Gaza: o que virá depois de um cessar-fogo
provisório?
Passados cinco meses
de bombardeios maciços e operações militares terrestres de Israel, resultando
em mais de 30 mil mortes de palestinos, entre as quais 10 mil crianças, a Faixa
de Gaza tornou-se um campo de ruínas. Além da destruição de seis hospitais e 12
universidades, tudo o que dizia respeito à vida social foi arrasado: mesquitas,
tribunais, escolas, arquivo histórico, museus, centros culturais. A
infraestrutura civil de água, esgoto e eletricidade também foi aniquilada.
As ordens militares de
evacuação da população resultaram em deslocamento forçado do norte para o
centro, logo alvo de bombardeios, para o sul e, dali, para Rafah – agora também
sob ataque.
Todo esse quadro é
agravado por impedimentos, por parte dos israelenses, para a distribuição de
ajuda humanitária – apesar de uma das medidas provisórias impostas pela Corte
Internacional de Justiça (CIJ) ter obrigado Israel a facilitar o acesso do
apoio internacional à região.
O volume de ajuda
humanitária entrou em colapso em razão dos ataques de Israel a policiais –
suspeitos de serem militantes do Hamas – que vigiam os comboios. Nas últimas
semanas, 62 caminhões entraram em Gaza – bem abaixo dos 200 por dia que Israel
se comprometera a liberar, ainda que se estime que para atender às necessidades
básicas da população seriam necessários 500 veículos.
Há piquetes de civis
israelenses, compostos inclusive por mulheres e adolescentes, muitos deles com
machadinhas e cortadores de caixas, que atacam os comboios a pretexto “de
impedir que a ajuda vá para o Hamas”. O ministro da Segurança Nacional,
Ben-Gvir, indicou que a polícia não iria reprimir protestos bloqueando o acesso
dos caminhões.
Apesar das tentativas
de dissuasão por parte dos aliados ocidentais, o primeiro-ministro, Binyamin
Netanyahu, promete que Israel atacará Rafah depois de evacuar 1 milhão e meio
de refugiados. Mas qualquer ordem de evacuação nas presentes condições na região
– sem abrigo, comida, água e atendimento médico – provocaria sofrimentos cruéis
e seria uma flagrante violação do direito internacional humanitário e dos
direitos humanos.
Os aliados ocidentais
de Israel, diante desse quadro humanitário horrífico, reafirmam mais uma vez o
direito de defesa do país de atacar o Hamas, ainda que essa defesa tenha se
constituído na retaliação contra a população civil em Gaza. Imersos numa enorme
contradição, esses países começaram a cobrar de Israel a proteção aos civis
palestinos, a entrada da ajuda humanitária e, ainda, a proposta de um
cessar-fogo de seis semanas. Dessa forma, iniciaram o lançamento de ajuda
fundamental básica por aviões, como também anunciaram uma rota marítima com a
construção de um píer flutuante, permitindo assegurar o fornecimento regular.
Calcula-se, porém, que esse porto deverá levar dois meses para ser construído.
Depois de serem
vetadas no Conselho de Segurança da ONU todas as resoluções impondo um
cessar-fogo (inclusive as do Brasil), os aliados de Israel negociam com os
países árabes, que têm acesso ao Hamas, um cessar-fogo de seis semanas – sem
muito sucesso até este começo do Ramadã.
A pergunta obrigatória
é: o que vai acontecer caso se realize esse cessar-fogo provisório de seis
semanas? Israel vai bombardear Raffah? Continuará a desrespeitar as medidas
provisórias ditadas pela Corte Internacional de Justiça, não protegendo os
palestinos de Gaza de atos de genocídio, como o deslocamento forçado da
população, a privação do acesso à comida e água e a obstrução de ajuda
humanitária, incluindo combustíveis, abrigo, roupas e higiene? E quanto à
destruição da vida dos palestinos em Gaza?
Não há nada mais
macabro e cruel que uma pausa de atos de genocídio com prazo marcado de antemão
para sua continuidade. Todos os Estados-membros da ONU que respeitam o direito
internacional, incluindo o Brasil, devem tomar medidas para que esse cessar-fogo
seja permanente. Nenhum crime pode ser interrompido com data marcada para sua
continuidade.
Ø
A guerra de Israel contra a população de
Gaza. Por Tadeu Valadares
A guerra contra a
massacrada população de Gaza pode durar bem mais do que possamos imaginar. Mas
apesar dessa extensão indeterminada no tempo, trata-se de guerra israelense de
antemão perdida em decorrência direta do que foi decidido pelo governo Benjamin
Netanyahu no dia 7 de outubro. O imediato recurso à violência punitiva
caracterizada por brutal desproporcionalidade marcou a reação israelense à
surpreendente incursão armada das forças anticoloniais que operam a partir de
Gaza. Por isso mesmo, em pouco tempo os desdobramentos da operação sem limites
minaram o apoio de início prestado a Israel pela maior parte da opinião pública
ocidental.
Com o passar dos dias,
e apesar de todos os esforços das autoridades governamentais por justificar o
injustificável, Israel está sendo vencido, sobretudo quando se observa o vetor
que vem caracterizando a cambiante opinião pública mundial. Com rapidez e intensidade
inesperadas, juntaram-se às logicamente esperáveis reações condenatórias dos
países islâmicos em geral, e do mundo árabe em particular, a maioria dos
estados e importantes frações das sociedades integrantes do Sul Global.
Completando o quadro
adverso para os sionistas, a opinião pública do mundo ocidental se bipartiu: os
setores opostos à bárbara campanha militar das forças israelenses de fato
passaram a crescer significativamente tanto no Reino Unido quanto na Europa continental,
tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá. E o que a opinião pública e os
movimentos sociais sinalizam com fundada paixão crítica, em certa medida se
traduz, com outra linguagem, nos âmbitos político e diplomático, em especial
nos grandes foros multilaterais de Nova Iorque e Genebra, cerne do sistema ONU.
A despeito dessa
virada, não há sequer registro – além das propaladas boas intenções do governo
Joe Biden – de que estejam sendo pensadas medidas capazes de forçar Israel a
aceitar um cessar-fogo que, para ser sustentável, não ardil momentâneo, teria
de vir acoplado a um retraimento, tático que seja, das forças israelenses na
Faixa de Gaza. Tal mudança de perspectiva no limite demandaria crucial revisão
de posições das duas partes em confrontação direta, algo que resultasse em
dinâmica potencialmente encaminhadora de alguma solução, ao menos teoricamente
perdurável, para o conflito armado que já vitimou, entre mortos, feridos e
desaparecidos, mais de 110 mil pessoas, em sua maioria mulheres, crianças,
idosos e jovens. Em sua maioria, quase totalidade, civis não combatentes.
Superação do estado de
guerra declarado por Israel contra a população de Gaza é, por óbvio, algo
completamente distinto de uma pausa maior ou menor das operações militares em
que há cinco meses se empenham a potência ocupante e as forças insurgentes. Isso,
entretanto, não tem como se delinear enquanto não surgirem – em particular nos
EUA, mas também nos países que conformam a União Europeia e, junto com os EUA,
integram a OTAN – pressões gigantescas e constantes das ruas mobilizadas, o
Vietnã, não Georgia, ‘on my mind’.
Tal processo de
mobilização popular já deu mostras de sua força, mas nem de longe logrou
alcançar qualquer de seus objetivos, todos voltados para a obtenção de paz
duradoura. Algo essencial para a compreensão desse quadro difuso: enquanto, em
cada um dos países do chamado mundo do Atlântico Norte, significativa maioria
das respectivas sociedades não tiver como infletir decisivamente as atuais
diretrizes de seus governos, e também, mesmo que por simples derivação, as
posições do duo OTAN-União Europeia, permanecerá praticamente impossível
interromper, com ânimo definitivo, o massacre da população palestina de Gaza.
Certo, a Corte
Internacional de Justiça, alguns anos mais, muito provavelmente confirmará o
que para ela e por enquanto se restringe à esfera da plausibilidade. À luz
dessa realidade jurídica factual, uma interrogação surge, incontornável: quem
pode, em Gaza, sobreviver a esse tempo de caráter jurídico que se conta em
anos, ele tão distante do tempo humanitário em seu caráter de urgência
absoluta? Enquanto a Corte toma seu tempo para decidir se a queixa levantada
pela África do Sul é real, mais do que plausível, o genocídio continuará
operacionalmente livre.
Tal como continuará a
ocupar o espaço da grande mídia a cobertura enviesada da guerra como esmerado
espetáculo, coisa tão ao gosto das nossas sociedades, todas elas, penso em Guy
Debord, viciadas no espetáculo imobilizador que no cotidiano absorve – quando
não absolve – o mal escancarado em Gaza. Amplo exercício, movimento
perpetuamente voltado para sua banalização.
Preso no círculo
elaborado cem anos atrás por Vladimir Jabotinsky – a metáfora do muro de ferro
–, o sionismo revisionista afinal chegou ao poder em 1977com Menachem Begin. Ou
seja, 54 anos de elaborada a ideia do muro mineral. Sionismo ostensivamente revisionista,
esse, que continua a predominar com Benjamin Netanyahu, sua mais recente
expressão. Sionismo que no essencial não se distingue da outra linha, a
estabelecida pelo irmão inimigo Ben Gurion, porque ambas variantes descartam
com absoluta franqueza qualquer hipótese de superação da questão palestina fora
a impossível subjugação permanente do povo palestino em Gaza, em Jerusalém
Oriental, na inteira Cisjordânia ocupada e – como cidadãos e cidadãs de segunda
classe – dos árabes que vivem no interior de Israel pré-1967.
Noutras palavras, o
atual governo de união nacional não tem como, por decisão interna, autônoma,
sustar o que afinal se manifesta como longa crise de caráter estrutural. Crise
de esgotamento de uma época, não de um simples momento. Crise que carrega consigo,
com disfarces cada vez mais diáfanos, uma evidente decadência política, uma
notória desolação moral, a total incoerência ética e a ostensiva fragilidade
institucional.
Dito de outra forma:
Israel está condenado a se manter como fortaleza murada a um só tempo
inexpugnável e expansionista, sitiante e sitiada, militarmente forte mas com
psicologia de massa cada vez mais frágil. Em última análise, o muro proposto
por Vladimir Jabotinsky já não consegue, em seu avatar atual, nem mesmo
parcialmente cumprir a função originária.
Tomada a decisão
governamental de manter sob seu jugo ou, variante do mesmo, de incorporar os
territórios ocupados em 1967, o estado sionista vem desde então conformando o
Grande Israel cujo mapa Benjamin Netanyahu apresentou à ONU, meses atrás, sob o
esclarecedor título de “O Novo Oriente Médio’. Nele, inexiste a Palestina.
Evidente que o mapa só pode cobrar realidade com emprego maciço de expandida
violência militar, aumentada expulsão de população nativa, limpeza étnica
recorrente e, agora, para espanto de todos, a comissão do pior dos crimes, o
genocídio.
Genocídio, esse, que é
plausível para o jurista, mas evidente para quem jurista não seja. O longo
processo que se inicia com a Nakba é a moldura e a tela que
contextualizam e permitem entender a um só tempo a questão palestina e o seu
correlato, o impasse, o mundo velho sem porteira a que se refere um dos
personagens de O Tempo e o Vento, mundo israelense infenso aos
sinais emitidos pela ‘realidade exterior’, a velha Wirklichkeit.
Esse o mundo em que vivem o estado e a sociedade israelenses. O estado de situação
é mesmo esse. Estado que se origina num passado longínquo que define o presente
e hipoteca o futuro de Israel judeu e democrático, meridiana contradição em
termos.
Daí que no curto pra
médio prazo, em matéria de encaminhamento que não seja falso movimento, a
questão palestina continua em quase tudo dependente de os Estados Unidos se
disporem a deixar de lado seu papel de cúmplice-mor no (plausível) massacre
genocida da população de Gaza. Para isso, numa lógica impecavelmente idealista
e débil, o governo de Washington teria de agir de completo acordo com os
valores liberais democráticos que proclama encarnar, coisa algo distante da
ordem sistema internacional baseada em regras, ela própria enfrentando a
problemática transição de hegemonia que se desenha há algum tempo. Isso não
está nas cartas. Nem mesmo nas cartas que formam o epistolário idealista, diria
Fradique Mendes.
O que nessas cartas,
sim, está mais do que evidente: aquilo que Benjamin Netanyahu sinaliza a cada
vez que rechaça as propostas quase etéreas de Joe Biden. A resposta americana
às sucessivas desfeitas israelenses é uma lição de abismo realista. Até agora,
os EUA se limitaram a censurar e punir Israel na figura de alguns colonos ou
pouco mais do que isso. Ou seja, recorrendo a formas de pressão tão periféricas
quanto ineficazes. De quebra, somos informados de que algumas expressões de
baixo calão vêm sendo frequentemente empregadas. O mundo gira e a Lusitana
roda. Segundo alguns historiadores, Franklin Delano Roosevelt teria dito
reiteradas vezes que “Somoza pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da
puta…”.
Em meio à produção da
segunda Nakba como tragédia e catástrofe mais do que
exaustivamente anunciadas, algo é certo quando se analisa a dinâmica da
agressão mais recente contra a população de Gaza: o povo palestino sobreviverá
a esta quinta guerra, por diminuído que resulte em termos demográficos
imediatos, por terrivelmente traumatizados que venham a ficar os que sobrevivam
aos massacres.
Tenho para mim que o
povo palestino como um todo se tornará mais resiliente ainda, mais determinado
a resistir e mais capaz de assim proceder. Fundo meu raciocínio numa forma de
pensar: confiro peso determinante ao tempo geracional, o da história de longa
duração. Isso é tanto mais válido, creio, quando o imediato é sinônimo de
desolação cotidiana. Daí minha certeza de que os palestinos – com sua aumentada
vontade – continuarão a fazer frente ao persistente desafio que lhes foi
imposto pelo colonialismo em suas duas faces sucessivas: a britânica,
inaugurada por Balfour em 1917, tipicamente imperialista-colonial; e a
israelense, a do sionismo fundado no colonialismo aparteísta de povoamento tal
como pensado por Ilan Pappe.
Ironia da história:
isso também foi pensado, mas como via redentora do povo judeu, por personagens
historicamente decisivos, de Ben Gurion e Golda Meir a Benjamin Netanyahu,
passando por Jabotinsky, Shamir, Begin, Sharon, Netanyahu e outros elos
intermediários.
Porque vejo assim,
creio que a vitória palestina nessa guerra de libertação nacional não tem como
ser imediata, nem alcançável no médio prazo. Arrisco especular: a vitória,
qualquer que venha a ser seu formato, que hoje é impossível estabelecer, só
emergirá com força decisiva em uma geração ou duas mais. Esse, o tempo outro, o
tempo do inevitável.
Não esquecer o que
Rashid Khalid aponta com precisão em sua análise dessa guerra de cem anos: a
luta armada palestina não começou em 1947/1948. Tem seu primeiro e terrível
momento na grande revolta árabe da década de 30 do século passado, cuja
repressão vitimou cerca de 10% da população nativa então submetida a duplo
jugo, o britânico, derivado do Mandato obtido na Liga das Nações em 1922, e o
das milícias sionistas já então bastante bem organizadas, atuando em estreita
aliança com as forças britânicas. O levante maciço foi precedido do que talvez
possa ser entendido como escaramuças preliminares: os reiterados pequenos
choques que, antecedendo a grande rebelião, eclodiram a partir do momento em
que ficou claro para o povo autóctone que o projeto sionista se centrava em
criar na Palestina histórica um estado cujas fronteiras até hoje não foram
estabelecidas.
Sim, contrario os
votos do meu coração. Sim, vejo-me forçado a me ater ao curso real do mundo.
Para mim, o momento histórico da vitória palestina em sua luta pela
autodeterminação continua escondido além da linha do horizonte, mas seu clarão
já é perceptível. Enquanto esse desenlace – cuja forma ninguém pode prever nem
sequer de maneira aproximada- não se concretizar, o atual equilíbrio
catastrófico persistirá.
Também persistirá o
essencial, clara certeza minha: quando se torna de todo impossível derrotar ou
exterminar um povo, seu profundo sofrimento é o maior sinal de que a vitória
está a caminho.
Fonte: Por Paulo
Sérgio Pinheiro, em A Terra é Redonda
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