5 fatores que explicam as raízes históricas
da crise permanente que afeta o Haiti
Assolado pela pobreza,
periodicamente sacudido por desastres naturais, submerso em uma dívida
histórica e com a instabilidade endêmica dos seus governos, o Haiti parece
viver em uma crise permanente.
O assassinato do
presidente haitiano Jovenel Moïse (1968-2021) e o recrudescimento da violência
pelas gangues criminosas já causaram milhares de mortes e levaram o país ao seu
limite.
Mas os males do Haiti
têm raízes mais antigas. Algumas delas remontam à criação do país como nação
independente e vêm se aprofundando ao longo dos séculos.
Estes fatores
históricos ajudam a explicar a situação enfrentada pelo país.
• 1. Instabilidade política
Seu primeiro
governante, Jean-Jacques Dessalines (1758-1806), proibiu a escravidão, mas
concentrou todo o poder em si próprio, ao se declarar governador-geral
vitalício do país. E, poucos meses depois, ele se autonomeou imperador Jacques
1º.
Ele foi assassinado –
um destino que foi seguido por diversos líderes haitianos – e sua sucessão
levou a uma guerra civil.
O século 19 presenciou
uma sucessão de governantes, muitos deles vitalícios. Mas seu poder durava
poucos anos e eles acabavam derrubados por revoltas, assassinados ou exilados.
A influência alemã no
país crescia cada vez mais, causando preocupação nos Estados Unidos. Por isso e
para proteger seus interesses na região, os americanos invadiram o Haiti em
1915.
Eles só saíram em
1943, depois que conseguiram alterar a legislação haitiana. Passou a ser
permitida, por exemplo, a compra de terrenos por estrangeiros, o que
intensificou a influência das empresas norte-americanas na economia e na
política do Haiti.
A segunda metade do
século 20 foi marcada pelos violentos governos de François "Papa Doc"
Duvalier (1907-1971) e seu filho, Jean-Claude "Baby Doc" (1951-2014).
A ditadura dos
Duvalier durou 29 anos. Nesse período, a corrupção esvaziou os cofres do país e
a repressão policial resultou em cerca de 30 mil mortos ou desaparecidos.
Depois de um golpe
militar fracassado em 1958, François Duvalier tentou enganar as forças armadas
criando uma milícia pessoal, os tontons macoutes (expressão equivalente ao
"homem do saco", no idioma crioulo falado no Haiti). Sua função era
aterrorizar a população, proteger o governante e perseguir seus opositores.
Seu filho Jean-Claude
Duvalier se manteve no poder até que uma rebelião o obrigou a se exilar na
França, em 1986.
Em 1990, depois de
vários golpes de Estado, o Haiti escolheu seu primeiro presidente
democraticamente eleito: o ex-sacerdote Jean-Bertrand Aristide.
Alçado ao poder pelos
menos favorecidos, Aristide cumpriu apenas sete meses de mandato. Ele foi
derrubado por outro golpe militar e precisou seguir para o exílio.
Aristide conseguiu
voltar ao Haiti em 1994, graças a uma intervenção militar norte-americana. Ao
chegar, ele dissolveu o exército.
Dois anos depois, René
Préval ganhou as eleições e sucedeu Aristide na presidência. O ex-sacerdote
seria eleito presidente mais uma vez em novembro de 2000.
Mas, depois de
contínuas crises políticas e econômicas, Aristide foi obrigado a se retirar em
2004, quando a oposição se tornou cada vez mais violenta.
Houve acusações de
fraude eleitoral, mortes extrajudiciais, tortura e brutalidade. No mesmo ano,
as Nações Unidas enviaram uma missão de paz para o Haiti, que passou 13 anos no
país.
Préval voltou a ganhar
as eleições em 2006 e conseguiu terminar seu mandato de cinco anos. Mas o
terrível terremoto de 2010 devastou grande parte do país, exacerbando os
problemas políticos, econômicos e sociais do Haiti.
Depois do governo do
presidente Michel Martelly, o empresário Jovenel Moïse ganhou as eleições de
2016. Seu mandato foi marcado por protestos contra o governo, frequentemente
violentos, e pelas acusações de corrupção.
No dia 7 de julho de
2021, Moïse foi assassinado a tiros por um grupo de mercenários colombianos, na
sua casa, perto da capital haitiana, Porto Príncipe. Até hoje, não se conseguiu
descobrir quem ordenou o assassinato do presidente.
Sua morte deixou um
vazio de poder e grupos armados tomaram o controle de grande parte do país.
Seu
ex-primeiro-ministro, Ariel Henry, assumiu o poder de forma interina, mas o
recrudescimento dos protestos o obrigou a renunciar na segunda-feira (11/3).
Com isso, o Haiti não
tem governante no momento.
• 2. Violência extrema
O Haiti está
mergulhado na violência, em grande parte, devido às cerca de 200 gangues que
controlam grandes regiões do país, especialmente em Porto Príncipe.
Dados das Nações
Unidas indicam que a violência já deslocou internamente quase 314 mil pessoas.
Desde os brutais
tontons macoutes criados por "Papa Doc" em 1958, as facções
criminosas só aumentaram sua presença, especialmente nos momentos de vazio de
poder.
Quando Aristide
eliminou o exército, que era marcado pela corrupção, o Estado perdeu sua
capacidade de lutar contra o crime organizado.
Os narcotraficantes
haitianos trabalhavam então estreitamente com o cartel de Medellín, na
Colômbia, segundo um dos diretores do Centro de Estudos Latino-Americanos e
Caribenhos da Universidade de Essex, no Reino Unido, Nicolas Forsans.
O Haiti funcionava
como intermediário do tráfico de drogas da Colômbia para os Estados Unidos.
Isso corrompeu muitos funcionários e policiais "e se tornou uma fonte de
renda pouco conhecida, mas considerável, para as elites políticas e
empresariais do Haiti, que ofereciam proteção e apoio logístico aos
narcotraficantes", explica Forsans no site de notícias acadêmicas The
Conversation.
O terremoto de 2010
permitiu que muitos chefes de facções criminosas fugissem da prisão. Isso
incentivou as gangues, que realizaram sequestros, ataques à polícia, aos meios
de comunicação e a políticos. Elas transformaram o dia a dia de muitos
haitianos em um inferno.
Atualmente, a maioria
das gangues é afiliada a duas facções predominantes: a G-9 e Família, chefiada
por Jimmy Chérizier, conhecido como "Barbecue", e a G-Pep, liderada
por Gabriel Jean-Pierre.
Fundada em 2020, a G-9
é vinculada ao Partido Haitiano Tèt Kale (PHTK), de Moïse e Henry. A
organização supostamente angariou votos para o partido, segundo o portal
especializado Insight Crime.
A gangue controla
atividades econômicas fundamentais, como o porto da capital, terminais
petrolíferos e os pontos de entrada e saída de Porto Príncipe.
A G-Pep está sediada
em Cité Soleil, o bairro mais pobre e mais povoado da capital. Ela é
principalmente apoiada pelos opositores do PHTK, "embora não esteja claro
até que ponto ela recebe apoio material ou financeiro desses opositores
atualmente", destacava Insight Crime em um relatório de dois anos atrás.
Estimativas da ONU
indicam que o número de mortos pela violência das gangues duplicou no ano
passado, superando a marca de 5 mil assassinatos.
A polícia conta com
poucos recursos para enfrentá-las e muitos agentes abandonaram a força policial
no último ano, segundo um relatório das Nações Unidas.
Atualmente, existe no
Haiti 1,3 policial para cada 1 mil habitantes. O padrão internacional é de 2,2.
Além disso, a
violência se estendeu das cidades para a zona rural. E, para o secretário-geral
da ONU, António Guterres, este é "mais um motivo sério de alarme".
• 3. Dívida e intervenção estrangeira
O Haiti foi o primeiro
país latino-americano a declarar independência. É a república negra mais antiga
do mundo e a segunda república mais antiga do hemisfério ocidental, atrás
apenas dos Estados Unidos.
A rebelião iniciada
pelas pessoas escravizadas em 1791 contra os colonizadores franceses culminou
com a declaração de independência do Haiti, em 1804.
Mas a liberdade teve
um preço. A luta pela libertação do domínio francês destruiu a maior parte das
plantações e da infraestrutura do país, deixando o Haiti em graves dificuldades
econômicas.
Nenhum país quis
reconhecer diplomaticamente o Haiti, até que a França concordou com o
reconhecimento da independência em 1825. Mas não sem condições: o novo país
deveria pagar reparações pelas fazendas perdidas e pelas pessoas escravizadas
que foram libertadas. Caso contrário, iria enfrentar uma guerra.
Foi assim que o Haiti
se comprometeu a pagar uma indenização de 150 milhões de francos (cerca de US$
21 bilhões em valores de hoje, ou R$ 104,6 bilhões), em cinco parcelas.
Mas a receita anual do
governo haitiano representava apenas 10% do valor exigido pela França, de forma
que o país não contava com os fundos necessários para fazer os pagamentos. Para
isso, o Haiti precisava pedir um empréstimo.
A antiga metrópole
concordou, desde que fosse contratado junto a um banco francês. E assim começou
formalmente o que é conhecido como a dívida da Independência.
As comissões
draconianas impostas pelo banco Crédit Industriel et Commercial (hoje, CIC)
fizeram com que o novo país passasse a ter duas dívidas: a já contratada com a
França e outra, com o banco francês.
O Haiti precisou pedir
enormes empréstimos a bancos norte-americanos, franceses e alemães, com taxas
de juros exorbitantes. O país foi obrigado a destinar a maior parte do
orçamento nacional ao pagamento da dívida.
O Haiti só terminou de
compensar os donos das plantações da colônia francesa em 1947. Mas a França não
foi o único país que ocupou e esvaziou os cofres daquela que, um dia, foi a
pérola das Antilhas.
Em 1915, 330
fuzileiros navais dos Estados Unidos desembarcaram em Porto Príncipe para
defender os interesses das empresas norte-americanas no país, tomado pela
instabilidade política. E esta primeira incursão foi seguida por outra ainda
maior.
Os Estados Unidos
assumiram o controle da alfândega e das principais instituições econômicas do
Haiti, como os bancos e o tesouro nacional – que foi praticamente esvaziado
para pagar as dívidas com as empresas norte-americanas.
Em 1922, Washington
obrigou o Haiti a tomar empréstimos de Wall Street, o que deixou o país afogado
em novas dívidas. A ocupação americana durou até 1943, mas o controle
financeiro do país se prolongou por décadas.
• 4. Pobreza
Toda essa
instabilidade política, aliada à violência e à espoliação financeira, trouxe
consequências evidentes ao país e seus habitantes. O Haiti, hoje, é o país mais
pobre da América Latina e do Caribe – e um dos mais pobres do mundo.
Seu PIB per capita, em
paridade do poder de compra, foi de apenas US$ 3.306 (cerca de R$ 16,5 mil) em
2022, segundo o Banco Mundial. E este número não considera a desigualdade de
renda entre seus habitantes.
Em termos
comparativos, o PIB per capita médio da América Latina e do Caribe no mesmo
período foi de US$ 19.269 (cerca de R$ 95,9 mil).
O Haiti também ocupa o
163º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano calculado pela ONU, em um total
de 191 países.
Mais da metade da sua
população vive abaixo do limite da pobreza. A estimativa de vida é de pouco
mais de 64 anos, principalmente devido às péssimas condições de vida em grande
parte do país e à fragilidade do seu sistema de saúde.
A fome e a desnutrição
também atingiram níveis sem precedentes, com efeitos potencialmente mortais,
segundo as Nações Unidas.
Em 2023, três milhões
de crianças – o maior número já registrado – precisavam de ajuda humanitária no
Haiti. Quase uma em cada três crianças sofre desnutrição crônica no país.
A situação é
particularmente grave nos bairros assolados pela violência. Um exemplo é Cité
Soleil, em Porto Príncipe, que mantém um triste recorde: aquele foi, por anos,
o bairro mais pobre da capital mais pobre do país mais pobre do continente
americano.
As péssimas condições
sanitárias enfrentadas por grande parte da população haitiana também fazem com
que algumas doenças transmissíveis causem graves danos.
O país tem, por
exemplo, uma das taxas de incidência de tuberculose mais altas da região. A
cólera causou cerca de 10 mil mortes após o terremoto que devastou o país em
2010 e, agora, voltou a surgir em alguns pontos do Haiti.
E 1,7% da população
adulta é portadora do vírus HIV, segundo os números do Programa Conjunto das
Nações Unidas sobre o HIV/AIDS (UNAIDS).
Some-se ainda que
cerca de 40% da população é de analfabetos, segundo dados do Banco Mundial – e
apenas a metade das crianças frequenta a escola, pelos números do Unicef.
Com um Estado
debilitado e sacudido por desastres naturais periódicos, o país tem
infraestrutura extremamente pobre.
Todas estas razões fizeram
do Haiti um país seriamente dependente da ajuda internacional. Calcula-se que,
entre 2011 e 2021, o país caribenho tenha recebido pelo menos US$ 13 bilhões
(cerca de R$ 64,7 bilhões) em auxílio.
Ainda assim, o Haiti
continua sendo um país pobre, em parte, porque esta dependência internacional
substituiu o Estado, que deixou de estar presente entre a população. É o que
afirmam economistas como Jake Johnston, do think tank Centro de Pesquisa Econômica
e Política, com sede nos Estados Unidos.
"Nos últimos 30 e
poucos anos, observamos a terceirização do Estado haitiano", declarou
Johnston ao jornalista Ronald Ávila-Claudio, da BBC News Mundo.
"Mesmo antes do
terremoto de 2010, 80% dos serviços públicos no Haiti tinham controladores
privados, sejam eles organizações sem fins lucrativos, igrejas, bancos de
desenvolvimento ou o setor privado, mas não o Estado."
• 5. Desastres naturais
O Haiti é
especialmente vulnerável aos desastres naturais devido à sua própria geografia.
O país se encontra no
caminho dos furacões do Oceano Atlântico e repousa sobre duas falhas geológicas
que o tornam um território com alta atividade sísmica. Mas algumas das piores
consequências desses desastres naturais foram agravadas pela mão humana.
A pobreza e o quase
desaparecimento do Estado propiciaram o desmatamento e a degradação ambiental,
que multiplica o efeito dos furacões. Paralelamente, a precariedade das
construções faz com que o número de vítimas e destroços dos terremotos seja
muito maior.
Dos quase 12 milhões
de habitantes do Haiti, 96% estão expostos a este tipo de desastre.
O Haiti fica no
extremo ocidental da ilha de La Hispaniola, dividida entre o país e a República
Dominicana. Seu terreno é acidentado, marcado pelos vales e a maior parte da
população está concentrada no litoral.
O Banco Mundial
calcula que 98% das suas florestas tenham sido derrubadas, principalmente para
a produção de lenha e carvão. Isso causou a erosão do solo e forte escassez de
água potável.
A erosão do solo não
afeta apenas a agricultura. Ela torna o Haiti ainda mais vulnerável aos
furacões e tempestades tropicais que atingem periodicamente o país, causando
graves inundações e deslizamentos de terra.
Em 2016, por exemplo,
a passagem do furacão Matthew causou danos de mais de 32% do Produto Interno
Bruto (PIB) do país.
O Haiti também está
localizado em meio a um vasto sistema de falhas geológicas, resultantes da
movimentação da placa do Caribe e da enorme placa da América do Norte. A Falha
de Enriquillo-Plantain Garden atravessa todo o sul do país, enquanto a Falha
Setentrional Oeste percorre o norte.
Elas provocaram alguns
dos terremotos mais devastadores dos últimos tempos, como o de magnitude 7 que
sacudiu o país em 2010. Nele, morreram 250 mil pessoas e, segundo o Banco
Mundial, foi destruído o equivalente a 120% do PIB do Haiti.
Em outros países do
mundo, como o Chile e o Japão, ocorrem terremotos de magnitude similar ou até
superior, sem produzir o mesmo número de vítimas. Mas as estruturas de concreto
simples das cidades haitianas, sem nenhum amortecimento, desmoronaram como um
castelo de cartas.
Em 2021, a natureza
atacou em duas frentes. Um terremoto de magnitude 7,2 matou cerca de 2 mil
pessoas e destruiu 30% da península ao sul do país. Poucos dias depois, a
tempestade tropical Grace exacerbou a situação, causando inundações e
deslizamentos de terra.
E os especialistas
advertem que as consequências da crise climática só irão piorar a situação
desse país já flagelado por inúmeros males.
Fonte: Por Paula Rosas
e equipe de Jornalismo Visual da BBC World Service
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