segunda-feira, 18 de março de 2024

 “Lula é capaz de dizer coisas que os outros não dizem”, afirma pesquisador

Entrevista com o maior especialista brasileiro em geopolítica. José Luis Fiori analisa a comparação feita por Lula entre Gaza e o genocídio nazista. Ele diz que o presidente do Brasil é “um humanista radical” e ao mesmo tempo “um político pragmático”. Explica a Ucrânia, o Médio Oriente e o conflito entre a China e os Estados Unidos. Pense no cenário que existirá se Trump vencer. E emite parecer para abrir um grande debate sobre o Mercosul.

Professor de Política Econômica Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis, José Luis Fiori, seu último livro é “Sobre a Guerra”. 

LEIA A ENTREVISTA:

– Que estratégia está por detrás da comparação do Presidente Lula entre a política israelita em Gaza e o nazismo? 

– Tenho certeza de que o presidente brasileiro escolheu cuidadosamente suas palavras e comparações. Afinal, ele não disse nada absurdo. Em vez disso, ele simplesmente comparou a fúria assassina do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu à de Adolf Hitler e ao seu genocídio dos judeus na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Esta mesma comparação tem sido feita por outros líderes mundiais com menor projeção global. A irritação demonstrada pelo governo israelense é compreensível dada a importância internacional de Lula. Porém, é mais difícil compreender a reação em cadeia da imprensa brasileira, que não se preocupou em ler a entrevista e começou a repetir em cadeia as diatribes das autoridades israelenses. Pareciam órgãos subsidiários da extrema direita em Tel Aviv, determinados a demonstrar a existência de uma espécie de hierarquia de genocídios. Segundo eles, alguns seriam mais importantes que outros, dependendo da origem das populações afetadas pela violência assassina dos genocidas. Como se o assassinato coletivo de judeus pelo Estado alemão tivesse uma trágica superioridade sobre os 15 milhões de chineses que foram assassinados pelos japoneses nas décadas de 1930 e 1940, no chamado “Holocausto Asiático”. Ou os 20 milhões de russos assassinados pelos alemães entre 1941 e 1945. Ou o genocídio de 2 milhões de armênios pelo Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial, também conhecido como o “Holocausto Armênio”. Ou mesmo o “genocídio tutsi” durante a Guerra Civil do Ruanda em 1994, entre muitas outras tragédias do século XX. Os fatos são fatos e são bem conhecidos. 

– Você está se referindo ao Oriente Médio?

– Sim. Em 7 de outubro de 2023, um grupo de militantes ou combatentes do Hamas entrou em território israelita, matou cerca de 1.200 israelitas e raptou cerca de 280 pessoas. O governo israelita sitiou então o território de Gaza, habitado por cerca de dois milhões e meio de palestinos, bloqueou a entrada de água, alimentos, energia, medicamentos e comunicações, e iniciou um bombardeamento aéreo e terrestre ao território de Gaza que já faz cinco meses agora. Já matou 30 mil palestinos (80% mulheres e crianças), ferindo e mutilando outros 80 mil e deixando cerca de um milhão e meio de pessoas deslocadas, famintas e sem cuidados médicos. Os números são alarmantes, mas continuam em expansão. E tudo indica que ainda assistiremos a outro massacre ainda maior de palestinos na cidade de Rafah.

– Voltemos à escolha das palavras de Lula.

– A hipótese de que ele cometeu um ‘erro’ levantada pela imprensa conservadora brasileira é absolutamente ridícula por parte de um político tão experiente como Lula. As suas palavras foram rigorosamente escolhidas e continham um juízo de valor e uma condenação radical do comportamento assassino do Primeiro-Ministro de Israel e do holocausto do povo palestino que ocorre ao vivo, diante dos olhos horrorizados da humanidade. Do meu ponto de vista, foi uma tentativa consciente do Presidente Lula de abalar a ‘apoplexia global’ que tomou conta da humanidade horrorizada com o que está acontecendo. Mas, acima de tudo, foi uma tentativa de chamar à razão as potências ocidentais que se consideram as criadoras e administradoras da moralidade internacional, e a Alemanha em particular, a executora direta do genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra. Embora estes países estejam a mudar a sua posição retórica, embora continuem a fornecer armas e recursos utilizados pelos israelitas para levar a cabo o massacre dos palestinianos.

– Qual é a leitura de mundo que Lula, seu assessor Celso Amorim e o chanceler Mauro Vieira fazem?

– No primeiro ano do seu terceiro governo, em 2023, Lula teve uma agenda internacional muito ativa: fez 15 viagens internacionais, visitando 24 países e 5 continentes. Além disso, discursou na ONU, no G20 na Índia, na Liga das Nações Árabes, na União dos Estados Africanos, no G7, no Mercosul, na CELAC, na CARICOM. Ele assumiu a presidência do G20, COP 30, e deverá assumir a presidência do BRICS em 2024. Em quase todas essas ocasiões, os três principais responsáveis ​​pela política externa brasileira estiveram juntos, explicando a nova estratégia internacional do Brasil por meio de discursos, entrevistas e pronunciamentos. 

– Você se lembra?

– Sim. Há uma grande convergência, e até coincidência, entre as posições dos três. Eles sabem que o Brasil não é uma potência militar nem pretende ser. Portanto, é um país grande, sem capacidade ou intenção de projetar o seu poder ou influência militar para além das suas fronteiras. Isso também vale para a América do Sul. Além disso, todos os três têm plena consciência da relação histórica do Brasil com os Estados Unidos e de que o Brasil está dentro da chamada “zona de influência e tutela nuclear” direta dos Estados Unidos. Neste contexto geopolítico e militar, deve ser compreendida a “grande estratégia” internacional de Lula, Amorim e Vieira. Lula é um humanista e um pacifista radical, mas ao mesmo tempo é um político habilidoso, carismático e pragmático. O seu projecto internacional nada tem a ver com o “Terceiro Mundo” nem pretende simplesmente ser o líder da periferia mundial, agora chamada pelas potências euro-atlânticas de “Sul Global”. 

–E qual é o projeto do Lula?

– A grande estratégia de Lula é universalista, cosmopolita e igualitária, apesar de ter plena consciência de que o “cosmopolitismo” ou universalismo defendido pelas potências ocidentais é inseparável das hierarquias, assimetrias e conflitos que caracterizam a luta de todos pelo “poder global”. ” Do meu ponto de vista, as ideias e atitudes de Lula, Amorim e Vieira assumem a soberania das nações como um fato e um objetivo. Propõem que o Brasil transite entre as nações do norte e do sul, do leste e do oeste, sem fazer distinções ideológicas e sem discriminar países com base em seus regimes políticos, filiações ideológicas ou pertencimentos culturais e religiosos. Apesar do que diz a imprensa conservadora, Lula sempre mostra sua proximidade tanto com os Estados Unidos de Biden quanto com a Rússia de Putin e com a China de Xi. À França de Macron, à Turquia de Erdogan, ao Irã de Ebrahim e até à Inglaterra de Carlos III. O seu projeto é construir e afirmar globalmente um poder que visa influenciar os acontecimentos mundiais e ajudar a mediar os seus conflitos sem preconceitos ideológicos. Talvez seja esta posição única do Brasil que permite a Lula ser um presidente original no contexto internacional. Ele é capaz de dizer coisas que os outros não dizem e apertar botões que assustam os conservadores no Brasil e no mundo.

– Qual é a sua leitura do mundo hoje, por exemplo sobre a influência do conflito entre a China e os Estados Unidos, o impacto da guerra entre a Rússia e a Ucrânia ou as próximas eleições nos Estados Unidos? 

– O chefe da política externa da União Europeia, o espanhol Josep Borrell, declarou recentemente que “a era de domínio global do Ocidente chegou ao fim”. O mesmo tinha sido dito por Xi Jinping e Vladimir Putin em Janeiro de 2022. Até o Presidente Joe Biden, que por vezes demonstrou alguma dificuldade de raciocínio, também afirmou numa entrevista recente que a ordem mundial pós-Segunda Guerra Mundial acabou e que é necessário definir as regras de uma nova ordem. O problema está exatamente em saber quem definirá essas novas regras, considerando que a “ordem americana” que está chegando ao fim só foi imposta após uma guerra mundial e, sobretudo, após a demonstração da força americana com a destruição atômica de Hiroshima e Nagasaki. Hoje, muitos analistas falam na transição de um mundo unipolar para um novo mundo multipolar, mas ninguém sabe exatamente em que consistirá esse mundo multipolar, muito menos o que será e quanto tempo durará a “transição” entre esses dois mundos. .

– Não há certezas?

– Ninguém mais duvida que esta crise internacional e esta “transição” que vivemos estão relacionadas com a ascensão econômica e política, e o aumento da influência internacional, da China. Ou também, em particular, com a necessidade de o sistema interestatal criado pelos europeus ter agora de coexistir, dentro de si, com múltiplas culturas e civilizações. Também não há dúvidas sobre a importância da decisão russa de confrontar a NATO. E sobre a incapacidade demonstrada da OTAN para derrotar a Rússia. Isto deve ser considerado um verdadeiro ponto de viragem, um verdadeiro marco no declínio do domínio ocidental de que fala Borrell. Mas saibamos que, segundo dados apresentados pela delegação brasileira na última reunião do G20 na cidade do Rio de Janeiro em 2023, ocorreram 183 conflitos internacionais ao redor do mundo. Neste momento, quando assistimos a uma guerra ou a um massacre na Faixa de Gaza, a grande maioria da humanidade condena a violência assassina do governo israelita, e até o governo americano está a tentar conter Israel, mas de forma ineficaz. E o que podemos dizer das Nações Unidas, cujas decisões são permanentemente desobedecidas por Israel. Na verdade, ao contrário do que dizem os americanos, o problema do mundo hoje não é a falta de “regras”.

– Existem regras?

– Claro, as regras existem. O problema é a existência de muitas interpretações diferentes das mesmas regras e a ausência de um poder capaz de arbitrar, julgar e punir a nível internacional. Este papel foi desempenhado por europeus e americanos ao longo dos últimos 300 anos, mas a maior prova do declínio ocidental é o fato de a “maioria global” já não aceitar a arbitragem das potências do Atlântico Norte. Mas tenha cuidado: para além deste problema mais imediato, o fim do unilateralismo ocidental reduzirá sem dúvida a arbitrariedade e a arrogância das potências ocidentais. Contudo, ninguém sabe como funcionarão a tomada de decisões e a governança global num sistema multipolar. Na prática, terá de funcionar como um “oligopólio” extremamente competitivo e militarizado, que poderá deixar o mundo à beira de uma grande guerra de forma contínua e por muito tempo, pelo menos durante a primeira metade do século XXI.

 O Mercosul está congelado em termos políticos e o Brasil está a tornar-se progressivamente num parceiro comercial cada vez mais pequeno da Argentina. Até que ponto a fraqueza regional influencia a política externa brasileira?

– A política externa do atual governo brasileiro centrou-se desde o primeiro momento no Mercosul e na América do Sul. A intenção era consolidar uma aliança estratégica com a Argentina que pudesse tornar-se um ponto de referência e liderança econômica e política para todo o continente. Esta não é a primeira vez que este projeto é tentado. E não é a primeira vez que é interrompido por alguma mudança política num dos dois maiores países do continente. 

– E agora o que acontece então?

– O governo Lula entendeu que a correlação político-ideológica na América do Sul havia mudado e que seria impossível avançar no Mercosul com três países governados por presidentes ultraliberais. Além disso, Lula também conseguiu perceber que mesmo fora do Mercosul não tinha muito apoio à ideia de integração regional. Talvez você esteja entendendo que a ideia de “integração latino-americana” sempre foi uma utopia tecnocrática defendida desde a década de 50 pelos economistas estruturalistas da CEPAL. Ou também poderia ter sido uma utopia ideológica apoiada principalmente pelos governos bolivarianos do continente. São duas versões da mesma utopia que nunca se enquadram na estrutura econômica de exportação primária de todos os países sul-americanos. Também não se enquadravam na natureza descontínua do território costeiro e da população de todo o continente. Sem falar que este projeto sempre foi paralisado ou interrompido pela polarização política, social, empresarial e intelectual das elites da região, divididas entre o radicalismo ultraliberal da maioria e os sonhos prussianos de uma minoria de intelectuais e tecnocratas progressistas.

– O Governo Lula mudou de posição diante desse panorama?

– Acho que ele também fez uma avaliação realista e pragmática da situação da esquerda sul-americana e do atual distanciamento entre as visões de mundo de Lula, Gustavo Petro e Gabriel Boric, por exemplo. Para mim, pelo menos, esta avaliação brasileira reforçou a sua decisão de política externa de abertura à África e ao mundo árabe, ainda mais do que à América do Sul. Isso porque, embora o Brasil tenha uma posição de proximidade geográfica e de indiscutível preeminência dentro do continente sul-americano, do ponto de vista da composição demográfica, social e cultural de sua população, o Brasil está muito mais próximo da África negra e do mundo, e mesmo de alguns países asiáticos, do que da população ibero-castelhana. Deste ponto de vista, mais uma vez, não foi por acaso que o Presidente Lula escolheu a cidade de Adis Abeba e a reunião da União dos Países Africanos para assumir uma posição aberta de condenação do genocídio israelita na Faixa de Gaza. Fê-lo juntamente com a África do Sul e quase todos os outros países negros africanos que têm condenado vigorosamente o “holocausto palestino”.

– O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, criticou a “paralisia” da ONU nos atuais conflitos armados. O que deveria acontecer?

– A ONU é talvez o lugar do mundo onde mais se manifestou, quase diariamente, a impotência e a paralisia de todas as instituições responsáveis ​​pela governança mundial dentro da ordem americana estabelecida desde a Segunda Guerra Mundial. Quando foi formada, a ONU tinha cerca de 60 países. Hoje são quase 200 e, de fato, mais uma vez, como mostra a história, foram os próprios Estados Unidos que primeiro anularam as Nações Unidas e o seu Conselho de Segurança quando bombardearam a Jugoslávia sem a sua autorização em 1999 e atacaram o Iraque em 2003. E o mesmo aconteceu mais tarde, em quase todos os casos, durante os últimos 30 anos de guerras quase contínuas em que participaram os Estados Unidos, a Inglaterra e os seus aliados da OTAN.

– Existem duas guerras importantes: Ucrânia e Gaza.

– É aconselhável pensar neles a partir deste vazio. É este vazio que explica, em última análise, a intensidade das críticas de Lula, cada vez mais frequentes e explícitas não só a Israel mas, sobretudo, à impotência da chamada “comunidade internacional”. Aplica-se tanto à Palestina como à Ucrânia. É como se ele estivesse a apelar ao mundo para encontrar alguma solução antes de conduzir a uma nova guerra mundial. Uma guerra que, se ocorrer, será quase inevitavelmente uma guerra atômica.

– Depois da decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos e dos seus sucessos no Partido Republicano, Donald Trump está em plena corrida para as eleições de novembro. Que cenário possível se apresenta à América Latina com uma eventual vitória de Trump?

– Uma vitória poderia reforçar retoricamente as forças e os governos de extrema direita na América do Sul. Mas não muito mais do que isso. Apesar da Doutrina Monroe, a América Latina nunca ocupou um lugar de grande importância na política externa americana, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Quase diria que a América do Sul sempre foi o último elemento na hierarquia de preocupações e objetivos dos Estados Unidos no mundo. Com Trump isso deveria ser acentuado. Os democratas pelo menos fazem uma representação ideológica e de vez em quando mostram alguma consideração para com os latino-americanos. Por outro lado, no caso dos republicanos, e ainda mais no caso de Trump, se levarmos em conta a agenda prioritária dos Estados Unidos na próxima década na Europa e na Ásia, podemos prever um esquecimento quase total da América Latina.

 

Fonte: Por Martin Granovsky, do blog Y Ahora qué?

 

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