sexta-feira, 1 de março de 2024

O balcão da depressão

Psicóloga investiga como doença foi tratada, nas últimas décadas, pelo mercado, pela ciência, pela mídia e pela população em geral

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A hipótese de que um eventual desequilíbrio na concentração de neurotransmissores (como a serotonina e a dopamina) no cérebro provoca casos de depressão conta com bastante popularidade – inclusive entre cientistas e profissionais da saúde. Essa noção também norteia o desenvolvimento dos antidepressivos mais vendidos do planeta desde os anos 1970. No entanto, não há, até hoje, comprovação científica suficiente sobre a validade dessa teoria, afirma a psicanalista e psicóloga Cláudia Antonelli, que investigou a literatura dedicada ao chamado “mal do século” em sua pesquisa de doutoramento, desenvolvida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Segundo Antonelli, trata-se de uma hipótese não comprovada responsável, há cinco décadas, por impedir o avanço dos estudos sobre uma doença, que, em sete anos, deve se tornar a mais comum do planeta, conforme anunciou a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Na tese “A depressão: hipótese causal e desenvolvimentos de um fenômeno mul- tidimensional”, a pesquisadora não se limita a questionar essa crença. A psicanalista analisa também a inserção de seu objeto de estudo em uma cultura marcada pela medicalização e sua relação com um fenômeno mais recente – a farmaceuticalização da sociedade. Para tanto, examina o papel dos diferentes atores envolvidos nesse cenário: cientistas, psiquiatras, médicos de outras especialidades, a indústria farmacêutica e o próprio consumidor.

A pesquisa foi orientada por dois professores de áreas distintas, o farmacologista João Ernesto de Carvalho, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Unicamp, e o psiquiatra Mário Eduardo Costa Pereira, da própria FCM. Na opinião da psicanalista, a relevância do trabalho estaria justamente no diálogo estabelecido entre esses vários setores da sociedade. “De certa forma, [o estudo] desaloja um estado de coisas que está bastante petrificado.”

A partir de um levantamento da literatura científica nacional e internacional sobre o uso de psicotrópicos em pacientes diagnosticados com transtornos mentais desde 1952, Antonelli identificou particularidades sobre a forma como, na segunda metade do século 20 e nas primeiras décadas deste, a depressão foi interpretada pelo mercado, pela ciência, pela mídia e pela população em geral. A pesquisadora notou que a abordagem do tema sofreu uma transformação nos anos 1970. “Em 1964, foram realizados testes in vitro com partes de células do sistema nervoso de alguns animais, constatando-se que determinadas drogas inibiam a recaptação de serotonina, aumentando sua concentração no cérebro, o que foi associado a uma melhora no estado de ânimo. Esse foi um estudo muito inicial e pouco significativo, que não teve desdobramentos mais tarde. Mas a hipótese pegou”, explica Carvalho.

Essa pesquisa inicial inspirou o desenvolvimento de toda uma classe de antidepressivos, os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS). Seu primeiro boom ocorreu nos anos 1980, quando a fluoxetina — substância artificial sintetizada em la- boratório e comercializada sob o nome de Prozac — chegou às farmácias, esclarece Antonelli. Ainda que não se saiba exatamente como agem no cérebro, os ISRS são a classe de antidepressivos mais vendida no Brasil e no resto do mundo até hoje.

“Na época em que a fluoxetina foi sintetizada, não se imaginava que havia serotonina fora do cérebro. Hoje é comprovado que há uma grande quantidade dela no aparelho digestivo, por exemplo. Se essa droga agisse como se esperava, daria muita cólica e diarreia em quem toma porque haveria muita serotonina sobrando no intestino. Esse é apenas um indício de que seu funcionamento não é bem assim. Já quando se observam seus efeitos sobre a pressão arterial e outras partes do cérebro, fica claro que a substân- cia age de outras formas e em outras partes do corpo”, afirma Carvalho.

Para o professor da FCF, o alto índice de efeito placebo relatado nos artigos analisados por Antonelli evidencia outro problema sobre a ação do medicamento. Principalmente, ressalta, quando se trata de casos de depressão leve. Na avaliação sobre a primeira etapa de administração do novo antidepressivo, não se registrou grande diferença entre o grupo de controle e o grupo de tratamento. “A empresa que fez o Prozac teve de trabalhar muito, porque não era possível constatar diferença estatística entre o grupo placebo e o da droga. Precisaram refazer os testes, desta vez com um número bem maior de voluntários, para que fosse possível alcançar uma diferença estatística”, relata Carvalho. “Na última publicação do levantamento da situação psiquiátrica no país, feita pela Associação Psiquiátrica Brasileira [APB], os números são débeis, nesse sentido. Em um dos artigos publicados, afirma-se que a medicação psiquiátrica antidepressiva funcionou em torno de 50%, 60% dos casos. É um número baixo. Já o número de suicídios, que muitas vezes é decorrente de uma depressão grave, vem aumentando”, disse Antonelli.

O lançamento do Prozac, então apelidado de “pílula da felicidade”, envolveu uma campanha de marketing agressiva, que fundamentou o discurso sobre a origem orgânica da depressão e colaborou para a consolidação da, então embrionária, cultura da medicalização. Em sua tese, a psicanalista descreve a medicalização como um “processo que transforma os problemas humanos em problemas médicos e as variações humanas – psicológicas, biológicas e comportamentais – em patologias tratáveis no campo da medicina”.

Esse fenômeno encontrou na sociedade ocidental dos anos 1980 um campo fértil para se instalar, observa a pesquisadora. Segundo Antonelli, naquela época, os parâmetros eram outros, havia uma certa banalização da questão e o Prozac passou a ser o lenitivo para todos os problemas, incluindo os corriqueiros, “Tudo passou a ser medicado e comercializado. Isso aparecia nas propagandas. O Prozac era vendido sem retenção de receita. Começou ali a intensificação da medicalização”, afirmou a autora da tese.

Um dos desdobramentos desse processo, a farmaceuticalização, diz respeito à opção do tratamento pela medicação, independentemente da condição, do sintoma ou da experiência de vida do paciente. Mais uma vez, ressalta a psicanalista, a hipótese de que o desequilíbrio neuroquímico seria responsável pela depressão encontraria um ambiente favorável para se cristalizar. “Algumas pesquisas revelaram que, no Brasil, 80% das prescrições não vêm de psiquiatras, mas de ginecologistas, endocrinologistas, dentistas, profissionais que muitas vezes não possuem conhecimento suficiente sobre as questões da saúde mental.”

Antonelli esclarece que, ao elaborar a tese, não pretendeu discutir o uso de antidepressivos em casos graves da doença, quando a medicação pode ser necessária para ajudar na contenção de uma crise ou de uma dor psíquica extrema e incapacitante. Sua ideia, esclarece, tampouco consistiu em fazer uma avaliação caso a caso, mas, sim, em falar de uma cultura social. “De acordo com Robert Whitaker, um dos autores que pesquisei, de todo o uso medicamentoso [psiquiátrico] atual, somente em 2% dos casos a prescrição seria adequada. Nos outros 98%, seu comércio seria excessivo”, revela. Sintoma da farmaceuticalização, essa hipermedicação, de acordo com a pesquisadora, revela-se problemática porque monopoliza e empobrece a solução das questões humanas.

“A saúde mental não está indo melhor porque aumentaram a venda e o consumo de remédios. Se estivesse, até se poderia pensar que esse seria um caminho viável. Mas não. Trata-se justamente do contrário. Vemos uma espécie de empobrecimento dos próprios recursos psíquicos, da capacidade das pessoas de trabalharem emocionalmen- te suas questões”, analisa Antonelli. Nesse sentido, a administração do antidepressivo estaria interrompendo o que poderia vir a ser a aquisição, pelo indivíduo, de novos recursos, bloqueando assim seu desenvolvimento. “Mundialmente, a gente vê um recrudescimento, um crescimento da intolerância”, conclui. 

 

Fonte: Por Mariana Garcia, no Jornal da Unicamp

 

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