O balcão da depressão
Psicóloga investiga
como doença foi tratada, nas últimas décadas, pelo mercado, pela ciência, pela
mídia e pela população em geral
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A hipótese de que um
eventual desequilíbrio na concentração de neurotransmissores (como a serotonina
e a dopamina) no cérebro provoca casos de depressão conta com bastante
popularidade – inclusive entre cientistas e profissionais da saúde. Essa noção
também norteia o desenvolvimento dos antidepressivos mais vendidos do planeta
desde os anos 1970. No entanto, não há, até hoje, comprovação científica
suficiente sobre a validade dessa teoria, afirma a psicanalista e psicóloga
Cláudia Antonelli, que investigou a literatura dedicada ao chamado “mal do
século” em sua pesquisa de doutoramento, desenvolvida na Faculdade de Ciências
Médicas (FCM) da Unicamp. Segundo Antonelli, trata-se de uma hipótese não
comprovada responsável, há cinco décadas, por impedir o avanço dos estudos
sobre uma doença, que, em sete anos, deve se tornar a mais comum do planeta,
conforme anunciou a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Na tese “A depressão:
hipótese causal e desenvolvimentos de um fenômeno mul- tidimensional”, a
pesquisadora não se limita a questionar essa crença. A psicanalista analisa
também a inserção de seu objeto de estudo em uma cultura marcada pela
medicalização e sua relação com um fenômeno mais recente – a
farmaceuticalização da sociedade. Para tanto, examina o papel dos diferentes
atores envolvidos nesse cenário: cientistas, psiquiatras, médicos de outras
especialidades, a indústria farmacêutica e o próprio consumidor.
A pesquisa foi
orientada por dois professores de áreas distintas, o farmacologista João
Ernesto de Carvalho, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Unicamp, e
o psiquiatra Mário Eduardo Costa Pereira, da própria FCM. Na opinião da
psicanalista, a relevância do trabalho estaria justamente no diálogo
estabelecido entre esses vários setores da sociedade. “De certa forma, [o
estudo] desaloja um estado de coisas que está bastante petrificado.”
A partir de um
levantamento da literatura científica nacional e internacional sobre o uso de
psicotrópicos em pacientes diagnosticados com transtornos mentais desde 1952,
Antonelli identificou particularidades sobre a forma como, na segunda metade do
século 20 e nas primeiras décadas deste, a depressão foi interpretada pelo
mercado, pela ciência, pela mídia e pela população em geral. A pesquisadora
notou que a abordagem do tema sofreu uma transformação nos anos 1970. “Em 1964,
foram realizados testes in vitro com partes de células do sistema nervoso de
alguns animais, constatando-se que determinadas drogas inibiam a recaptação de
serotonina, aumentando sua concentração no cérebro, o que foi associado a uma
melhora no estado de ânimo. Esse foi um estudo muito inicial e pouco
significativo, que não teve desdobramentos mais tarde. Mas a hipótese pegou”,
explica Carvalho.
Essa pesquisa inicial
inspirou o desenvolvimento de toda uma classe de antidepressivos, os inibidores
seletivos da recaptação de serotonina (ISRS). Seu primeiro boom ocorreu nos
anos 1980, quando a fluoxetina — substância artificial sintetizada em la- boratório
e comercializada sob o nome de Prozac — chegou às farmácias, esclarece
Antonelli. Ainda que não se saiba exatamente como agem no cérebro, os ISRS são
a classe de antidepressivos mais vendida no Brasil e no resto do mundo até
hoje.
“Na época em que a
fluoxetina foi sintetizada, não se imaginava que havia serotonina fora do
cérebro. Hoje é comprovado que há uma grande quantidade dela no aparelho
digestivo, por exemplo. Se essa droga agisse como se esperava, daria muita
cólica e diarreia em quem toma porque haveria muita serotonina sobrando no
intestino. Esse é apenas um indício de que seu funcionamento não é bem assim.
Já quando se observam seus efeitos sobre a pressão arterial e outras partes do
cérebro, fica claro que a substân- cia age de outras formas e em outras partes
do corpo”, afirma Carvalho.
Para o professor da
FCF, o alto índice de efeito placebo relatado nos artigos analisados por
Antonelli evidencia outro problema sobre a ação do medicamento. Principalmente,
ressalta, quando se trata de casos de depressão leve. Na avaliação sobre a primeira
etapa de administração do novo antidepressivo, não se registrou grande
diferença entre o grupo de controle e o grupo de tratamento. “A empresa que fez
o Prozac teve de trabalhar muito, porque não era possível constatar diferença
estatística entre o grupo placebo e o da droga. Precisaram refazer os testes,
desta vez com um número bem maior de voluntários, para que fosse possível
alcançar uma diferença estatística”, relata Carvalho. “Na última publicação do
levantamento da situação psiquiátrica no país, feita pela Associação
Psiquiátrica Brasileira [APB], os números são débeis, nesse sentido. Em um dos
artigos publicados, afirma-se que a medicação psiquiátrica antidepressiva
funcionou em torno de 50%, 60% dos casos. É um número baixo. Já o número de
suicídios, que muitas vezes é decorrente de uma depressão grave, vem
aumentando”, disse Antonelli.
O lançamento do
Prozac, então apelidado de “pílula da felicidade”, envolveu uma campanha de
marketing agressiva, que fundamentou o discurso sobre a origem orgânica da
depressão e colaborou para a consolidação da, então embrionária, cultura da
medicalização. Em sua tese, a psicanalista descreve a medicalização como um
“processo que transforma os problemas humanos em problemas médicos e as
variações humanas – psicológicas, biológicas e comportamentais – em patologias
tratáveis no campo da medicina”.
Esse fenômeno
encontrou na sociedade ocidental dos anos 1980 um campo fértil para se
instalar, observa a pesquisadora. Segundo Antonelli, naquela época, os
parâmetros eram outros, havia uma certa banalização da questão e o Prozac
passou a ser o lenitivo para todos os problemas, incluindo os corriqueiros,
“Tudo passou a ser medicado e comercializado. Isso aparecia nas propagandas. O
Prozac era vendido sem retenção de receita. Começou ali a intensificação da
medicalização”, afirmou a autora da tese.
Um dos desdobramentos
desse processo, a farmaceuticalização, diz respeito à opção do tratamento pela
medicação, independentemente da condição, do sintoma ou da experiência de vida
do paciente. Mais uma vez, ressalta a psicanalista, a hipótese de que o desequilíbrio
neuroquímico seria responsável pela depressão encontraria um ambiente favorável
para se cristalizar. “Algumas pesquisas revelaram que, no Brasil, 80% das
prescrições não vêm de psiquiatras, mas de ginecologistas, endocrinologistas,
dentistas, profissionais que muitas vezes não possuem conhecimento suficiente
sobre as questões da saúde mental.”
Antonelli esclarece
que, ao elaborar a tese, não pretendeu discutir o uso de antidepressivos em
casos graves da doença, quando a medicação pode ser necessária para ajudar na
contenção de uma crise ou de uma dor psíquica extrema e incapacitante. Sua
ideia, esclarece, tampouco consistiu em fazer uma avaliação caso a caso, mas,
sim, em falar de uma cultura social. “De acordo com Robert Whitaker, um dos
autores que pesquisei, de todo o uso medicamentoso [psiquiátrico] atual,
somente em 2% dos casos a prescrição seria adequada. Nos outros 98%, seu
comércio seria excessivo”, revela. Sintoma da farmaceuticalização, essa
hipermedicação, de acordo com a pesquisadora, revela-se problemática porque
monopoliza e empobrece a solução das questões humanas.
“A saúde mental não
está indo melhor porque aumentaram a venda e o consumo de remédios. Se
estivesse, até se poderia pensar que esse seria um caminho viável. Mas não.
Trata-se justamente do contrário. Vemos uma espécie de empobrecimento dos
próprios recursos psíquicos, da capacidade das pessoas de trabalharem
emocionalmen- te suas questões”, analisa Antonelli. Nesse sentido, a
administração do antidepressivo estaria interrompendo o que poderia vir a ser a
aquisição, pelo indivíduo, de novos recursos, bloqueando assim seu
desenvolvimento. “Mundialmente, a gente vê um recrudescimento, um crescimento
da intolerância”, conclui.
Fonte: Por Mariana
Garcia, no Jornal da Unicamp
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