sexta-feira, 22 de março de 2024

Pepe Escobar: Os BRICS lançarão um novo mundo em 2024?

Por todo o Sul Global, países vêm fazendo fila para se juntarem aos BRICS e às suas promessas de multipolarismo e um futuro livre do Hegêmona. Esse aumento vertiginoso do interesse pelos BRICS se tornou o inevitável tema das discussões no decorrer deste ano crucial da presidência russa  daquilo que, até agora, é o BRICS10. 

Indonésia e Nigéria estão entre os candidatos mais prováveis para as próximas filiações. O mesmo se aplica ao Paquistão e ao Vietnã. O México se vê em uma situação muito complexa: como se filiar sem despertar a ira do Hegêmona.  

E mais um candidato entrou na lista: o Iêmen, que conta com forte apoio da Rússia, China e Irã. 

Cabe ao principal sherpa russo nos BRICS, o imensamente capaz Vice-Chanceler Sergey Ryabkov, esclarecer o que temos pela frente. Ele declarou à TASS: "Temos que oferecer aos países interessados em se aproximar dos BRICS uma plataforma que os capacite a trabalhar sem se sentirem deixados para trás na prática e consigam acompanhar nosso ritmo de cooperação. E quanto a decisões sobre a futura expansão, elas serão adiadas pelo menos até que as lideranças se reúnam em Kazan com esse objetivo".

A decisão final quanto à expansão dos BRICS+ só virá da cúpula de Kazan, a ser realizada em outubro próximo. Ryabkov ressalta que a ordem do dia é, em primeiro lugar, integrar aqueles que acabam de se filiar". O que significa que, "como dez", funcionaremos de forma tão eficiente, ou melhor, ainda mais eficiente que como os "cinco iniciais". 

Só então os BRICS-10 "desenvolverão a categoria de estados parceiros", o que na verdade significa criar uma lista consensual a partir das dezenas de países que estão literalmente ansiosos para ingressar no clube. 

Ryabkov sempre faz questão de observar, tanto em público quanto em privado, que o fato de os membros dos BRICS terem dobrado de número a partir de 1º de janeiro de 2024, é "um acontecimento sem precedentes em qualquer estrutura internacional". 

Não é uma tarefa fácil, diz Ryabkov: 

"No ano passado, demoramos um ano inteiro para desenvolver critérios de admissão e expansão no nível do primeiro escalão. Muitas coisas razoáveis foram desenvolvidas. E muitas das coisas formuladas àquela época se refletiram na lista de países que vieram a se filiar. Mas, muito provavelmente, seria inconveniente formalizar as exigências. Ao final das contas, a admissão à associação é objeto de decisão política".

·        O que acontece depois das eleições presidenciais russas

Em uma reunião privada com uns poucos indivíduos escolhidos a dedo, realizada nos bastidores da recente conferência multipolar em Moscou, o Chanceler Sergei Lavrov falou efusivamente dos BRICS, dando especial ênfase a seus colegas Wang Yi, da China, e  S. Jaishankar, da Índia.

Lavrov tem grandes expectativas para os BRICS-10 neste ano – ao mesmo tempo em que lembrava a todos que ainda se trata de um clube, mas que, futuramente, a organização terá que se aprofundar em termos institucionais, por exemplo, com a indicação de uma secretaria-geral, nos moldes de sua prima, a Organização de Cooperação de Xangai (OCX). 

A presidência russa se verá assoberbada de tarefas nos próximos meses, tendo que navegar não apenas o espectro geopolítico das atuais crises mas, principalmente, o aspecto geoeconômico. Uma reunião crucial a ser realizada em junho – daqui a apenas três meses – terá que propôr um roteiro detalhado até a cúpula de Kazan, que ocorrerá quatro meses mais tarde. 

O que acontecerá após as eleições presidenciais russas também condicionará as políticas dos BRICS. Um novo governo russo tomará posse em inícios de maio. Espera-se que não venha a haver mudanças significativas no Ministério das Finanças, no Banco Central, no Ministério das Relações Exteriores e entre os principais consultores do Kremlin. 

A continuidade será a norma. 

O que nos leva ao principal dossiê geoeconômico: os BRICS na vanguarda da ultrapassagem do dólar dos Estados Unidos nas finanças internacionais. 

Na semana passada, um consultor de primeiro escalão do Kremlin, Yury Ushakov, anunciou que os  BRICS irão estabelecer um sistema de pagamentos independente baseado nas moedas digitais e no blockchain. 

Ushakov ressaltou especificamente "instrumentos estado-da-arte, tais como tecnologias digitais e blockchain. O mais importante é fazer com que esse sistema seja conveniente aos governos, às pessoas comuns, às empresas e também que tenha um bom custo-benefício  e seja despolitizado". 

Ushakov não mencionou explicitamente, mas um novo sistema alternativo já existe. No momento, ele é um projeto cuidadosamente guardado na forma de um white paper detalhado, que já recebeu validação econômica e incorpora também respostas a possíveis perguntas colocadas com frequência.  The Cradle recebeu informações sobre o sistema por meio de diversas reuniões realizadas a partir do ano passado com um pequeno grupo de especialistas em tecnologia de finanças de nível mundial.  O sistema já foi apresentado ao próprio Ushakov. No presente momento, ele está em vias de receber sinal verde do governo russo. Após passar por uma série de testes, o sistema, em tese, estaria pronto para ser apresentado aos membros dos BRICS-10 antes da cúpula de Kazan.

Tudo isso se conecta com o fato de Ushakov ter declarado publicamente que uma das tarefas específicas para 2024 é a de aumentar o papel dos  BRICS no sistema monetário/financeiro internacional. 

Ushakov lembra que, na Declaração de Joanesburgo de 2023, os chefes de estados dos países-membros focaram o aumento dos pagamentos em moedas nacionais e o fortalecimento das redes bancárias correspondentes. A meta era "continuar a desenvolver o Acordo de Reservas Contingentes, primeiramente no que se refere ao uso de moedas que não o dólar dos Estados Unidos". 

·        Nenhuma moeda única em um futuro previsível

Tudo o que foi dito acima se enquadra na questão absolutamente central atualmente sendo discutida em Moscou dentro da parceria Rússia-China, e em futuro próximo, e com maior profundidade, também entre os BRICS-10: pagamentos de liquidação alternativos ao dólar dos Estados Unidos, aumento no comércio entre "nações amigas" e controles sobre a fuga de capitais. 

Ryabkov acrescentou ao debate outros elementos cruciais, afirmando esta semana que os  BRICS não estão debatendo a implementação de uma moeda única: "Quanto a uma moeda única semelhante à criada pela União Europeia, isso dificilmente será possível em um futuro previsível. Se estamos falando de formas de pagamentos mútuos, tais como o ECU [Unidade de Moeda Europeia] usado nos primeiros estágios do desenvolvimento da União Europeia para suprir a ausência de um meio real de pagamento, oferecendo a oportunidade de usar com maior eficácia  os recursos disponíveis dos países em acordos mútuos para evitar perdas devidas à diferentes taxas de câmbio etc., então esse é precisamente o caminho que, em minha opinião, os BRICS deveriam tomar. Isso vem sendo examinado".

A principal conclusão, segundo Ryabkov, é que os BRICS não devem criar uma união financeira e monetária, eles devem criar um sistema de pagamentos e amortizações que não dependa da pouco confiável "ordem internacional baseada em regras". 

Essa é exatamente a ênfase das ideias e experimentos já desenvolvidos pelo Ministro da Integração e Macroeconomia na União Econômica Eurasiana (UEEA), Sergei Glazyev, que ele explicou, em uma entrevista exclusiva, e também do projeto pioneiro em vias de ser aprovado pelo governo russo.

Ryabkov confirmou que "um grupo de especialistas liderado pelos Ministérios das Finanças e representantes dos respectivos Bancos Centrais respectivos [países dos BRICS]" vem trabalhando incessantemente nesse dossiê. Além do mais, há "consultas em outros formatos, e também com a participação de representantes do "ocidente histórico". 

As conclusões do próprio Ryabkov refletem aquilo que os BRICS como um todo têm como meta: 

"Coletivamente, temos que apresentar um produto que seja, por um lado, bastante ambicioso (porque é impossível continuar a tolerar os ditames do Ocidente nessa área), mas ao mesmo tempo realista e com os pés no chão. Ou seja, um produto eficiente. E tudo isso deverá ser apresentado em Kazan para ser examinado pelas lideranças".

Resumindo: o grande avanço talvez esteja literalmente batendo às portas dos BRICS. Tudo depende de um simples sinal verde do governo russo. 

Compare-se agora os BRICS desenhando os contornos de um novo paradigma geoeconômico com o ocidente coletivo planejando o roubo dos ativos russos sequestrados para beneficiar o buraco negro que é a Ucrânia.  

Além de ser uma declaração de fato dos Estados Unidos e da União Europeia contra a Rússia, essa medida traz em si o potencial de esmagar por completo o atual sistema financeiro global. 

O roubo dos ativos russos, caso venha a acontecer, irá no mínimo enfurecer pelo menos dois importantes membros dos BRICS, a China e a Arábia Saudita, países de considerável peso econômico. Uma medida como essa, caso implementada pelo Ocidente, destruirá por completo o conceito de estado de direito, que, em tese, embasa todo o sistema financeiro global. 

A resposta russa será feroz. O Banco Central russo poderá, de imediato, processar e confiscar os bens da Euroclear belga, um dos maiores sistemas de liquidação e compensação, em cuja conta as reservas russas estavam congeladas. 

E, além disso, o sequestro dos ativos da Euroclear na Rússia, que totalizam por volta de 33 bilhões de euros. Se a Euroclear for descapitalizada, o Banco Central Belga terá que revogar sua licença, provocando uma maciça crise financeira.  

Esse é o  choque de paradigmas: a roubalheira ocidental versus comércio equitativo e um sistema de pagamentos e amortizações com base no Sul Global. 

 

       Putin: um amálgama de diferentes eras

 

Após o resultado das últimas eleições na Rússia, o mundo mais uma vez testemunhou o inabalado apoio da população do país ao presidente Vladimir Putin. Seguindo agora para o quinto mandato como chefe de Estado, Putin foi o principal responsável pelo resgate do prestígio de Moscou nas relações internacionais.

É possível dizer que desde que Putin chegou ao poder pela primeira vez em 2000, a Rússia se apresentou como uma verdadeira "amálgama de diferentes eras", resgatando alguns elementos importantes de seu passado. Ora, existe um ponto em que a experiência dos Estados pode realmente ser comparável à experiência de um indivíduo, e isso se dá no modo como ambos interpretam e utilizam o seu passado como forma de moldar atitudes e identidades no presente. De seu passado, a Rússia extraiu lições fundamentais, a fim de lidar com a complexa realidade internacional multipolar de nossos tempos.

Não somente isso. Com Putin à frente do poder, as impressões de um país abatido, pobre e enfraquecido pelas transformações econômicas e sociais dos anos 1990 deram lugar a novos movimentos de consciência e de renovação dentro da Rússia, incluindo uma verdadeira redefinição de sua identidade nacional. No mais, a era Putin demonstrou não somente a importância do papel do indivíduo para as grandes transformações históricas, como também a importância do resgate de elementos do passado como norteador do desenvolvimento social. A Rússia de Putin, assim como no período soviético, tornou-se um país que não mais aceitava uma posição subordinada no sistema internacional e que brigaria por afirmar sua posição de "Grande Potência" no sistema, papel que desempenhou desde o período czarista de sua história.

No começo de seu primeiro mandato em 2000, ao lidar de forma dura e eficiente com as tendências separatistas existentes no país e se aproveitando de condições econômicas favoráveis, Putin foi capaz de manter a integridade territorial da Rússia e de devolver a dignidade à sua população. Ao final de seu segundo mandato, Putin então começou a subir o tom em seus discursos internacionais contra as injustiças da hegemonia americana, defendendo a consolidação de um mundo "multipolar" mais justo e livre dos ditames de Washington. Já a partir de 2012 — no início de seu terceiro mandato —, Putin começou a acentuar as diferenças culturais, políticas e civilizacionais entre a Rússia e o Ocidente, apregoando o respeito às múltiplas tradições nacionais e religiosas existentes no mundo. Não à toa, a Rússia de Putin demonstrou maior sinergia entre o Estado e a Igreja Ortodoxa, um dos pilares da civilização russa desde os primórdios de sua formação.

Nos Estados Unidos, por outro lado, a Rússia novamente figurava como uma ameaça aos valores e aos interesses americanos, com acusações de que o "regime autoritário de Putin" representava um obstáculo à expansão das chamadas "democracias liberais" à guisa do modelo ocidental pretensamente universalizante. Levantava-se então aquela velha dicotomia típica da Guerra Fria, que serve apenas para angariar o suporte das audiências ocidentais para projetos como a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para o leste, uma clara demonstração da continuada política de contenção ao poderio russo. Não agrada aos formuladores de políticas, seja na Europa, seja nos Estados Unidos, que a Rússia se consolide como "Estado forte", lastreado por seu poderio militar e por suas enormes potencialidades humanas e de recursos naturais.

Ao mesmo tempo, ao longo dos anos 2000, a figura de Putin no exterior passou a ser identificada com a da própria Rússia, com ambos passando a ser cada vez mais reconhecidos e respeitados no cenário internacional, apesar das frequentes campanhas de propaganda do Ocidente no sentido de manchar a imagem do presidente russo. Sem atentar para essas campanhas de difamação, a era Putin se caracterizou pela defesa da Rússia de seus interesses nacionais e regionais de segurança, à guisa do período soviético e imperial. Ora, tanto para Putin como para a população russa, o processo de expansão da OTAN para o leste no contexto do pós-Guerra Fria constituiu uma ameaça grave à segurança do país e uma provocação dirigida a minar a influência de Moscou no espaço pós-soviético. Afinal, precisamos lembrar que a Rússia historicamente sofreu com invasões a partir do Ocidente e, portanto, não poderia olhar com indiferença os movimentos da OTAN em direção a suas fronteiras. Como consequência — em parte — dessa interpretação, foi que Moscou empreendeu sua operação militar especial na Ucrânia em 2022.

Diante desse contexto, o quinto mandato de Putin começa justamente com as tropas russas defendendo os novos territórios do país e com o fracasso dos esforços ocidentais de tentar derrotar a Rússia no campo de batalha. Por certo, de muito tempo que o conflito no Leste Europeu tem sido não entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim de todo o Ocidente coletivo contra os russos, seja por ações militares, seja pelas sanções. Ilusoriamente, no entanto, os Estados Unidos e a União Europeia continuam a prometer a suas populações que o fornecimento de armas, equipamentos e apoio financeiro à Ucrânia se justifica pela necessidade de deter a Rússia a todo o custo. Caso contrário, Moscou poderia avançar pelo continente. Trata-se de uma completa loucura, usada pelos líderes europeus e americanos apenas para disfarçar sua miopia política e esconder do público o fracasso de seu projeto geopolítico de derrubar a Rússia.

Seja como for, ao iniciar o quinto mandato como presidente do país, Putin e sua administração se mostraram capazes de resistir à chantagem ocidental, do mesmo modo como a Rússia e sua população conseguiram resistir às sanções econômicas. Para os anos seguintes, independentemente de qualquer torcida em contrário, as ações da Rússia tanto no âmbito doméstico como externo continuarão a definir os contornos da geopolítica internacional. Em suma, assim como em séculos passados, com Putin novamente à frente da presidência — dessa vez até 2030 —, a Rússia persistirá exercendo um papel de relevância no cenário mundial. Para além disso, esse país, que se tornou uma verdadeira "amálgama de diferentes eras", certamente extrairá quaisquer lições que forem necessárias para a construção das bases de um futuro justo e digno.

 

Fonte: Tradução de Patricia Zimbres, para Brasil 247/Sputnik Brasil

 

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