Por que Exu é uma das figuras mais louvadas
(e estigmatizadas) da umbanda e do candomblé
Com mais de meio
milhão de seguidores no Instagram — e presença maciça também em outras redes
sociais — o empresário Jonathan Pires se intitula “o macumbeiro mais famoso do
Brasil”.
Esta influência ajudou
a fazer da 1ª Marcha para Exu, evento promovido por ele e realizado em 13 de
agosto do ano passado na Avenida Paulista, em São Paulo, um sucesso de público
— pelas contas do organizador, 100 mil pessoas participaram.
Exu é uma figura
controversa no imaginário popular brasileiro. A visão negativa que recai sobre
ele é atribuída ao preconceito racial, uma vez que, nas religiões de matriz
africana, como a umbanda e o candomblé, Exu é uma figura importante.
Mudar essa má fama foi
o que motivou Pires, que é sacerdote de umbanda e, entre suas empresas, tem uma
loja de artigos religiosos na zona norte de São Paulo.
“As pessoas falam que
Exu só faz maldade, só destrói relacionamento, cada barbaridade que a gente
ouve falar em nome de Exu que eu quis mostrar para o mundo que Exu não é isso”,
diz ele à BBC News Brasil.
“Exu é amor, é
respeito, é igualdade, e ele luta por todos nós.”
Pires quer continuar
levando Exu para a Paulista. Garante que o evento deste ano seguirá em agosto —
em data ainda não oficializada. “Também quero fazer no Rio e na Bahia”, diz
ele.
Entidade para a
umbanda, orixá para o candomblé, Exu está presente na cultura brasileira,
principalmente nos redutos culturais ligados originalmente à população
afrodescendente e no Carnaval.
No pré-carnaval de
Salvador, em fevereiro, a cantora Anitta apresentou-se trajando uma fantasia em
homenagem a Exu.
Em 2022, a Acadêmicos
do Grande Rio sagrou-se campeã do carnaval carioca com um samba-enredo em
homenagem ao orixá.
Para o sociólogo,
antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio, Exu é “o dono do carnaval”.
“Exu é o mais humano
entre todos os orixás. Isso denota sua proximidade com as pessoas, mas também
seu senso de generosidade e compreensão”, afirma Eugênio à BBC News Brasil.
“É o orixá da
multiplicação e da multiplicidade. É divertido, gosta da festa e da farra, é
dono do corpo que samba. Exu é o dono da festa do povo.”
• Exu na umbanda e no candomblé
Cultuado na África
pelo povo iorubá, a figura de Exu chegou ao Brasil por meio dos escravizados
com a religiosidade do candomblé.
Acabou estigmatizado
pelo catolicismo — que cravou no orixá a pecha de figura demoníaca. Mas também
conseguiu se sincretizar.
“Foi construído muitas
vezes sendo aproximado da imagem de Santo Antônio, porque Santo Antônio é um
santo associado à questão do casamento e também por ser ele um santo tão
popular entre os [colonizadores] portugueses”, diz o historiador Guilherme
Watanabe, pai de santo do Terreiro de Umbanda Urubatão da Guia, em São Paulo, e
pesquisador mestrando na Universidade de São Paulo (USP).
Cabe explicar como
cada religião de matriz africana trata Exu.
“Exu, ou o arquétipo
de Exu em divindades correspondentes, está presente em toda a África negra.
Entre iorubás e fon, que difundiram o culto a Exu no Brasil e na diáspora, o
orixá é considerado a ‘espinha dorsal’ dessas civilizações”, pontua Eugênio.
Dentre as religiões
africanas que chegaram ao Brasil, a mais conhecida é o candomblé.
A umbanda é uma
criação brasileira, que acabou herdando muitos elementos do candomblé — mas
também incorporou preceitos do espiritismo kardecista, do catolicismo e de
outras crenças.
Há cerca de 589 mil
praticantes da umbanda e do candomblé no Brasil segundo os dados do Censo de
2010 — ainda não foram divulgados os números do recorte por religião do último
levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2022.
Outras 14 mil pessoas
declararam seguir outras correntes religiosas afrobrasileiras.
Exu está presente
tanto na umbanda quanto no candomblé, mas com uma sutil diferença.
Enquanto, no
candomblé, ele é orixá, ou seja, uma divindade, na umbanda, Exu é uma entidade,
como se fosse um espírito.
Uma diferença básica
entre umbanda e candomblé, explica Eugênio, é que, na umbanda, também por
influência do kardecismo, o culto às entidades é um componente principal,
enquanto, no candomblé, são as divindades, ou seja, os orixás, que são
cultuadas diretamente.
“Portanto, os exus da
umbanda são entidades, encantados para alguns e espíritos para outros, que se
manifestam nos médiuns como ‘representantes’ do orixá”, afirma o pesquisador.
Como muitos adeptos do
candomblé vieram da umbanda, essas entidades também se manifestam nos
candomblés, diz Eugênio.
“Como a pureza não é
uma preocupação nas tradições afrobrasileiras, os exus catiços, como são
chamadas essas entidades, assim como os caboclos, que representam os ancestrais
indígenas e mestiços, convivem tranquilamente em terreiros de candomblé de São
Paulo, Rio de Janeiro e até da Bahia.”
• Quem é Exu
Eugênio diz que Exu é
o mais importante entre todos os orixás
“Mas não de um ponto
de vista hierárquico e sim como propulsor do axé, ou seja, do poder de
realizar. Exu é movimento, é o princípio dinâmico da vida”, diz Eugênio.
“Mais do que um
mensageiro entre seres humanos e divindades, Exu mantém uma relação intrínseca
com as questões práticas da vida. Exu é o caminho. É o orixá que abre todos os
caminhos, o dono das encruzilhadas, senhor das possibilidades.”
Para evitar percalços
e dificuldades e para que tudo dê certo, diz Eugênio, evoca-se Exu.
“Além disso, Exu é o
senhor das trocas e o fiscalizador da ordem da universo e do bom caráter. Quem
tem felicidade e dinheiro separa uma parte para Exu”, diz o pesquisador.
“É também o dono do
mercado, isto é, coordena as transações financeiras, a economia, o consumo, mas
não com uma lógica de acúmulo. Exu faz o dinheiro circular para gerar riqueza.”
O historiador e pai de
santo Guilherme Watanabe é também uma figura ligada à fertilidade.
“Exu é orixá associado
ao sexo, à sexualidade, mas também à ordem e à desordem do mundo, é o orixá que
traz a ordem a partir do caos”, diz Watanabe.
“É um orixá que a
gente cultua para conseguir organizar nossa vida e extrair o melhor dela. Está
muito associado à contradição, porque ele traz outros pontos de vista, outras
verdades para dentro da estrutura de pensamento.”
No candomblé, tudo
começa com Exu. Isto porque ele é considerado o orixá da comunicação, aquele
que promove a conexão das pessoas com as divindades.
“Cultuamos Exu antes
dos festejos de Iemanjá [dia 2 de fevereiro] para que tudo corra bem, para que
não haja acidentes ou incidentes, para que as oferendas cheguem a seu destino”,
exemplifica Eugênio.
Sua proeminência se
destaca não só pelo fato de ele estar presente nos rituais ligados aos outros
orixás — como no caso citado da Iemanjá — mas também por ser reservada a Exu a
segunda-feira, o primeiro dia útil da semana.
“Exu é o número um.
Está associado ao início do cotidiano, da rotina. É quem primeiro organiza, faz
o planejamento. Por isso, na segunda-feira muitas pessoas costumam fazer
saudações a Exu e cultuá-lo”, diz Watanabe.
• Colonização e preconceito
Mas, com estes
atributos, por que Exu passou a ser associado à figura do diabo?
Eugênio diz que
predicados negativos atribuídos ao orixá são resultado de uma série de
deturpações promovidas por religiosos cristãos europeus em uma tentativa de
subjugar a espiritualidade dos africanos.
“A demonização de Exu
é uma síntese da demonização da cultura negra e do próprio negro enquanto
pessoa”, diz o pesquisador.
“Demonizar Exu foi
como desprover o negro de sua maior potencialidade, como quebrar a espinha
dorsal de uma civilização”, argumenta ele.
Watanabe acrescenta
que, historicamente, os missionários europeus buscavam compreender as
características das divindades dos povos colonizados com o objetivo de
reinterpretá-las do modo que fosse mais fácil impôr a fé cristã.
O sincretismo foi um
resultado de um processo de aculturação durante o processo de colonização,
aponta Eugênio.
“A associação de Exu
ao diabo, que é uma figura do cristianismo, já veio com os missionários que
participaram da colonização na África”, diz o pesquisador.
“A demonização do
‘outro’ é parte fundamental desses processos de opressão. Na diáspora, a
demonização foi aprofundada, mas há registros interessantes como o sincretismo
com Santo Antônio no Brasil e com o Menino Jesus em Cuba.”
Santo Antônio porque
haveria um paralelo entre o santo casamenteiro e orixá da fertilidade. Menino
Jesus porque Exu é alegre, brincalhão e infantil.
O fato de Exu ser
ligado à fertilidade e ser muitas vezes representado mostrando o pênis foi um
alvo moral do catolicismo, diz Watanabe.
“É um orixá que bate
de frente diretamente com os valores de mundo cristãos, então acaba associado à
imagem daquilo que é contrário aos cristãos, ou seja, a própria figura do
diabo”, explica o historiador.
“Tem a ver com essa
característica de Exu, ligado à festa, felicidade, a multiplicação, a
fertilidade. De certa forma, são valores contrários à virgindade, à pureza, à
divindade [tais como vistas pelo catolicismo].”
• Muçulmanos e evangélicos
O pesquisador ressalta
que isso não ocorreu apenas com os católicos, mas também com os cristãos
protestantes — e, mais recentemente, no Brasil após os anos 1980,
principalmente com a popularização das igrejas evangélicas neopentecostais.
“Na Nigéria, também
houve [esse tipo de reinterpretação], principalmente com os muçulmanos, que da
mesma forma passaram a associar Exu ao que eles traduzem como ‘aquilo que é
mal’”, comenta ele.
“Aqui no Brasil, a
partir dos anos 1980 e 1990, o crescimento das neopentecostais promoveu uma
espécie de guerra santa associando diretamente Exu ao demônio. No discurso, é
preciso combater o mal e o mal estaria associado diretamente à imagem de Exu.”
Watanabe também
enxerga na visão negativa sobre Exu uma questão racial.
“Muitas vezes, a
associação direta de Exu com o demônio tem a ver com a estruturação do racismo
no Brasil, que vai ligar tudo aquilo diretamente relacionado ao continente
africano ao ruim, ao pior”, pontua.
“O racismo
hierarquizou essas culturas, as pessoas, realçando tudo o que era do branco,
como Jesus Cristo e a Virgem Maria sendo símbolos da salvação, e relegando tudo
o que era do negro, daí os orixás seriam algo negativo.”
A estigmatização de
Exu implica em uma ferida aberta para os praticantes das religiões de matriz
africana, dizem os especialistas, porque o orixá é muito central nessas
espiritualidades.
Mas, embora o processo
de colonização tenha deixado uma herança distorcida de Exu, Eugênio acredita
que seu verdadeiro significado vem sendo recuperado, em iniciativas como as
homenagens no Carnaval e a marcha que Jonathan Pires realiza na Paulista.
“Isso demonstra que
estamos resgatando também a dignidade do povo negro.”
Fonte: BBC News Brasil
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