Estrangeiros controlam no Brasil área
equivalente a um Alagoas inteiro
Dados inéditos do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) revelam que pelo
menos 2,7 milhões de hectares do solo nacional estão oficialmente registrados
em nome de pessoas ou empresas estrangeiras. Ou seja, uma área do Brasil
equivalente ao estado de Alagoas inteiro está sob controle de grupos do
exterior, segundo o governo federal.
O recente levantamento
do Incra contradiz uma das principais narrativas da extrema direita – a que
sugere a tomada da maior floresta tropical do mundo por grupos do exterior. Dos
cinco estados com mais terras sob controle estrangeiro no Brasil, apenas um,
Mato Grosso, tem uma porção da Amazônia Legal. Os dez estados com mais terras
registradas por pessoas e empresas do exterior respondem por 80% do total
dessas terras e têm forte influência do agronegócio, garimpo e mineração em
larga escala.
<<< Por que
isso importa?
• Investimentos internacionais em terras
por vezes têm agravado conflitos agrários e inflacionado o mercado fundiário
• Especialistas indicam que falta de
fiscalização camufla realidade de área bem maior sob posse de estrangeiros
As informações foram
extraídas do Sistema Nacional de Cadastro Rural no último dia 30 de janeiro. O
órgão excluiu dados desatualizados de imóveis com áreas inconsistentes ou
iguais a zero e de detentores de terras com CPF inválido, que constem na base
de dados da Receita Federal como brasileiros ou sem nacionalidade informada. No
caso de empresas, apenas imóveis com áreas inconsistentes ou iguais a zero
foram excluídos.
Desde a crise
financeira de 2007 o mercado global de terras está superaquecido, atraindo
multinacionais e grandes investidores do setor financeiro em busca de grandes
áreas em países em desenvolvimento, como o Brasil. Na prática, esse cenário
agrava os conflitos agrários e aumenta os preços das terras, estimulando
grilagens e incentivando o desmatamento de áreas nativas para a abertura de
novas fazendas – como a Agência Pública tem denunciado há anos.
Para especialistas
ouvidos pela Pública, não é exagero dizer que o total de terras sob controle
estrangeiro no Brasil seja maior do que os 2,7 milhões de hectares já
identificados pelo Incra.
“Acredito que este
valor está subestimado por questões de ordem técnica, como incongruências no
cadastro das informações nos sistemas fundiários do governo, e pelo fato do
Incra lidar com a ideia de propriedade estrangeira segundo a legislação atual –
que nem sempre inclui companhias registradas no Brasil, mas controladas, direta
ou indiretamente, por sócios no exterior”, disse Sérgio Pereira Leite,
professor titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ).
Com base em dados
oficiais, o grupo de pesquisa da UFRRJ produziu um levantamento preliminar,
apresentado em setembro de 2023, indicando que empresas controlariam pelo menos
9,1 milhões de hectares do território brasileiro até 2021 – área maior que a
dos estados de Espírito Santo e Rio de Janeiro somados.
“Considerando nossas
pesquisas, eu diria que os dados [do Incra] estão ‘tímidos’, porque o controle
sobre terras pode ser direto – com títulos de propriedade e escrituras –, mas
também indireto, por meio de empresas nacionais de fachada, controladas por fundos
imobiliários, holdings e sócios estrangeiros que definem o rumo dos
investimentos e o uso dessas terras. Identificamos pelo menos 245 empresas
controladas direta ou indiretamente por sócios estrangeiros – e 42 delas estão
focadas especificamente no plantio e comércio de soja”, disse o professor.
Não há dados
consolidados a dispor do Incra sobre companhias sediadas no Brasil, mas
controladas por sócios estrangeiros. Por isso, não há estimativa oficial das
terras registradas em nome de empresas desse tipo.
“Há pontos de
similaridade entre nossos dados e os do Incra, apontando para a soja no país,
como no oeste da Bahia, em Goiás e Mato Grosso. Em São Paulo, temos o setor
canavieiro e, em Minas Gerais, há regiões visadas por mineradoras, além de
regiões do país na mira de companhias de energia renovável – que dependem de
muitas terras para implantação de parques eólicos, por exemplo”, avaliou Sérgio
Leite.
• Apurações sobre aquisições se arrastam
há oito anos
Se existem fazendas
registradas por empresas sediadas no Brasil controladas por sócios no exterior,
elas podem ser consideradas terras sob o domínio de estrangeiros pelo governo.
Atualmente, o Incra investiga casos desse tipo – que, se confirmados, podem até
resultar no cancelamento dos registros, com retorno dos títulos de terra aos
antigos proprietários.
Segundo apurado pela
Pública, o Incra tem cinco processos abertos para apurar supostas compras
ilegais do tipo. Todos os processos foram instaurados entre maio e julho de
2016, mesma época do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT).
Um dos casos sem
desfecho foi revelado pela Pública ainda em 2021: as rumorosas compras da
Brasilagro, que vende suas ações em bolsas de valores no Brasil e nos Estados
Unidos. A principal acionista da empresa é a ruralista argentina Cresud, e
diversos fundos de aposentadoria dos EUA são sócios com poder de voto nas
assembleias gerais.
A Brasilagro tem
negócios milionários no chamado Matopiba, com estimativa de controle sobre uma
área de mais de 300 mil hectares de terras – até 2016, ano de abertura do caso
no Incra. À época, a empresa alegou à Pública que era “uma empresa brasileira com
ações listadas no segmento do Novo Mercado da B3”, e “que todas as operações e
transações realizadas pela companhia estão em regularidade com a legislação
aplicável”.
• Indefinição jurídica
Os processos do Incra
apuram compras realizadas após agosto de 2010, em especial operações envolvendo
empresas sediadas no país, mas supostamente controladas por sócios do exterior
– sendo, assim, equiparadas a companhias estrangeiras.
O Incra usa essa data
como marco para investigar possíveis compras ilegais devido a um parecer
emitido pela Advocacia-Geral da União no dia 19 daquele mês, no qual foi
determinado que vendas de grandes áreas para grupos estrangeiros (ou equiparados
a estrangeiros) só poderiam ocorrer com aval do Congresso ou do Incra.
A prática é regulada
por uma lei criada na ditadura militar, que limita compras e arrendamentos a
estrangeiros para áreas de até 50 módulos fiscais. O Incra define a medida de
módulo fiscal – que varia entre 5 e 110 hectares – para cada município brasileiro.
A mesma lei também
determina que nenhum município pode ter mais do que 25% de seu território sob
controle de pessoas ou empresas estrangeiras, nem que oriundos de um mesmo país
detenham mais que 10% da área de um mesmo município.
Um projeto de lei que
pode mudar as regras atuais até avançou durante o governo Bolsonaro, mas está
parado no Congresso. Proposta pelo senador Irajá de Abreu (PSD-TO), a
iniciativa teve a relatoria do atual presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), que emitiu um parecer favorável a ela.
O plenário do Senado
aprovou o projeto em 2020, enviando-o à Câmara dos Deputados – onde aguarda,
desde 2021, pela formação de uma comissão especial para a análise da matéria,
dada a sua complexidade.
Compras de terras por
estrangeiros também moveram discussões no Supremo Tribunal Federal (STF). No
fim de abril de 2023, o ministro André Mendonça suspendeu, por meio de liminar,
todos os processos judiciais em trâmite sobre compras de terras por empresas
brasileiras com a maioria societária de pessoas e companhias do exterior – ou
seja, empresas equiparadas a estrangeiras. Menos de duas semanas após a
decisão, o caso foi julgado por todos os ministros, que acabaram derrubando a
liminar e autorizando a retomada dos processos na Justiça.
A decisão, vale dizer,
respinga em outro caso já relatado pela Pública: o das parcerias internacionais
do grupo Cosan, do paulista Rubens Ometto. A companhia aliou-se ao principal
fundo de aposentadoria de professores dos Estados Unidos, o TIAA-Cref, em compras
de fazendas no Matopiba, envolvendo-se até com suspeitos de grilagem.
• Fiscalização é possível, mas exige
adequações
Para o professor
Sérgio Leite, da UFRRJ, para ter controle e dimensão real da propriedade de
terras por estrangeiros, seria necessário refinar a metodologia de cadastros do
Incra. “Sem contar mudanças em outros campos, como nas perguntas do Censo
Agropecuário, do IBGE, inserindo questões sobre a propriedade do
estabelecimento rural ser ou não estrangeira – algo que poderia ajudar”,
avalia.
Leite destacou ainda a
importância de integração dos dados fundiários com informações financeiras,
citando o Fundo de Investimento do Agronegócio (FIAgro) – que permite a
ruralistas acesso a créditos do mercado financeiro para a expansão de seu
agronegócio, incluindo compras de novas fazendas.
Já outro especialista,
um servidor público com décadas de experiência no tema, que pediu para não ser
identificado, afirmou à Pública que seria possível fiscalizar melhor as vendas
de terras a estrangeiros cruzando dados fundiários e fiscais, “muito por conta
do crescente papel do mercado financeiro na agricultura, com o aumento de
recursos captados nas bolsas de valores”.
“Temos duas ‘frentes’
neste debate: o processo de aquisição de terras por pessoas físicas do
exterior, por relações para além da produção – como alguém que compra uma
chácara ou casa de praia, por exemplo – e as compras de terras por empresas
internacionalizadas – como vemos cada vez mais na agricultura, no segmento de
papel e celulose, de produção de energia”, afirmou.
Como exemplo, o
servidor mencionou iniciativas encampadas pela área econômica do governo, como
o Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (Sinter). Lançado em
2022 pela Receita Federal, o programa integra “dados cadastrais, geoespaciais,
ambientais, fiscais e jurídicos, relativos aos imóveis urbanos e rurais,
produzidos por órgãos públicos e cartórios” no Brasil.
Fonte: Por de Freitas
Paes, da Agencia Pública
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