Corporativismo: Ministros do STM ignoram
perícia e votam por absolver militares pela morte de Evaldo Rosa
Depois de uma longa
sessão que durou mais de seis horas, o clima no auditório do Superior Tribunal
Militar (STM) em Brasília, no dia 29 de fevereiro, era de congratulações.
Ministros vieram apertar as mãos do advogado Rodrigo Roca, que defende os
militares que mataram o músico Evaldo Rosa e o catador de recicláveis Luciano
Macedo em 7 de abril de 2019.
A defesa saiu com uma
enorme vitória da primeira audiência do caso na corte superior.
Para o ministro
relator, os oito militares condenados em primeira instância a penas de prisão
em regime fechado entre 28 e 31 anos devem ser absolvidos pela morte de Evaldo
Rosa.
O
tenente-brigadeiro-do-ar Carlos Augusto Amaral Oliveira afirmou que os
soldados agiram em legítima defesa porque teriam trocado tiros com assaltantes
no momento em que Evaldo foi atingido pelo primeiro tiro, que acertou a
base de suas costas, na região lombar, próxima dos rins.
Naquela tarde, os
militares tentaram impedir um assalto a mão armada na estrada do Caboatá, na
região de Guadalupe, no Rio. Os assaltantes fugiram, e a patrulha atirou,
em vez disso, no carro em que Evaldo Rosa e sua família se dirigiam a um chá de
bebê.
Segundo o relator, o
músico teria sido atingido num contexto de legítima defesa. “Infelizmente,
durante o embate com os assaltantes, um dos projéteis atingiu o veículo do Sr.
Evaldo Rosa, causando uma das lesões que pode ter o levado à morte naquele instante”,
disse o ministro.
Depois do primeiro
tiro, o carro parou diante de um prédio residencial e os soldados iniciaram uma
segunda rajada, matando o catador de recicláveis Luciano Macedo, que tentava
ajudar Evaldo abrindo a porta do motorista.
No total, Evaldo
recebeu nove tiros de fuzil.
Para chegar à
conclusão, Carlos Augusto fez uma ginástica retórica. Para o ministro,
Evaldo já estava falecido após o primeiro tiro, o que significa que condenar os
militares pela segunda rajada seria um “crime impossível”, “já que o Sr.
Evaldo estaria sem vida”.
Assim, ele decidiu
contrariar o resultado do laudo produzido ao longo da investigação liderada
pelo Ministério Público Militar (MPM). O laudo cadavérico atesta morte
instantânea por hemorragia e laceração encefálica, o que condiz com um dos
tiros da segunda rajada, que acertou sua cabeça quando o carro já estava
parado.
Carlos Augusto do
Amaral preferiu embasar sua decisão em duas testemunhas que dizem acreditar que
o músico já estava morto quando o carro parou. “Não se deve atribuir um valor
absoluto ao laudo policial contra as duas versões das vítimas do fato”, afirmou
o ministro.
O MPM alega que não há
nenhuma prova de que houve, de fato, troca de tiros, uma vez que a caminhonete
Marruá onde iam os soldados não sofreu nenhum dano e não foram encontradas
outras balas além das do Exército.
O que as perícias
ajuntadas nos autos comprovam é que os soldados atiraram 257 vezes naquele dia
e acertaram 62 tiros contra o carro de Evaldo.
O voto do ministro da
mais alta corte militar foi recebido com surpresa pelo advogado de acusação que
representa as viúvas de Evaldo e Luciano. “Eu realmente tinha muita confiança
que o Superior Tribunal Militar fosse manter a decisão de primeira instância,
uma vez que a prova é muito forte no sentido de que o que houve ali foi uma
execução. Foram 257 tiros contra vítimas indefesas”, disse André
Perecmanis.
Conforme revelou
a Agência Pública na série Efeito Colateral, houve pelo menos 35 mortes de civis por militares entre
2010 e 2020. Nos casos que foram a julgamento pela Justiça Militar e nenhum dos
perpetradores foi punido.
O caso de Evaldo Rosa
foi o primeiro em que houve condenação na primeira instância – mas, conforme
ficou claro no julgamento de ontem, isso pode ser revertido no STM.
>>>> Por
que isso importa?
- O duplo assassinato era o único caso de militares
condenados por matarem civis durante operações de segurança pública no Rio
de Janeiro. Agora, a corte suprema da Justiça Militar sinaliza que pode
reverter a condenação sobre a morte de Evaldo e abrandar a pena em relação
à de Luciano
- Em outros mais de 35 casos semelhantes de crimes de
militares contra civis, a Justiça Militar foi leniente
>>>> Penas
de 3 anos em regime aberto
O voto do ministro relator – que não foi compartilhado na íntegra com a imprensa –
enfocou ainda a questão do dolo, ou seja, a intenção de matar Luciano Macedo,
além do sogro de Evaldo Rosa, Sérgio Gonçalvez de Araújo, que só teve
ferimentos leves porque se escondeu entre o painel e o banco do carona durante
a segunda rajada de tiros.
“Não é crível que os
apelantes tivessem saído de suas casas, do quartel onde serviam, com o
propósito de ceifar a vida de civis, ou de praticar deliberadas chacinas”,
disse o brigadeiro.
Ele abraçava, em
parte, a principal tese apresentada pela defesa dos réus. O advogado
Rodrigo Roca argumentou que não havia nenhuma outra postura possível por parte
dos soldados, e instou os ministros a refletirem o que eles fariam se fossem
vistos na mesma situação.
O Superior Tribunal
Militar é composto por cinco juízes civis e dez militares da mais alta patente,
sendo quatro do Exército, três da Marinha e três da Aeronáutica.
O relator acatou
parcialmente a tese da defesa de defesa putativa, ou seja, que os soldados
acreditavam estar sob ameaça de traficantes. A tese ficou conhecida como
“legítima defesa imaginária” ao ser usada na Justiça Militar para absolver militares que deixaram paraplégico o jovem Vitor Santiago durante a
ocupação do Complexo da Maré, em 2015.
“É notório que os
apelantes estavam sob forte tensão no dia do ocorrido”, disse o ministro Carlos
Augusto Amaral Oliveira.
O brigadeiro da
Aeronáutica argumentou que a tese de autodefesa ilusória se sustentaria pelo
fato de Luciano estar vestido sem camisa e de chinelo – com trajes semelhantes,
portanto, a um dos assaltantes do carro – além do Ford Ka de Evaldo ser da
mesma marca do carro dos assaltantes.
Outro motivo seria que
Luciano teria tentado se proteger atrás da porta do carro, o que “reforça a
tese de que Luciano representava uma ameaça imaginária aos apelantes ao se
proteger por trás da porta do veículo, o qual possuía insulfilm nos
vidros, podemos gerar a conclusão de que tornaria a utilizar a arma”.
Luciano estava
desarmado.
O relator, no entanto,
ressaltou que os soldados não seguiram as regras de engajamento, que determinam
o uso da força progressiva e proporcional, atirando “somente na direção do
agressor claramente identificado, utilizar força mínima e não matar”.
“Mesmo diante da
tensão vivida naquele momento, pela experiência que possuíam, não poderiam se
afastar da cautela de aguardar o momento da suposta ação agressora que
imaginaram para reagir”, disse.
No final, o
ministro relator decidiu que, em vez de manter a condenação por duplo homicídio
qualificado e um homicídio tentado, os oito militares devem ser condenados
apenas pelo homicídio culposo – sem intenção de matar. Quanto à tentativa
de assassinato de Sérgio, ele sugeriu alterar para lesão corporal, cuja pena já
teria caducado.
Para ele, apenas o
tenente que comandava a unidade, Ítalo da Silva Nunes, deve receber pena
ligeiramente maior, de 3 anos e 10 meses em regime aberto. Os demais militares
devem receber penas de 3 anos e 2 meses em regime aberto.
No entanto, o
brigadeiro-do-ar decidiu proteger Ítalo Nunes, em relação à exclusão das Forças
Armadas. Pelo seu voto, todos os sete militares de patentes mais baixas devem
ser excluídos, com exceção do tenente, que era o único oficial presente, de
patente superior.
Segundo a defesa, por
serem temporários, apenas 4 dos 11 militares envolvidos na morte seguem no
Exército.
O ministro revisor,
José Coelho Ferreira, acompanhou na íntegra o voto de Carlos Augusto Amaral
Oliveira.
Após o voto, a
ministra Elizabeth Rocha, única mulher a integrar o STM na história, pediu
vista dos autos para formar sua decisão. Não há previsão de quando o julgamento
será retomado.
“Os votos do relator e
do revisor costumam ter muito peso, mas a doutora Maria Elizabeth é uma juíza
togada, muito técnica, então a gente tem uma expectativa de que ela reverta
esse entendimento e consiga trazer a solução para a solução realmente mais correta”,
afirmou o advogado André Perecmanis.
>>>> Quem
são os ministros que votaram pela absolvição pela morte de Evaldo Rosa
- Carlos Augusto Amaral Oliveira, ministro relator
– Nascido em 1960 no Rio de Janeiro, é bacharel em direito pela
Universidade de Brasília e pós-graduado em análise de sistemas pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Durante a gestão do
ex-presidente Michel Temer, Oliveira assumiu o cargo de secretário-geral
do Ministério da Defesa, indicado pelo então ministro Joaquim Silva e
Luna. Posteriormente, em janeiro de 2019, após a posse do presidente Jair
Bolsonaro, foi nomeado chefe do Estado-Maior da Aeronáutica, consolidando
sua posição de liderança nas Forças Armadas. Em 2020, foi indicado
pelo então presidente Jair Bolsonaro para ocupar o cargo de ministro do
Superior Tribunal Militar (STM).
- José Coelho Ferreira, revisor – Nascido em 11 de abril
de 1950 em Novo Oriente, Ceará, é vice-presidente do Superior Tribunal
Militar (STM). Natural de Novo Oriente, no Ceará, formou-se em Direito
pela Universidade de Brasília em 1973. Iniciou sua carreira como agente de
polícia e, em seguida, ocupou diversos cargos jurídicos, incluindo
assistente jurídico do DASP e procurador-geral do Banco Central do Brasil.
Em agosto de 2001, foi indicado por Fernando Henrique Cardoso como
ministro do STM, mas sua sabatina foi marcada por controvérsias devido a um parecer que assinou em 1992 inocentando
Jader Barbalho de desvios de verba do banco estadual Banpará, que foram
depois apontados pelo Ministério Público e por auditores fiscais do Banco
Central.
Fonte: Por Natalia
Viana, da Agencia Pública
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