sábado, 2 de março de 2024

Desenvolvimento de câncer está ligado a lesões no DNA durante o processo de envelhecimento

O Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos indica que a idade média de início do câncer é de 66 anos e que mais da metade de novos casos no Reino Unido são diagnosticados em pessoas com mais de 70 anos. Segundo estudos, essa relação do câncer com a idade não é apenas uma coincidência e o risco da doença avança conforme o envelhecimento. O professor Carlos Frederico Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), explica que a causa está relacionada a lesões no DNA das nossas células.

•        Lesões no DNA

A ideia mais prevalente, segundo o especialista, do câncer estar correlacionado ao processo de envelhecimento, é o acúmulo de lesões no DNA conforme a pessoa vive. Diferentemente de mutações, como ocorre no câncer, as lesões são alterações na estrutura do material genético das células. “O oxigênio que a gente respira é considerado um dos grandes vilões de lesões no DNA. Você tem possibilidade de ter um estresse oxidativo, como se tivesse oxidando a molécula de DNA e a célula”, completa.

O docente explica que essas lesões provocam um estresse transcricional, processo de síntese de RNA a partir de DNA, e isso prejudica a célula, podendo levar à morte de células importantes na recuperação do corpo, como células tronco. Além das lesões endógenas, relacionadas ao processo da vida, Menck também alerta que o cigarro, a poluição atmosférica, o álcool em exagero — gerando aldeídos — e a inflamação crônica podem ser outros causadores de lesões no material genético das células.

•        Relação com o câncer

“O acúmulo dessas lesões não quer dizer que você vai ter necessariamente câncer. Isso tem um papel importante a nível de envelhecimento, mas as lesões em si podem gerar alterações na sequência das bases do DNA, mutações, consideradas as principais causas da formação de câncer, então a correlação é direta”, afirma o professor. Ele ainda complementa que as mutações podem desenvolver uma célula tumoral, causando o tumor através de sua replicação.

“A gente tem uma defesa, o sistema imunológico está nos defendendo o tempo todo de tumores, mas, com o passar do tempo, algumas células conseguem escapar desse controle imunológico e desenvolver o tumor, então, é uma questão temporal que aumenta violentamente com a idade”, relata. Menck ainda diz que um ponto que confirma essa relação entre o câncer e as lesões no DNA são doenças genéticas raras, estudadas pelo docente, que prejudicam o reparo do material genético dos afetados, provocando câncer mesmo com uma idade precoce.

Sobre o tratamento do câncer, o professor cita a quimioterapia, existente desde as décadas de 1960 e 1970, que lesa o DNA da célula tumoral, e comenta sobre alguns avanços mais recentes da ciência e medicina, como o surgimento da imunoterapia, em que o freio do sistema imunológico é reduzido, mantendo-o ativado para combater a célula tumoral em vários pontos, ou a terapia gênica CAR-T, que faz um linfócito T da própria pessoa reconhecer e atacar a célula tumoral. “Esse tipo de tratamento ainda está começando, mas ele nos dá algumas esperanças; no entanto, depende do tipo de tumor, do estado em que ele está e do que ele pode fazer. Mas a imunoterapia já é uma realidade, para alguns tumores ela tem funcionado bastante bem”, finaliza.

 

       O falso salto da molécula para o coletivo: o exemplo do câncer. Por Paulo A. Lotufo

 

Semana passada, o jornal Folha de S. Paulo divulgou entrevista realizada anteriormente pela BBC sobre um livro de pesquisador espanhol abordando impacto do câncer na sociedade. O entrevistado é biólogo molecular e avança em temas da clínica médica e da epidemiologia com frases de efeito como “não tenho medo do câncer nem de nenhuma outra doença; tomara que as que couberem a mim, como ser biológico, cheguem o mais tarde possível”. Um equívoco básico, somos antes de tudo seres sociais. Depois, ele garante ter uma predestinação genômica ao declarar: “Tenho 63 anos, me parece uma façanha cósmica, resistindo a milhares e milhares de mudanças diárias no meu genoma”. O título da matéria é sensacionalista: “Me parece claro que o assombroso não é ter câncer, mas sim não tê-lo”.

Ele tenta explicar sua tese com um conceito popular difundido por Richard Dawkins: as células que provocam o câncer assim o fazem porque se tornam “egoístas”. O “gene egoísta” é tema polêmico a ser abordado em outro momento. O entrevistado desconhece epidemiologia, mas avança na filosofia ao afirmar: “Quando você observa os milhões de reações bioquímicas que fazem cada instante possível, o apreço pela vida é infinito”.

Todo o arrazoado apresentado é um exemplo do reducionismo biológico de qualidade ruim que precisa ser pontuado em cinco tópicos: a ausência de menção ao cigarro, o desconhecimento da evolução temporal das doenças, o efeito competitivo de causas de morte, a prevenção do câncer e perspectivas do câncer no cenário epidemiológico.

O primeiro ponto é preocupante. Os editores deveriam questionar por que o entrevistado repetidamente afirma que o “câncer é genético”, mas nada diz sobre o tabagismo. Há mais de 70 anos, na coorte dos médicos ingleses se mostrou que o tabagismo é a causa principal do câncer. No caso da neoplasia de pulmão, 90% dos casos são devidos ao consumo de cigarro. Assim, ainda em 2021, a despeito da queda da prevalência do tabagismo na população do País, o câncer de pulmão é a neoplasia que mais mata brasileiros de ambos os sexos.

O segundo ponto é que o entrevistado desconhece que todas as doenças têm evoluções temporais com aumento de casos e mortes, estabilização desses números e, depois, quedas da incidência como da mortalidade. Exemplificando: até a metade do século passado, as doenças infecciosas como pneumonia, tuberculose, enterites eram as principais causas de morte no Brasil e no mundo. Com a melhoria de saneamento e a introdução de antibióticos, essas doenças passaram a ter letalidade cada vez menor. Por atingirem os mais jovens, as novas gerações beneficiadas com essas melhorias passaram a morrer mais de doenças cardiovasculares.

Na década de 1950 houve aumento importante na incidência e mortalidade das doenças cardiovasculares, que se tornaram a principal causa de morte. Novamente estudos de coortes, no caso o Framingham Heart Study, mostrou que o trio colesterol alto-hipertensão-tabagismo era determinante na mortalidade cardiovascular. Em decorrência desse conhecimento, várias ações de saúde pública e novos medicamentos para redução de pressão arterial e do colesterol permitiram uma queda da mortalidade cardiovascular, mesmo assim persiste como a principal causa de morte no Brasil e no mundo.

O terceiro ponto é o sucesso da cardiologia preventiva. A letalidade cardiovascular se reduziu e, com isso, efeitos prolongados do tabagismo, como cânceres e as doenças pulmonares, aumentaram em proporção maior que anteriormente, pela queda da mortalidade cardíaca, o que denominamos “efeito competitivo da mortalidade”. No entanto, o risco de morte por todas as causas de câncer se reduz ano a ano desde 2005 para ambos os sexos. A mortalidade por câncer de mama está estável e por próstata em declínio.

O quarto ponto é que o entrevistado de relance cita causas não genéticas de câncer, como HPV (cânceres de colo uterino, pênis e cabeça e pescoço) e Helicobacter pylori (câncer de estômago). Justamente, a detecção precoce de lesões uterinas causadas pelo HPV (Papanicolau) e a vacina para o vírus permitiram redução importante na incidência e letalidade do câncer de colo uterino. A melhora no saneamento e no acondicionamento de alimentos permitiu redução da prevalência do Helicobacter (e de outros carcinógenos em alimentos preparados), que produziu uma queda na incidência e mortalidade do câncer de estômago. Como já dito, a principal prevenção de todos os cânceres foram as políticas públicas de redução do tabagismo.

O quinto tópico é que o câncer não é inevitável. As causas de morte que estão em ascensão a partir dos 70 anos de idade são a doença de Alzheimer, a doença de Parkinson, para ambos os sexos, e doença renal para os homens brasileiros. Para compreender as causas do aumento da mortalidade por essas novas causas, novamente as coortes irão responder, incluindo o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto, o Elsa-Brasil, que acompanha 15.105 adultos desde 2008.

A importância em mostrar os equívocos sérios publicados com grande destaque na imprensa brasileira é advertir que as pesquisas em bancadas são meritórias e válidas, mas que não podem ser extrapoladas para o indivíduo, para isso existe o conhecimento milenar da Clínica Médica, como principalmente para populações, para isso existe o conhecimento de décadas da Epidemiologia. Esta é uma advertência tanto para pesquisadores como para aqueles dedicados à divulgação científica: não transponham resultados de bancada para populações.

Nota final: o autor e os pesquisadores do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica são organizadores do Elsa-Brasil e participam do consórcio Global Burden of Diseases (GBD), cujos resultados até 2021 foram aceitos por The Lancet, mas ainda se encontram sob embargo.

 

Fonte: Jornal da USP

 

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