Desenvolvimento de câncer está ligado a
lesões no DNA durante o processo de envelhecimento
O Instituto Nacional
do Câncer dos Estados Unidos indica que a idade média de início do câncer é de
66 anos e que mais da metade de novos casos no Reino Unido são diagnosticados
em pessoas com mais de 70 anos. Segundo estudos, essa relação do câncer com a
idade não é apenas uma coincidência e o risco da doença avança conforme o
envelhecimento. O professor Carlos Frederico Menck, do Instituto de Ciências
Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), explica que a causa está
relacionada a lesões no DNA das nossas células.
• Lesões no DNA
A ideia mais
prevalente, segundo o especialista, do câncer estar correlacionado ao processo
de envelhecimento, é o acúmulo de lesões no DNA conforme a pessoa vive.
Diferentemente de mutações, como ocorre no câncer, as lesões são alterações na
estrutura do material genético das células. “O oxigênio que a gente respira é
considerado um dos grandes vilões de lesões no DNA. Você tem possibilidade de
ter um estresse oxidativo, como se tivesse oxidando a molécula de DNA e a
célula”, completa.
O docente explica que
essas lesões provocam um estresse transcricional, processo de síntese de RNA a
partir de DNA, e isso prejudica a célula, podendo levar à morte de células
importantes na recuperação do corpo, como células tronco. Além das lesões endógenas,
relacionadas ao processo da vida, Menck também alerta que o cigarro, a poluição
atmosférica, o álcool em exagero — gerando aldeídos — e a inflamação crônica
podem ser outros causadores de lesões no material genético das células.
• Relação com o câncer
“O acúmulo dessas
lesões não quer dizer que você vai ter necessariamente câncer. Isso tem um
papel importante a nível de envelhecimento, mas as lesões em si podem gerar
alterações na sequência das bases do DNA, mutações, consideradas as principais
causas da formação de câncer, então a correlação é direta”, afirma o professor.
Ele ainda complementa que as mutações podem desenvolver uma célula tumoral,
causando o tumor através de sua replicação.
“A gente tem uma
defesa, o sistema imunológico está nos defendendo o tempo todo de tumores, mas,
com o passar do tempo, algumas células conseguem escapar desse controle
imunológico e desenvolver o tumor, então, é uma questão temporal que aumenta
violentamente com a idade”, relata. Menck ainda diz que um ponto que confirma
essa relação entre o câncer e as lesões no DNA são doenças genéticas raras,
estudadas pelo docente, que prejudicam o reparo do material genético dos
afetados, provocando câncer mesmo com uma idade precoce.
Sobre o tratamento do
câncer, o professor cita a quimioterapia, existente desde as décadas de 1960 e
1970, que lesa o DNA da célula tumoral, e comenta sobre alguns avanços mais
recentes da ciência e medicina, como o surgimento da imunoterapia, em que o freio
do sistema imunológico é reduzido, mantendo-o ativado para combater a célula
tumoral em vários pontos, ou a terapia gênica CAR-T, que faz um linfócito T da
própria pessoa reconhecer e atacar a célula tumoral. “Esse tipo de tratamento
ainda está começando, mas ele nos dá algumas esperanças; no entanto, depende do
tipo de tumor, do estado em que ele está e do que ele pode fazer. Mas a
imunoterapia já é uma realidade, para alguns tumores ela tem funcionado
bastante bem”, finaliza.
O falso salto da molécula para o
coletivo: o exemplo do câncer. Por Paulo A. Lotufo
Semana passada, o
jornal Folha de S. Paulo divulgou entrevista realizada anteriormente pela BBC
sobre um livro de pesquisador espanhol abordando impacto do câncer na
sociedade. O entrevistado é biólogo molecular e avança em temas da clínica
médica e da epidemiologia com frases de efeito como “não tenho medo do câncer
nem de nenhuma outra doença; tomara que as que couberem a mim, como ser
biológico, cheguem o mais tarde possível”. Um equívoco básico, somos antes de
tudo seres sociais. Depois, ele garante ter uma predestinação genômica ao
declarar: “Tenho 63 anos, me parece uma façanha cósmica, resistindo a milhares
e milhares de mudanças diárias no meu genoma”. O título da matéria é
sensacionalista: “Me parece claro que o assombroso não é ter câncer, mas sim
não tê-lo”.
Ele tenta explicar sua
tese com um conceito popular difundido por Richard Dawkins: as células que
provocam o câncer assim o fazem porque se tornam “egoístas”. O “gene egoísta” é
tema polêmico a ser abordado em outro momento. O entrevistado desconhece epidemiologia,
mas avança na filosofia ao afirmar: “Quando você observa os milhões de reações
bioquímicas que fazem cada instante possível, o apreço pela vida é infinito”.
Todo o arrazoado
apresentado é um exemplo do reducionismo biológico de qualidade ruim que
precisa ser pontuado em cinco tópicos: a ausência de menção ao cigarro, o
desconhecimento da evolução temporal das doenças, o efeito competitivo de
causas de morte, a prevenção do câncer e perspectivas do câncer no cenário
epidemiológico.
O primeiro ponto é
preocupante. Os editores deveriam questionar por que o entrevistado
repetidamente afirma que o “câncer é genético”, mas nada diz sobre o tabagismo.
Há mais de 70 anos, na coorte dos médicos ingleses se mostrou que o tabagismo é
a causa principal do câncer. No caso da neoplasia de pulmão, 90% dos casos são
devidos ao consumo de cigarro. Assim, ainda em 2021, a despeito da queda da
prevalência do tabagismo na população do País, o câncer de pulmão é a neoplasia
que mais mata brasileiros de ambos os sexos.
O segundo ponto é que
o entrevistado desconhece que todas as doenças têm evoluções temporais com
aumento de casos e mortes, estabilização desses números e, depois, quedas da
incidência como da mortalidade. Exemplificando: até a metade do século passado,
as doenças infecciosas como pneumonia, tuberculose, enterites eram as
principais causas de morte no Brasil e no mundo. Com a melhoria de saneamento e
a introdução de antibióticos, essas doenças passaram a ter letalidade cada vez
menor. Por atingirem os mais jovens, as novas gerações beneficiadas com essas
melhorias passaram a morrer mais de doenças cardiovasculares.
Na década de 1950
houve aumento importante na incidência e mortalidade das doenças
cardiovasculares, que se tornaram a principal causa de morte. Novamente estudos
de coortes, no caso o Framingham Heart Study, mostrou que o trio colesterol
alto-hipertensão-tabagismo era determinante na mortalidade cardiovascular. Em
decorrência desse conhecimento, várias ações de saúde pública e novos
medicamentos para redução de pressão arterial e do colesterol permitiram uma
queda da mortalidade cardiovascular, mesmo assim persiste como a principal
causa de morte no Brasil e no mundo.
O terceiro ponto é o
sucesso da cardiologia preventiva. A letalidade cardiovascular se reduziu e,
com isso, efeitos prolongados do tabagismo, como cânceres e as doenças
pulmonares, aumentaram em proporção maior que anteriormente, pela queda da
mortalidade cardíaca, o que denominamos “efeito competitivo da mortalidade”. No
entanto, o risco de morte por todas as causas de câncer se reduz ano a ano
desde 2005 para ambos os sexos. A mortalidade por câncer de mama está estável e
por próstata em declínio.
O quarto ponto é que o
entrevistado de relance cita causas não genéticas de câncer, como HPV (cânceres
de colo uterino, pênis e cabeça e pescoço) e Helicobacter pylori (câncer de
estômago). Justamente, a detecção precoce de lesões uterinas causadas pelo HPV
(Papanicolau) e a vacina para o vírus permitiram redução importante na
incidência e letalidade do câncer de colo uterino. A melhora no saneamento e no
acondicionamento de alimentos permitiu redução da prevalência do Helicobacter
(e de outros carcinógenos em alimentos preparados), que produziu uma queda na
incidência e mortalidade do câncer de estômago. Como já dito, a principal
prevenção de todos os cânceres foram as políticas públicas de redução do
tabagismo.
O quinto tópico é que
o câncer não é inevitável. As causas de morte que estão em ascensão a partir
dos 70 anos de idade são a doença de Alzheimer, a doença de Parkinson, para
ambos os sexos, e doença renal para os homens brasileiros. Para compreender as causas
do aumento da mortalidade por essas novas causas, novamente as coortes irão
responder, incluindo o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto, o Elsa-Brasil,
que acompanha 15.105 adultos desde 2008.
A importância em
mostrar os equívocos sérios publicados com grande destaque na imprensa
brasileira é advertir que as pesquisas em bancadas são meritórias e válidas,
mas que não podem ser extrapoladas para o indivíduo, para isso existe o
conhecimento milenar da Clínica Médica, como principalmente para populações,
para isso existe o conhecimento de décadas da Epidemiologia. Esta é uma
advertência tanto para pesquisadores como para aqueles dedicados à divulgação
científica: não transponham resultados de bancada para populações.
Nota final: o autor e
os pesquisadores do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica são
organizadores do Elsa-Brasil e participam do consórcio Global Burden of
Diseases (GBD), cujos resultados até 2021 foram aceitos por The Lancet, mas
ainda se encontram sob embargo.
Fonte: Jornal da USP
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