Pepe Escobar: Os BRICS lançarão um novo
mundo em 2024?
Por todo o Sul Global,
países vêm fazendo fila para se juntarem aos BRICS e às suas promessas de
multipolarismo e um futuro livre do Hegêmona. Esse aumento vertiginoso do
interesse pelos BRICS se tornou o inevitável tema das discussões no decorrer
deste ano crucial da presidência russa daquilo que, até agora, é o
BRICS10.
Indonésia e Nigéria
estão entre os candidatos mais prováveis para as próximas filiações. O mesmo se
aplica ao Paquistão e ao Vietnã. O México se vê em uma situação muito complexa:
como se filiar sem despertar a ira do Hegêmona.
E mais um candidato
entrou na lista: o Iêmen, que conta com forte apoio da Rússia, China e
Irã.
Cabe ao principal
sherpa russo nos BRICS, o imensamente capaz Vice-Chanceler Sergey Ryabkov,
esclarecer o que temos pela frente. Ele declarou à TASS: "Temos
que oferecer aos países interessados em se aproximar dos BRICS uma plataforma
que os capacite a trabalhar sem se sentirem deixados para trás na prática e
consigam acompanhar nosso ritmo de cooperação. E quanto a decisões sobre a
futura expansão, elas serão adiadas pelo menos até que as lideranças se reúnam
em Kazan com esse objetivo".
A decisão final quanto
à expansão dos BRICS+ só virá da cúpula de Kazan, a ser realizada em outubro
próximo. Ryabkov ressalta que a ordem do dia é, em primeiro lugar, integrar
aqueles que acabam de se filiar". O que significa que, "como dez",
funcionaremos de forma tão eficiente, ou melhor, ainda mais eficiente que como
os "cinco iniciais".
Só então os BRICS-10
"desenvolverão a categoria de estados parceiros", o que na verdade
significa criar uma lista consensual a partir das dezenas de países que estão
literalmente ansiosos para ingressar no clube.
Ryabkov sempre faz
questão de observar, tanto em público quanto em privado, que o fato de os
membros dos BRICS terem dobrado de número a partir de 1º de janeiro de 2024, é
"um acontecimento sem precedentes em qualquer estrutura
internacional".
Não é uma tarefa
fácil, diz Ryabkov:
"No ano
passado, demoramos um ano inteiro para desenvolver critérios de admissão e
expansão no nível do primeiro escalão. Muitas coisas razoáveis foram
desenvolvidas. E muitas das coisas formuladas àquela época se refletiram na
lista de países que vieram a se filiar. Mas, muito provavelmente, seria
inconveniente formalizar as exigências. Ao final das contas, a admissão à
associação é objeto de decisão política".
·
O que acontece depois
das eleições presidenciais russas
Em uma reunião privada
com uns poucos indivíduos escolhidos a dedo, realizada nos bastidores da
recente conferência multipolar em
Moscou, o Chanceler Sergei Lavrov falou efusivamente dos BRICS, dando especial
ênfase a seus colegas Wang Yi, da China, e S. Jaishankar, da Índia.
Lavrov tem grandes
expectativas para os BRICS-10 neste ano – ao mesmo tempo em que lembrava a
todos que ainda se trata de um clube, mas que, futuramente, a organização terá
que se aprofundar em termos institucionais, por exemplo, com a indicação de uma
secretaria-geral, nos moldes de sua prima, a Organização de Cooperação de
Xangai (OCX).
A presidência russa se
verá assoberbada de tarefas nos próximos meses, tendo que navegar não apenas o
espectro geopolítico das atuais crises mas, principalmente, o aspecto
geoeconômico. Uma reunião crucial a ser realizada em junho – daqui a apenas
três meses – terá que propôr um roteiro detalhado até a cúpula de Kazan, que
ocorrerá quatro meses mais tarde.
O que acontecerá após
as eleições presidenciais russas também condicionará as políticas dos BRICS. Um
novo governo russo tomará posse em inícios de maio. Espera-se que não venha a
haver mudanças significativas no Ministério das Finanças, no Banco Central, no
Ministério das Relações Exteriores e entre os principais consultores do
Kremlin.
A continuidade será a
norma.
O que nos leva ao
principal dossiê geoeconômico: os BRICS na vanguarda da ultrapassagem do dólar
dos Estados Unidos nas finanças internacionais.
Na semana passada, um
consultor de primeiro escalão do Kremlin, Yury Ushakov, anunciou que os
BRICS irão estabelecer um sistema de pagamentos independente baseado nas
moedas digitais e no blockchain.
Ushakov ressaltou
especificamente "instrumentos estado-da-arte, tais como tecnologias
digitais e blockchain. O mais importante é fazer com que esse sistema seja
conveniente aos governos, às pessoas comuns, às empresas e também que tenha um
bom custo-benefício e seja despolitizado".
Ushakov não mencionou
explicitamente, mas um novo sistema alternativo já existe. No momento, ele é um
projeto cuidadosamente guardado na forma de um white paper detalhado,
que já recebeu validação econômica e incorpora também respostas a possíveis
perguntas colocadas com frequência. The Cradle recebeu
informações sobre o sistema por meio de diversas reuniões realizadas a partir
do ano passado com um pequeno grupo de especialistas em tecnologia de finanças
de nível mundial. O sistema já foi apresentado ao próprio Ushakov. No
presente momento, ele está em vias de receber sinal verde do governo russo.
Após passar por uma série de testes, o sistema, em tese, estaria pronto para
ser apresentado aos membros dos BRICS-10 antes da cúpula de Kazan.
Tudo isso se conecta
com o fato de Ushakov ter declarado publicamente que uma das tarefas
específicas para 2024 é a de aumentar o papel dos BRICS no sistema
monetário/financeiro internacional.
Ushakov lembra que, na
Declaração de Joanesburgo de 2023, os chefes de estados dos países-membros
focaram o aumento dos pagamentos em moedas nacionais e o fortalecimento das
redes bancárias correspondentes. A meta era "continuar a desenvolver o
Acordo de Reservas Contingentes, primeiramente no que se refere ao uso de
moedas que não o dólar dos Estados Unidos".
·
Nenhuma moeda única em
um futuro previsível
Tudo o que foi dito
acima se enquadra na questão absolutamente central atualmente sendo discutida
em Moscou dentro da parceria Rússia-China, e em futuro próximo, e com maior
profundidade, também entre os BRICS-10: pagamentos de liquidação alternativos
ao dólar dos Estados Unidos, aumento no comércio entre "nações
amigas" e controles sobre a fuga de capitais.
Ryabkov acrescentou ao debate outros elementos cruciais, afirmando esta semana
que os BRICS não estão debatendo a implementação de uma moeda única:
"Quanto a uma moeda única semelhante à criada pela União Europeia, isso
dificilmente será possível em um futuro previsível. Se estamos falando de
formas de pagamentos mútuos, tais como o ECU [Unidade de Moeda Europeia] usado
nos primeiros estágios do desenvolvimento da União Europeia para suprir a
ausência de um meio real de pagamento, oferecendo a oportunidade de usar com
maior eficácia os recursos disponíveis dos países em acordos mútuos para
evitar perdas devidas à diferentes taxas de câmbio etc., então esse é
precisamente o caminho que, em minha opinião, os BRICS deveriam tomar. Isso vem
sendo examinado".
A principal conclusão,
segundo Ryabkov, é que os BRICS não devem criar uma união financeira e
monetária, eles devem criar um sistema de pagamentos e amortizações que não
dependa da pouco confiável "ordem internacional baseada em
regras".
Essa é exatamente a
ênfase das ideias e experimentos já desenvolvidos pelo Ministro da Integração e
Macroeconomia na União Econômica Eurasiana (UEEA), Sergei Glazyev, que ele explicou, em uma
entrevista exclusiva, e também do projeto pioneiro em vias de ser aprovado pelo
governo russo.
Ryabkov confirmou que
"um grupo de especialistas liderado pelos Ministérios das Finanças e
representantes dos respectivos Bancos Centrais respectivos [países dos
BRICS]" vem trabalhando incessantemente nesse dossiê. Além do mais, há
"consultas em outros formatos, e também com a participação de
representantes do "ocidente histórico".
As conclusões do
próprio Ryabkov refletem aquilo que os BRICS como um todo têm como meta:
"Coletivamente,
temos que apresentar um produto que seja, por um lado, bastante ambicioso
(porque é impossível continuar a tolerar os ditames do Ocidente nessa área),
mas ao mesmo tempo realista e com os pés no chão. Ou seja, um produto
eficiente. E tudo isso deverá ser apresentado em Kazan para ser examinado pelas
lideranças".
Resumindo: o grande
avanço talvez esteja literalmente batendo às portas dos BRICS. Tudo depende de
um simples sinal verde do governo russo.
Compare-se agora os
BRICS desenhando os contornos de um novo paradigma geoeconômico com o ocidente
coletivo planejando o roubo dos ativos russos sequestrados para beneficiar o
buraco negro que é a Ucrânia.
Além de ser uma
declaração de fato dos Estados Unidos e da União Europeia contra a Rússia, essa
medida traz em si o potencial de esmagar por completo o atual sistema
financeiro global.
O roubo dos ativos
russos, caso venha a acontecer, irá no mínimo enfurecer pelo menos dois
importantes membros dos BRICS, a China e a Arábia Saudita, países de
considerável peso econômico. Uma medida como essa, caso implementada pelo
Ocidente, destruirá por completo o conceito de estado de direito, que, em tese,
embasa todo o sistema financeiro global.
A resposta russa será
feroz. O Banco Central russo poderá, de imediato, processar e confiscar os bens
da Euroclear belga, um dos maiores sistemas de liquidação e compensação, em
cuja conta as reservas russas estavam congeladas.
E, além disso, o
sequestro dos ativos da Euroclear na Rússia, que totalizam por volta de 33
bilhões de euros. Se a Euroclear for descapitalizada, o Banco Central Belga
terá que revogar sua licença, provocando uma maciça crise financeira.
Esse é o choque
de paradigmas: a roubalheira ocidental versus comércio equitativo e um sistema
de pagamentos e amortizações com base no Sul Global.
Putin: um amálgama de diferentes eras
Após o resultado das
últimas eleições na Rússia, o mundo mais uma vez testemunhou o inabalado apoio
da população do país ao presidente Vladimir Putin. Seguindo agora para o quinto
mandato como chefe de Estado, Putin foi o principal responsável pelo resgate do
prestígio de Moscou nas relações internacionais.
É possível dizer que
desde que Putin chegou ao poder pela primeira vez em 2000, a Rússia se
apresentou como uma verdadeira "amálgama de diferentes eras",
resgatando alguns elementos importantes de seu passado. Ora, existe um ponto em
que a experiência dos Estados pode realmente ser comparável à experiência de um
indivíduo, e isso se dá no modo como ambos interpretam e utilizam o seu passado
como forma de moldar atitudes e identidades no presente. De seu passado, a
Rússia extraiu lições fundamentais, a fim de lidar com a complexa realidade
internacional multipolar de nossos tempos.
Não somente isso. Com
Putin à frente do poder, as impressões de um país abatido, pobre e enfraquecido
pelas transformações econômicas e sociais dos anos 1990 deram lugar a novos
movimentos de consciência e de renovação dentro da Rússia, incluindo uma verdadeira
redefinição de sua identidade nacional. No mais, a era Putin demonstrou não
somente a importância do papel do indivíduo para as grandes transformações
históricas, como também a importância do resgate de elementos do passado como
norteador do desenvolvimento social. A Rússia de Putin, assim como no período
soviético, tornou-se um país que não mais aceitava uma posição subordinada no
sistema internacional e que brigaria por afirmar sua posição de "Grande
Potência" no sistema, papel que desempenhou desde o período czarista de
sua história.
No começo de seu
primeiro mandato em 2000, ao lidar de forma dura e eficiente com as tendências
separatistas existentes no país e se aproveitando de condições econômicas
favoráveis, Putin foi capaz de manter a integridade territorial da Rússia e de
devolver a dignidade à sua população. Ao final de seu segundo mandato, Putin
então começou a subir o tom em seus discursos internacionais contra as
injustiças da hegemonia americana, defendendo a consolidação de um mundo
"multipolar" mais justo e livre dos ditames de Washington. Já a
partir de 2012 — no início de seu terceiro mandato —, Putin começou a acentuar
as diferenças culturais, políticas e civilizacionais entre a Rússia e o
Ocidente, apregoando o respeito às múltiplas tradições nacionais e religiosas
existentes no mundo. Não à toa, a Rússia de Putin demonstrou maior sinergia
entre o Estado e a Igreja Ortodoxa, um dos pilares da civilização russa desde
os primórdios de sua formação.
Nos Estados Unidos,
por outro lado, a Rússia novamente figurava como uma ameaça aos valores e aos
interesses americanos, com acusações de que o "regime autoritário de
Putin" representava um obstáculo à expansão das chamadas "democracias
liberais" à guisa do modelo ocidental pretensamente universalizante.
Levantava-se então aquela velha dicotomia típica da Guerra Fria, que serve
apenas para angariar o suporte das audiências ocidentais para projetos como a
expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para o leste, uma
clara demonstração da continuada política de contenção ao poderio russo. Não
agrada aos formuladores de políticas, seja na Europa, seja nos Estados Unidos,
que a Rússia se consolide como "Estado forte", lastreado por seu
poderio militar e por suas enormes potencialidades humanas e de recursos
naturais.
Ao mesmo tempo, ao
longo dos anos 2000, a figura de Putin no exterior passou a ser identificada
com a da própria Rússia, com ambos passando a ser cada vez mais reconhecidos e
respeitados no cenário internacional, apesar das frequentes campanhas de propaganda
do Ocidente no sentido de manchar a imagem do presidente russo. Sem atentar
para essas campanhas de difamação, a era Putin se caracterizou pela defesa da
Rússia de seus interesses nacionais e regionais de segurança, à guisa do
período soviético e imperial. Ora, tanto para Putin como para a população
russa, o processo de expansão da OTAN para o leste no contexto do pós-Guerra
Fria constituiu uma ameaça grave à segurança do país e uma provocação dirigida
a minar a influência de Moscou no espaço pós-soviético. Afinal, precisamos
lembrar que a Rússia historicamente sofreu com invasões a partir do Ocidente e,
portanto, não poderia olhar com indiferença os movimentos da OTAN em direção a
suas fronteiras. Como consequência — em parte — dessa interpretação, foi que
Moscou empreendeu sua operação militar especial na Ucrânia em 2022.
Diante desse contexto,
o quinto mandato de Putin começa justamente com as tropas russas defendendo os
novos territórios do país e com o fracasso dos esforços ocidentais de tentar
derrotar a Rússia no campo de batalha. Por certo, de muito tempo que o conflito
no Leste Europeu tem sido não entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim de todo o
Ocidente coletivo contra os russos, seja por ações militares, seja pelas
sanções. Ilusoriamente, no entanto, os Estados Unidos e a União Europeia
continuam a prometer a suas populações que o fornecimento de armas,
equipamentos e apoio financeiro à Ucrânia se justifica pela necessidade de
deter a Rússia a todo o custo. Caso contrário, Moscou poderia avançar pelo
continente. Trata-se de uma completa loucura, usada pelos líderes europeus e
americanos apenas para disfarçar sua miopia política e esconder do público o
fracasso de seu projeto geopolítico de derrubar a Rússia.
Seja como for, ao
iniciar o quinto mandato como presidente do país, Putin e sua administração se
mostraram capazes de resistir à chantagem ocidental, do mesmo modo como a
Rússia e sua população conseguiram resistir às sanções econômicas. Para os anos
seguintes, independentemente de qualquer torcida em contrário, as ações da
Rússia tanto no âmbito doméstico como externo continuarão a definir os
contornos da geopolítica internacional. Em suma, assim como em séculos
passados, com Putin novamente à frente da presidência — dessa vez até 2030 —, a
Rússia persistirá exercendo um papel de relevância no cenário mundial. Para
além disso, esse país, que se tornou uma verdadeira "amálgama de
diferentes eras", certamente extrairá quaisquer lições que forem
necessárias para a construção das bases de um futuro justo e digno.
Fonte: Tradução de
Patricia Zimbres, para Brasil 247/Sputnik Brasil
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