E a Rússia livrou-se do Ocidente…
Como
Moscou enfrentou – e reverteu em seu favor – sanções que visavam devastar sua
economia. A indústria e agricultura reconstroem-se, os salários crescem, a
pobreza recua. China teve papel na virada. O que esta pode ensinar ao Brasil?
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“Eu nasci e estudei
aqui. Meu marido e meu filho são russos. Eu sou russa. Não diria que sou uma
patriota e não quero expressar meus pensamentos sobre Putin e a guerra. Mas os
russos estão reagindo às sanções de forma extraordinária, mesmo com um rublo fraco
e a inflação inevitável. Os preços dos bens essenciais foram mantidos. E agora
estamos consumindo produtos melhores e mais saudáveis, inclusive queijos
excepcionais”. As palavras da bióloga Olesia Sergeeva, que agora cria esturjões
e extrai suas ovas – o caviar – por meio de técnicas inovadoras, surpreenderam
o veterano jornalista Marzio Mian em Astrakan, onde o Rio Volga deságua em
delta no Mar Cáspio. Sergeeva, escreveu ele, poderia instalar-se,
confortavelmente, em qualquer parte do mundo. Preferira a Rússia, em meio à
guerra. Era o inverno de 2023 e faltavam poucos meses para as eleições
presidenciais russas, que Vladimir Putin venceria com 87,3% dos votos, no
último fim de semana.
Laureado com o Prêmio
Pulitizer (por seus trabalhos sobre as consequências do aquecimento global no
Rio Mekong, Vietnã), Mian atrevia-se a fazer para a revista
norte-americana Harper’s algo
que a mídia ocidental evita há dois anos. Ele percorreu por um mês o Volga para
investigar de que forma a guerra, o recrutamento de jovens para o front e
em especial as sanções econômicas impostas pelo Ocidente afetam a vida das
pessoas comuns. Em torno do rio, que os russos chamam de matushka (“a
mãe”), orbitam partes importantes da vida e história do país: da região de
Moscou às terras dos cossacos e tártaros; do berço do império estabelecido no
século XVIII até Stalingrado, onde se decidiu a sorte da II Guerra Mundial.
A reportagem produzida ao
longo da jornada tem força literária notável mas pode ser vista também como um
pequeno ensaio etnográfico e econômico. Ao narrar as transformações produtivas
ocorridas em torno do maior rio da Europa, ela expõe algo surpreendente. Ao contrário
do que previam (e esperavam) as elites ocidentais, as sanções decretadas contra
a Rússia não produziram caos econômico, nem alimentaram a oposição a Putin. Ao
contrário: estimularam uma mobilização quase frenética, para suprir a ausência
de bens e serviços que desapareceram subitamente, a partir de 2022. A Rússia
foi capaz de reunir as condições materiais, financeiras e diplomáticas para
tanto. A aposta do Ocidente está prestes a se converter num monumental
fracasso. Como isso foi possível?
* * *
O economista
keynesiano James Galbraith tem as primeiras explicações. Num vídeo produzido pelo instituto Novo Pensamento Econômico [New
Economic Thinking], ele expõe suas polêmicas com os
defensores das sanções impostas à Rússia. Vale lembrá-las. Cerca de 300 bilhões
de dólares (20% do PIB do país à época) em depósitos de Moscou no exterior
foram congelados. As exportações russas de petróleo (principal fonte de
divisas), banidas. E as vendas de produtos de alta tecnologia para a Rússia,
bloqueadas. Centenas de corporações ocidentais, que exerciam papel destacado na
economia russa, deixaram o país. Por trás destes atos de radicalidade inédita,
havia a aposta de sufocamento, lembra Galbraith.
Eram favas contadas,
segundo a teoria econômica convencional. A produção russa entraria em colapso.
Em consequência, o esforço de guerra necessário para sustentar a campanha na
Ucrânia naufragaria. Diante de um fracasso militar e um descontentamento social
irresistível, Putin sucumbiria. O Ocidente – que já enviava à Ucrânia apoio
bélico maciço – faria valer mais uma vez sua supremacia econômica e financeira.
A ordem eurocêntrica sairia reforçada.
A sabedoria da
liderança russa, argumenta Galbraith, consistiu em desafiar este destino. O
país deu-se conta de que tinha meios para reorganizar sua produção: imenso
território, população de 125 milhões, recursos abundantes. Embora tenha
despencado, em 2022, a atividade industrial recuperou-se muito rapidamente. “As
fábricas, os operários, os engenheiros e os gestores estavam lá”, lembra o
economista. O Estado articulou a compra das indústrias fechadas, por grupos
econômicos locais comprometidos com o projeto nacional. As aquisições foram
feitas em condições muito vantajosas e com financiamento público. A China jogou
papel essencial, ao oferecer tecnologia, quando necessária. “Substituíram o que
faltava nas linhas de produção – o que o Ocidente levou – com assistência e
design industrial chineses.
O mesmo processo
deu-se no campo, de forma notável. “Carne, queijos, frutas, antes importadas do
Ocidente e de países como a Turquia, passaram a ser produzidos localmente”. No
setor de serviços, as cadeias de restaurante e de varejo norte-americanas e
europeias foram substituídas por outras, russas ou chinesas. Como resultado,
diz Galbraith, “deu-se uma rápida descolonização da economia russa”. Ele
conclui: “No frigir dos ovos, as sanções foram um presente oferecido a Moscou.
Em 2022, não havia nem condições materiais nem desejo de promover este
movimento”. Foi ditado pela necessidade e pelas respostas corretas diante dela.
* * *
Outro economista, o
marxista Michael Roberts, chama atenção para um fator central no sucesso russo.
É o investimento público maciço – ou seja, a antítese da política de “ajuste
fiscal” adotada, por exemplo, pelo ministério da Fazenda no Brasil. Num artigo publicado há uma semana,
no blog The Next Recession, Roberts lembra que, mesmo obrigado a um enorme esforço de
guerra, o Estado russo também elevou os investimentos e despesas de custeio com
a vida civil. Houve forte renovação da infraestrutura e gastos maciços em
elevação das aposentadorias e subsídios para compra de casas.
Como resultado geral,
a economia russa, que segundo os economistas ortodoxos desabaria sob o peso das
sanções, cresceu mais que todas na Europa. Já é a quinta maior do mundo, tendo
ultrapassado a da Alemanha, quando o PIB é avaliado pelo critério de paridade
de poder de compra (PPP, na sigla em inglês), que desconta a valorização
artificial das moedas. E pode tirar proveito de grandes vantagens comparativas,
como energia extremamente barata (a mesma fonte que os alemães desprezaram, ao
aderirem às sanções norte-americanas…). A ausência de mão de obra, devido à
convocação de milhares de soldados para a guerra, fez subir os salários. Seu
valor médio elevou-se 30% acima da inflação em dois anos e atingiu o
equivalente a 814 dólares (RS 4100). A pobreza caiu ao patamar mais baixo desde
o fim da União Soviética.
* * *
O aspecto etnográfico
da reportagem de Marzio Milan é tão notável quanto o econômico. Ao longo das
quatro semanas em que percorreu o Volga, o jornalista viu de perto o
renascimento da produção agrícola e mudança de seus laços – da Europa para a
Ásia. Agricultores locais aprenderam a produzir queijos semelhantes aos
franceses e presunto cru comparável ao italiano ou espanhol. Rybinsk, uma
cidade próxima de Moscou, tornou-se “a padaria da capital”, fornecendo baguetes
antes importados da Europa. Em Kazan, capital tártara, produtores muçulmanos
criam (e vendem também para a Turquia) gansos e cordeiros , que antes vinham da
França, Romênia e… Nova Zelândia. Em todo o trajeto, Milan reporta ter deparado
com construções, obras em rodovias, instalação de oleodutos, equipes de
jardineiros nos parques, reparos em edifícios e igrejas. Mas viu pouca presença
de soldados porque, segundo relataram seus interlocutores, o recrutamento se
fez principalmente nos rincões do país, onde é mais fácil atrair jovens
necessitados.
A diversidade emerge
mais nos símbolos. Nas adjacências de Kazan, um antigo sovkhoz (fazenda
coletiva soviética) tem agora donos privados. Mas a família que o controla
hasteia a bandeira vermelha da URSS, espalha painéis com a imagem de Stálin
pela vasta extensão da propriedade e afirma que esta “é administrada como
antes: os lucros elevam os salários dos 4 mil trabalhadores e ampliam o
negócio”… Já os criadores de cordeiros gabam-se de que o general que derrotou
Napoleão era um tártaro. O jornalista depara-se com grupos de turistas ornados
com chapéus Panamá e óculos Gucci, que vão ao Volga porque já não podem voltar
ao iate estacionado na ilha grega de Mykonos. Ou com os estranhos habitantes
acampados numa ilhota do rio, e decididos a constituir uma “comunidade
independente” cuja principal regra é evitar as notícias externas, e dedicar-se
em vez disso a aulas de yoga e sessões de reggae com letras pacifistas.
Mas em meio a todo
este ambiente heterogêneo emerge um orgulho russo renovado. O antigo fascínio
pelo Ocidente, tão típico dos tempos de Gorbachev e Yeltsin, desapareceu,
mostra Milan. A nova atitude aparece em especial, é claro, entre os produtores
que agora substituem os artigos antes importados. Mas espraia-se pelos
circuitos de consumo. Restaurantes exaltam, nos menus, a origem local dos
ingredientes e o fato de não conterem fertilizantes europeus. Um dos novos
padeiros de Rybinsk revela que abriu seu estabelecimento como um ato político,
para salvar os valores rurais russos “do consumismo copiado dos EUA”. A turista
com que o jornalista se depara no Volga rejeita Putin e a guerra, mas ressalta:
“O Ocidente nos humilhou demais. Não temos o direito de ser quem queremos ser
sem nos sentir como bárbaros?”. Anna, uma mulher de 30 anos que se apresenta
como “anti-establishment, pacifista e ambientalista pagã” defende “o amor aos
ancestrais” e vê como sua prioridade “preservar a tradição russa”. Em Samara, onde
há um bunker construído em 1942 para abrigar a liderança soviética (mas nunca
usado), um visitante, engenheiro elétrico de 24 anos, diz: “Pra nós, os jovens,
Stálin é o numero um. Precisamos vencer de novo o mal, como na Grande Guerra
Patriótica [a denominação dada na Rússia a sua participação na II Guerra
Mundial]”.
***
Os 87,3% alcançados
por Putin nas eleições terminadas em 17/3 devem-se, é claro, a condições
especiais. Michael Roberts as resume: “Nenhum candidato sério de oposição podia
vencer. (…) Nikolai Kharitonov, do Partido Comunista, Leonid Slutsky do Liberal
Democrático (nacinalista) e Vladislav Davankov, do Novo Partido do Povo estavam
nas cédulas. Todos apoiam amplamente as políticas de Putin, incluindo a invasão
da Ucrânia. A maior parte da imprensa independente foi banida e qualquer pessoa
julgada culpada de difundir o que o governo chama de “informação
deliberadamente falsa” pode ser sentenciada a até 15 anos de prisão”.
Mas o próprio Roberts
reconhece: a razão principal para a vitória de Putin não foi este ambiente
antidemocrático, mas os vastos êxitos alcançados na reconstrução do país – ao
contrário de todas as previsões e desejos do Ocidente.
Poderia a Rússia
inspirar o Brasil? Quinze meses após a grande vitória sobre o neofascismo, o
país ainda patina. A sombra da ultradireita e seu abismo civilizatório
persiste. Uma das razões essenciais é a aposta num programa econômico que
restringe o investimento público e impede uma vasta transformação nos serviços
públicos e na infraestrutura. É ela que poderia melhorar sensivelmente a vida
das maiorias, sinalizar a possibilidade de outro futuro e recompor a aposta na
democracia e no país. Será preciso uma guerra superar a ideologia da impotência
e vencer a condição periférica?
Ø
'Perder guerra não é divertido': Ocidente
ignora seu 'maior desastre político', diz jornalista
A economia da Rússia
sobreviveu às sanções ocidentais "muito melhor" do que o previsto,
mostram relatórios recentes. Enquanto isso, a economia da União Europeia (UE)
tem sofrido bastante, fazendo com que os eleitores da classe trabalhadora se voltem
contra a ajuda à Ucrânia.
O Greanville Post
publicou na terça-feira (19) um artigo que afirma que a União Europeia se
tornou o local do "maior desastre político do século XXI". O artigo
escreve que Paris, que já viu agendas de planejamento esquerdistas cheias de
"protestos, reuniões e greves", agora parece ser uma cidade onde há
pouca conversa sobre o "colapso econômico, político e de confiança"
do maior bloco econômico do mundo.
O autor e jornalista
independente Daniel Lazare conversou com a Sputnik para debater o tema.
"Bem, acho que a
Europa está perdendo a guerra", disse Lazare. "E perder uma guerra
não é divertido. A situação na Ucrânia está indo muito mal. A Rússia está
claramente ganhando, sua economia está se saindo muito bem. A economia
europeia, pelo contrário, está estagnando. E se a Rússia fizer progressos na
guerra, se o governo da Ucrânia quebrar de alguma forma, então os resultados
para a Europa serão devastadores."
"Quero dizer,
esta não é uma guerra distante para a [UE]. É uma guerra distante para os EUA.
Mas é uma guerra à porta da UE. E a perspectiva de um colapso ucraniano
causaria pânico na Polônia, mas também em Berlim e Paris, e Macron tem feito
barulhos loucos sobre o envio de tropas para a Ucrânia, o que é uma loucura.
Mas, novamente, o homem está desesperado e não sabe exatamente como responder.
E o mesmo tipo de desespero é evidente em outras capitais também",
acrescentou.
Lazare observou também
que os EUA tinham confiança que a moeda russa – o rublo – seria esmagada, a
economia do país seria quebrada, que a Rússia seria restrita do mercado de
energia e estaria chorando por misericórdia. "Mas isso não aconteceu.
Muito pelo contrário. A Rússia conseguiu encontrar pontos de venda para seu
petróleo e gás. Desenvolveu mercados com a China e outras nações. Os EUA
acabaram atirando no próprio pé. E o incrível é que isso continua acontecendo
de novo."
Relativamente ao
conflito na Ucrânia, o jornalista observou que a atual guerra foi realmente
projetada pelos EUA, e os países europeus, tais como o Reino Unido e a França,
estavam solidamente por trás de Washington.
"Os EUA pensaram
que ganhariam essa guerra facilmente", continuou ele. "Mas agora a
guerra está indo muito mal. E acontece que os EUA realmente tinham uma ideia
muito vaga sobre onde é que eles estavam se metendo. Agora, o problema é que os
EUA não sofrerão as consequências nem de perto na medida em que os europeus vão
sofrer."
"Então, é um caso
em que eles [europeus] seguiram os EUA, eles seguiram alegremente atrás, e
agora eles têm que pagar o preço por seu próprio comportamento. É uma loucura,
e concordo que vai haver um ajuste de contas."
Fonte: Por Antonio
Martins, em Outras Palavras/Sputnik Brasil
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