Adhemar Bahadian: De que Brasil estamos a
falar, quando falamos do Brasil?
Às vezes me surpreendo
com o que leio e ouço sobre o Brasil. Ainda esta semana, soubemos que o PIB
cresceu praticamente 3% no ano de 2023. Anunciou-se timidamente que
ultrapassamos o Canada e passamos a ser a nona economia mundial.
Noves fora a China,
que não é farinha do mesmo saco, apenas a Índia, dentre os países chamados em
desenvolvimento, está à frente de nós.
Os progressos visíveis
na renda familiar e no nível de emprego formal são indiscutíveis. Faz pouco
tempo, os arautos da economia brasileira apregoavam a necessidade imperiosa de
reduzir salários e direitos do assalariado, se quiséssemos nos comparar às novas
tendências do capitalismo moderno.
Fazer o oposto seria
um esquerdismo infectocontagioso. Curiosamente, Biden e Lula se engajaram num
programa de valorização do trabalho formal e, não tão curiosamente, os Estados
Unidos da América retomam crescimento econômico notável. Será que os Estados
Unidos adernou à esquerda? Será que Paul Krugman, virou um marxista ou um
stalinista, como Stiglitz?
Não deixa de ser
relevante lembrar que tanto Biden quanto Lula sucedem a dois presidentes que se
notabilizaram por proporem, tanto lá quanto cá, uma nova forma de governo em
que a Democracia seria vertente de autoritarismo atentatório ao Estado
Democrático de Direito.
Também me parece
relevante recordar que, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, acusaram o
“sistema" de ser o elemento desagregador não só da economia, mas também
das pautas de conduta civilizacionais, criando-se assim, lá e cá uma, inédita
miscigenação entre o religioso e o político.
Se nos Estados Unidos
historicamente o preconceito racial já nos parecia uma anomalia teratológica, a
transferência do ódio entre irmãos aqui no Brasil destruiu em pouco tempo
nossas crenças numa sociedade cordial, apregoada como natural e quase genética
em nossos livros de história e religião.
Tanto é verdade que o
movimento chamado “Façamos a América Grande outra vez”, uma espécie de
evangelho segundo Trump tem um inegável substrato racista ao defender a
supremacia branca. Trump nunca escondeu seu ódio visceral a Obama, acusando-o
inclusive de ter seu atestado de nascimento falsificado.
Difícil afirmar que o
Trumpismo seja exclusivamente fruto do esgotamento do neoliberalismo, movimento
que desde Thatcher e Reagan se havia arvorado em última etapa do capitalismo,
fazendo naufragar as teses social-democratas ou o próprio keynnesianismo.
O que se pode afirmar
sem sombra de dúvida é que desde a crise e a consequente quebradeira financeira
de 2008, ficou claro que o neoliberalismo havia tornado os ricos mais ricos os
pobres mais pobres e os remediados sem capacidade de pagar suas hipotecas.
O “Make America Great
Again“ talvez seja a fórmula mais palatável para equilibrar de um lado os
crescentes lucros dos super-ricos com a fantasia de que a classe média
americana recuperaria seu "american way of life” do pós-guerra, quando a
Europa se reconstruía e o Japão saía das cinzas. Ou, em outras palavras, quando
a economia americana era imbatível.
Obviamente, como se
está vendo, esta saída do neoliberalismo se alimenta de um nacionalismo
exacerbado, com claras conotações fascistas, onde a primeira vítima é o Estado
Democrático de Direito.
Os movimentos de
invasão do Capitólio, nos Estados Unidos da América, e dos Palácios dos Três
Poderes, em Brasília, são irmãos siameses da mesma má retórica.
Então, para finalizar,
quando pergunto de que Brasil estamos a falar, me surpreende que os
conservadores deste país - que respeito tanto quanto quaisquer outros cidadãos
- não se deem conta que nossa Constituição de 1988, costurada após uma negra
noite de autoritarismo, pautou de forma inatacável os parâmetros de uma
sociedade democrática como a que estamos a construir, com as derrapagens que
todos conhecemos, dentre as quais as que hoje ocupam as manchetes de nossos
jornais.
Precisamos falar sobre
a Constituição brasileira de 1988. Nela reside nossa restauração cívica e nossa
convivência social. Além de nossa tolerância religiosa. Voltarei ao assunto.
Ø
Os desafios da esquerda. Por Paulo Nogueira
Batista Jr.
Em vários países do
Ocidente e do Sul Global, inclusive no Brasil, a esquerda se defronta nas
décadas recentes com desafios talvez sem precedentes – e não está se saindo
bem, de uma forma geral. Com o passar do tempo, os desafios se avolumam e
esquerda se debate sem sucesso contra eles. O Brasil, com Lula, até constitui
uma exceção, mas apenas parcial.
Estou me referindo, na
verdade, à centro-esquerda, à esquerda moderada. A extrema esquerda não
desempenha papel relevante. Em contraste, no campo da direita, os extremistas,
apesar de alguns reveses importantes (notadamente as derrotas eleitorais de
Trump e Bolsonaro), continuam fortes, ameaçando os partidos tradicionais de
centro-direita e centro-esquerda.
O pano de fundo desses
movimentos políticos é a crise da globalização neoliberal, iniciada ou agravada
com o quase-colapso dos sistemas financeiros dos EUA e da Europa em 2008-2009.
Essa crise financeira trouxe à tona um mal-estar generalizado da população dos
países desenvolvidos com a economia e o sistema político. Os bancos privados
foram socorridos com grande mobilização de recursos públicos enquanto a
população endividada foi basicamente deixada à própria sorte. Cresceu o
ressentimento, alimentando a eleição de Trump em 2016 e de outros políticos do
mesmo naipe na Europa.
Esse mal-estar com a
globalização é mais antigo e mais amplo do que a crise financeira de 2008. O
que aconteceu nos últimos 30 ou 40 anos nos EUA e na Europa foi uma dissociação
crescente entre as elites e o resto da população. A renda e a riqueza se concentraram
nas mãos de poucos, os ricos ficaram mais ricos, ao passo que o grosso da
população viu a sua renda estagnar ou retroceder. A confiança no sistema
político desabou. Espalhou-se a percepção de que não há democracia, mas
plutocracia – o governo dos endinheirados. Pior: ficou patente que o que
prevalece é uma caquistocracia – o governo dos piores. A baixa qualidade da
maioria dos líderes políticos ocidentais está aí, à vista de todos.
Esse declínio das
lideranças do Ocidente reflete algo maior: o declínio do establishment dessas
nações, crescentemente dominado pelo rentismo e pelo capitalismo predatório.
Especulação financeira, privatizações destrutivas, fusões e aquisições,
manobras de mercado de todo tipo substituem a produção e a geração de empregos
de qualidade. A decadência parece bem evidente. Versões anteriores do establishment dos
EUA teriam permitido que o eleitorado ficasse reduzido a escolher em 2024, como
tudo indica, entre um presidente senil e um bufão irresponsável?
Não por acaso, a
China, que nunca seguiu o modelo neoliberal, tornou-se “a fábrica do mundo” às
expensas das indústrias do Ocidente. O Brasil, infelizmente, também caiu na
armadilha da globalização e ainda não conseguimos dela escapar. Era
inteiramente previsível. As elites locais, em geral servis e medíocres,
mimetizam as elites estado-unidenses, trazendo para cá o que há de pior.
No plano
político-partidário, quem foi prejudicado e quem foi beneficiado pela crise da
globalização neoliberal? Entre os prejudicados se destacam, merecidamente, os
partidos tradicionais de direita, identificados com a defesa do modelo
concentrador. Note-se, entretanto, que o prejuízo recai não só sobre eles, como
também sobre os da esquerda moderada – a social-democracia, os socialistas e
outros semelhantes. Previsível: afinal, a centro-esquerda foi sócia das
políticas econômicas excludentes. Em muitos países, governou em coalizões com a
direita tradicional. Quando chegou ao poder como força hegemônica, pouco ou
nada fez para mudar o rumo da economia e da sociedade. Assim, passaram a ser
vistos, junto com a centro-direita, como parte de um mesmo “sistema”.
Contra esse “sistema”,
a extrema-direita se insurge, mesmo que muitas vezes apenas da boca para fora.
Comandada por líderes carismáticos e espalhafatosos, como Trump, Bolsonaro e
Milei, conseguiu vencer diversas eleições importantes. Despreparada e primitiva,
contudo, a extrema-direita não governa de modo eficaz e promove mais confusão
do que reformas. Mantém ou aprofunda a orientação conservadora em economia,
disfarçando essa concessão com atitudes extremadas na pauta de costumes. Não
passou no teste de fogo da pandemia da Covid-19, o que contribuiu de modo
importante, como se sabe, para a não-reeleição de Trump e Bolsonaro.
Recuperou-se, contudo, dessas derrotas, como se nota pela vitória de Mile, o
prestígio de Trump e Bolsonaro, sobretudo do primeiro, e a ascensão de radicais
de direita em alguns países da Europa.
O que aconteceu com a
centro-esquerda em outros países, talvez seja relevante para o governo Lula e
os partidos que o apoiam. Parece intrigante, à primeira vista, que a
centro-esquerda dos países desenvolvidos não tenha conseguido capitalizar para
si a crise da globalização. Parte da explicação já foi mencionada acima: o
condomínio de poder formado com a direita tradicional. Mas vamos tentar
aprofundar a questão um pouco mais. O fato é que a centro-esquerda também se
tornou tradicional e elitista, acomodou-se, perdeu contato com a população e
mostra não compreender os seus problemas reais. Corre o risco de definhar por
não entender as mudanças em curso. Como na mitologia, a esfinge de Tebas
adverte: “Decifra-me ou te devoro”.
Um exemplo de uma
estratégia problemática: abraçar a agenda identitária, que é uma agenda
liberal, contribui para o isolamento da esquerda. Vamos nos entender: defender
as mulheres, os negros, os indígenas, os homossexuais e outros grupos
discriminados é indispensável. Porém, essa defesa não pode ser a plataforma
central da esquerda. De um modo geral, o identitarismo não conta com a atenção
ou a simpatia da grande maioria dos trabalhadores e dos setores de menor renda,
geralmente às voltas com a luta pela sobrevivência. Os temas econômicos e
sociais – emprego, renda, injustiça social – continuam prioritários para eles.
A extrema direita tenta desviar a atenção desses temas com discursos religiosos
e conservadores. A centro-esquerda acaba esquecendo-os ao focar nos temas
identitários.
Uma questão crucial na
Europa e nos EUA, ainda não presente no Brasil, é a imigração. A
extrema-direita vem se beneficiando amplamente da sua oposição virulenta à
entrada de imigrantes – oriundos da África e do Oriente Médio na Europa; da
América Latina nos EUA. A centro-esquerda não sabe o que fazer com o tema. As
suas tradições iluministas e internacionalistas levam-na a rejeitar a
resistência à imigração. Não percebe que ela tem fundamentos reais. A rejeição
do imigrante não é apenas diversionismo, como muitos imaginam. Os imigrantes
trazem problemas significativos, não para as elites por suposto, que vivem à
parte no seu mundo privilegiado, mas para os cidadãos comuns. A imigração em
larga escala afeta o mercado de trabalho, pressionando para baixo os salários e
levando à substituição de empregados locais por imigrantes. As firmas veem com
bons olhos, claro, o barateamento da “mão-de-obra”, mas os trabalhadores sentem
na pele e sofrem. Note-se que a imigração vem sobrecarregar um mercado de
trabalho já adverso, em razão dos deslocamentos produzidos pelo rápido
progresso tecnológico.
Mas a questão não é só
econômica. A imigração massiva do século 21 é muito diferente, por exemplo, da
imigração europeia para as Américas em épocas anteriores. O imigrante hoje é
essencialmente diverso das populações do país hospedeiro, em termos raciais ou
étnicos, assim como em termos culturais ou religiosos. A sua presença numerosa
ameaça descaracterizar as sociedades dos países desenvolvidos, trazendo
insegurança e reações xenófobas. Em outras palavras, a questão é também
nacional – tema com o qual grande parte da esquerda sempre lidou mal.
Como reagirá a
centro-esquerda a esses problemas? Continuará no rumo atual ou tentará se
conectar com as novas realidades e as preocupações da maioria? Se ela optar por
apegar-se às suas tradições, só nos resta desejar-lhe boa sorte.
Fonte: Jornal do
Brasil
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