócio
primário-exportador. De fato, a primeira década dos anos 2000 registrou um dos
maiores índices de criação de assentamentos de reforma agrária e de políticas
públicas voltadas ao fortalecimento da produção e qualidade de vida dos
assentados e dos agricultores familiares. Ao mesmo tempo, o período foi marcado
pela retomada da especulação fundiária, aumento do preço da terra e
consolidação da financeirização e internacionalização do agronegócio.
Não por acaso, a
partir de 2010, as entidades representativas do agronegócio passaram a
explicitamente atacar os instrumentos e políticas de democratização do acesso à
terra e a demandar políticas de regularização fundiária e ambiental que
validassem ocupações ilegais de terras públicas e áreas desmatadas ilegalmente.
Na esteira desse processo, em 2009, foi criado o Programa Terra Legal (Lei nº
11.952) com o intuito de acelerar o processo de regularização fundiária de
terras públicas federais que tenham sido ocupadas na Amazônia Legal antes de
dezembro de 2004. Em 2012, já sob o governo Dilma, o Código Florestal foi
alterado a fim de reduzir as regras de proteção socioambiental a que estão
submetidos os imóveis rurais e regularizar áreas desmatadas ilegalmente. Ambas
as iniciativas, ao criarem condições para privatização de terras públicas e
regularização ambiental de áreas desmatadas, visavam atender às exigências de
um mercado cada vez mais ávido por um acesso estável e legal à terra e bens
naturais.
Desde então, se
intensificam as tentativas de liberar terras públicas ao mercado. Isso porque,
a histórica ausência de uma política efetiva de reforma agrária e ordenamento
territorial faz com que o país ainda possua milhares de hectares de terras
devolutas – terras presumidamente públicas, embora seus limites exatos e
localização ainda não sejam conhecidos pelo poder público. Estima-se que pelo
menos 17% do território brasileiro têm domínio ou propriedade desconhecidos
pelo Estado. O fato de serem devolutas não significa que essas terras estejam
vazias. A maior parte delas tem sido historicamente ocupada por
agricultores(as) familiares e povos e comunidades tradicionais, excluídos do
acesso estável à terra, e são pressionadas permanentemente pela grilagem de
terras públicas, geralmente acompanhada de desmatamento, fraude de documentos e
violência contra as comunidades que tradicionalmente as ocupam.
Ao mesmo tempo, a
Constituição Federal de 1988 estabelece que a destinação de terras públicas
deve atender aos propósitos de democratização do acesso à terra e à criação de
espaços ambientalmente protegidos. Concretamente isso significa que dentre as
prioridades de destinação das terras públicas estão: as políticas de reforma
agrária e de reconhecimento de direitos territoriais a povos indígenas,
quilombolas e demais comunidades tradicionais e de proteção ambiental. Essas
destinações as mantêm – de forma temporária ou permanente – fora do mercado,
como terras públicas designadas à conservação ambiental e/ou ao usufruto dos
seus destinatários (assentados da reforma agrária, povos indígenas, quilombolas
e comunidades tradicionais). Um dos objetivos, ao retirá-las do mercado, é
garantir maior segurança fundiária a esses sujeitos e, assim, evitar que, sob
pressão de interesses econômicos, percam suas terras.
Se por um lado o
regime fundiário constitucional prevê a desmercantilização de uma parcela das
terras no país, desde a vigência da atual Constituição, a política econômica e
de desenvolvimento priorizou o fortalecimento de setores – empresas de
mineração e agronegócio, fundos de investimento, governos – que têm na terra um
importante ativo econômico e financeiro. A isso soma-se o fato de que, nos
últimos quinze anos, a terra foi o ativo que apresentou maior valorização:
entre 2009 e 2014, os preços médios da terra no Brasil cresceram 95%, com
destaque para o Centro-Oeste, onde esse índice chegou a 130%, coincidindo com a
expansão da fronteira agrícola que avança em direção à Amazônia e ao Cerrado
Nordestino. No Tocantins, por exemplo, a média de valorização do preço da
terra, entre 2003 e 2018, foi de 273%.
Esse cenário explica
as sucessivas tentativas de liberar terras públicas ao mercado. Um fenômeno que
logo alcançou os assentamentos de reforma agrária: primeiro a partir da
desaceleração das ações de criação de assentamentos e de desapropriações de
terras para fins de reforma agrária; e, na sequência, com a condução da
titulação para o centro da política de reforma agrária.
MAIS PROPRIETÁRIOS,
MENOS ASSENTADOS
Apesar do início de um
novo governo, pelo terceiro ano consecutivo a União não realizou nenhuma ação
de desapropriação para criação de novos assentamentos, mantendo paralisada,
portanto, estratégias de redistribuição de terras em um país onde a concentração
da propriedade é altíssima. Essa paralisia representa o ápice de um processo
que, desde 2010, começa a ocorrer por meio da diminuição progressiva no número
de assentamentos criados e na redução orçamentaria do Incra para seu
desenvolvimento. Enquanto isso, um conjunto de mudanças normativas ocorreram,
criando as condições legais para acelerar e operacionalizar a titulação nos
assentamentos.
A titulação dos
assentamentos é uma etapa da reforma agrária prevista na Constituição de 1988.
Era pouco adotada, porque os assentamentos não cumpriam os requisitos mínimos
para a titulação, que previa a aplicação de políticas públicas que garantissem
o desenvolvimento do assentamento como um passo anterior à entrega do título.
Antes, o Incra só emitia títulos aos assentados depois de comprovar a
autossuficiência dos assentamentos com o objetivo de justamente evitar que
essas terras voltassem rápido ao mercado e gerassem reconcentração fundiária. Uma
série de transformações normativas e na estrutura do órgão flexibilizaram essas
regras e conduziram a titulação para o centro da política de reforma agrária.
ALTERAÇÕES NORMATIVAS
As leis agrárias
estabeleciam que a titulação definitiva dos assentamentos poderia ser feita por
dois instrumentos: Título de Domínio (TD), que transfere a propriedade da terra
para o beneficiário, e a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), que mantém a
propriedade sob domínio público e transfere ao beneficiário o direito real de
uso da terra. Alterações legais levaram à priorização da transferência da
propriedade da terra para as famílias por meio da emissão de TD em detrimento
de outros instrumentos jurídicos que garantem a segurança da posse, como o
CDRU.
Além dos mecanismos de
titulação, foram realizadas mudanças estruturais na política de reforma
agrária, tais como: o procedimento de desapropriação de terras para fins de
reforma agrária passou a prever hipóteses nas quais a indenização poderia ser
paga em dinheiro, o que explica, em parte, a paralisação dessa importante
política para desconcentrar a terra; A seleção das famílias passou a ser
definida por edital público, em vez de priorizar as famílias acampadas,
reduzindo o caráter coletivo da luta pela terra; Foram reduzidas as obrigações
estatais de investimentos em políticas de desenvolvimento dos assentamentos
(aplicação de créditos e investimentos em infraestrutura) que garantiriam que
os assentamentos estariam suficientemente fortes, em termos de produção e
infraestrutura, para não serem desestruturados pela pressão do mercado de
terras; A legislação impunha limites para a negociação dos lotes, a fim de
evitar justamente a desestruturação do assentamento pela pressão do mercado. No
entanto, mudanças legais reduziram o tempo em que o lote não pode ser
negociado, ampliaram as possibilidades de incorporação dos lotes a outros
imóveis rurais e viabilizaram a venda dos lotes a pessoas que não cumprem os
requisitos de beneficiário da reforma agrária.
Ao facilitar e
estimular a outorga de títulos de domínio sem que sejam aferidas as condições
de reprodução econômica do assentamento, o que o governo faz é se isentar de um
eixo estruturante da reforma agrária: as políticas de infraestrutura e apoio
para que os agricultores produzam e permaneçam na terra.
Apesar disso, o que
assistimos foi o aumento exponencial da entrega de títulos definitivos aos
assentados nos últimos anos e uma redução progressiva das demais políticas e
iniciativas de desenvolvimento e fortalecimento dos assentamentos e da reforma
agraria. Entre 2003 e 2015, em um intervalo de doze anos, foram emitidos 22.729
títulos de domínio para assentados da reforma agrária, somente durante o
governo de Jair Bolsonaro foram emitidos quase 60.000 títulos de domínio. Isto
é, a cada ano do governo Bolsonaro foi entregue um montante de títulos quase
igual ao número de títulos entregues durante todo o período anterior
(2003-2015).
Diante desse cenário
de fragilização da política, impulsionado pela denúncia dos movimentos sociais
e setores da sociedade civil, em 2023, já no governo Lula, foram realizadas
mudanças pontuais no procedimento de titulação dos assentamentos. Essas modificações,
de um lado, apontam para o reconhecimento do governo federal da necessidade de
revisar o quadro normativo da reforma agrária e, de outro, revelam a
insuficiência de incidências pontuais que não reflitam a complexidade da
política de reforma agrária.
TITULA BRASIL
Para que isso fosse
possível, na sequência das alternações normativas mencionadas, durante o
governo Bolsonaro foi criado o Programa Titula Brasil. O Programa opera por
meio da realização de acordos de cooperação técnica entre o Incra e os
municípios, os quais transferem determinadas competências do instituto para os
municípios executarem, como georreferenciamento, verificação de documentos etc.
Os movimentos sociais do campo têm criticado a municipalização dessas ações por
entenderem que colocam os assentamentos sob a lógica dos poderes políticos
municipais, gerando um enfraquecimento da política. Até dezembro de 2022, foram
assinados 669 acordos de cooperação técnica (ACT) entre o Incra e os
municípios. Embora criado na gestão Bolsonaro, o programa se mantém ativo, e,
em 2023, foram firmados cinco ACTs.
O Programa Titula
Brasil foi precedido da criação do Núcleo de Inteligência e Planejamento, em
2019, no âmbito do Incra, com o objetivo de identificar as pendências para a
titulação dos assentamentos e organizá-los em um ranking de prioridades para a
titulação. Esse ranking informaria a atuação das superintendências regionais
nas ações de titulação. O grupo identificou 7.687 assentamentos passíveis de
titulação, classificando-os de acordo com o grau de cumprimento dos requisitos
legais para titulação. Desse montante, 670 cumpririam todos os requisitos para
titulação, o que representaria o retorno de uma área de mais de 3,5 milhões de
hectares para o mercado de terras. Em um cenário em que todos as pendências
fossem sanadas, e todos os 7.600 assentamentos fossem titulados, mais de 44
milhões de hectares voltariam ao mercado de terras.
PRIVATIZAÇÃO DE TERRAS
PÚBLICAS
O esvaziamento das
demais políticas de reforma agrária e a ênfase na titulação individual deixam
claro que o objetivo dessa mudança de rumo na política agrária se inscreve em
processo de privatização de terras públicas, cuja consequência mais imediata é a
perda do controle público de um enorme patrimônio fundiário da União. Um
patrimônio que, se destinado a atender aos preceitos constitucionais, que
determinam as prioridades de destinação de terras públicas, deveria estar
protegido da mercantilização a fim de garantir a democratização do acesso a
quem não tem terra e a proteção à posse exercida de milhares de famílias que
sem acesso estável à terra se veem submetidas à violência e ao conflito. Em um
contexto de alta dos preços da terra (SAUER; LEITE, 2012) e de precárias
condições de vida nos assentamentos (SPAROVEK, 2003; LEITE et al., 2004), a
titulação definitiva dos assentamentos, que deveria ser o coroamento de uma
política exitosa de desconcentração fundiária, termina por vulnerabilizar as
famílias perante o mercado de terras e, a médio prazo, pode levar à ampliação
dos índices já bastante altos de concentração de terras no país.
Fonte: Por Julianna
Malerba e Paula Máximo, para Le Monde
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