A profissão que representa ideia brasileira
de saúde
Foi sancionada por
Lula, em dezembro, a lei 14.725/23, que regulamenta a
profissão de sanitarista. O projeto, apresentado pelo então deputado e
ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, representa não só de um reconhecimento
pelo Estado do profissional como também da própria concepção de saúde que funda
o SUS.
É isso que a
fonoaudióloga Lívia Souza explica em detalhada entrevista ao Outra
Saúde. Pós-graduada em Saúde Coletiva, ela própria, dessa forma, é
sanitarista. Como membro do Grupo de Trabalho da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco), acompanha o processo de implementação desta ocupação agora
oficialmente registrada.
“O sanitarista é esse
profissional muito implicado com a saúde pública e coletiva no Brasil. É um
profissional generalista, interdisciplinar, qualificado, que atua em diversos
setores do sistema e dos serviços de saúde. Ele pode atuar na gestão de serviços
de saúde ou na pesquisa, tanto do setor público como privado. O sanitarista
pode fazer a gestão de hospitais, de unidades de saúde, atuar em diferentes
níveis de complexidade e também em diferentes esferas da gestão do sistema de
saúde. Ele pode atuar na gestão municipal, estadual, federal, na vigilância
sanitária, epidemiológica, ambiental, assim como em diferentes setores da
gestão do sistema de saúde, na regulação, no planejamento”, explana.
Para entender o valor
do reconhecimento desta profissão para o SUS, precisamos ir às raízes do tema,
a fim de compreender o que significa saúde coletiva. Como explica Lívia Souza,
é um conceito que vai além da medicina e da visão da saúde como direito de
acesso a um serviço. Falar de Saúde Coletiva é visitar os conceitos fundantes
do Sistema Único de Saúde, cuja formulação é obra de sanitaristas históricos.
“Quando falamos do
conceito ampliado de saúde, remontamos ao debate da 8ª Conferência Nacional de
Saúde, lá em 1986, quando o Sérgio Arouca falou que ‘democracia é saúde’. Essa
fala supera o debate de saúde compreendida apenas como ausência de doença, ou
seja, de um sistema de saúde que se ancora no modelo biomédico e na oferta de
serviços de saúde. A partir deste momento, prevalece a compreensão de que saúde
é muito mais, que devemos entender seus determinantes. Saúde é acesso e direito
a trabalho, educação, renda, transporte, lazer, alimentação adequada, moradia.
O sanitarista é formado para compreender saúde a partir deste conceito
ampliado.”
Como se pode notar, a ideia
de Saúde Coletiva tem um forte pé na sociologia e, inevitavelmente, no
pensamento crítico. É uma ampliação da ideia de Saúde Pública, que começou a
ser elaborada no final da década de 1970. Não à toa, seus precursores acabaram
na mira da ditadura militar. Com a redemocratização, conforme rememora Lívia, o
conceito avança e, a partir da 8a Conferência Nacional de
Saúde, estabelece as bases do que viria a ser o SUS. Essa ideia, de saúde como
direito público, gratuito e universal, é oficializada na promulgação da
Constituição de 1988.
Diante de todo este
contexto histórico, não é de se estranhar que a regulamentação desta profissão
ocorra dentro de um governo federal de recorte progressista e, mais que isso,
quando o Ministério da Saúde é comandado por uma socióloga com especialização
em Saúde Coletiva.
“O atual governo
federal tem um claro alinhamento e reconhecimento do papel e da importância do
Sistema Único de Saúde. Mas isso não é necessariamente uma regra. Não há
garantia de que todo governo federal será alinhado ao Sistema Único de Saúde ou
vai reconhecê-lo. Basta ver o processo dos últimos anos, quando vimos governos
gerarem uma série de enfrentamentos em torno do SUS, que viveu toda uma
fragilização. Agora, temos um cenário político de reconhecimento da importância
do SUS, percebido como fundamental e estratégico para a garantia do direito à
saúde”, afirma Lívia Souza.
Como explica Lívia,
apesar de agora a função de sanitarista contar com processo formativo próprio,
a lei reconhece que a profissão pode ser exercida por profissionais de outras
áreas e trajetos. Outro aspecto interessante é que o registro profissional será
concedido a partir do próprio Ministério da Saúde, através da criação de órgão
competente. Isso quebra o viés corporativo e pode mexer com paradigmas
estabelecidos, como os que concedem a autarquias como CFM e OAB o direito de
regular o exercício profissional.
“A lei reconhece que a
formação deste profissional é de natureza interdisciplinar. Mas não exige um
fazer exclusivo nem impõe uma reserva de mercado. Ela reconhece que um
profissional da saúde coletiva ou pública pode ter múltiplas formações, desde
uma graduação até a pós-graduação em saúde coletiva, além de reconhecer o
direito de reconhecimento a quem efetivamente exerceu a função antes de sua
regulamentação.”
>>>> Leia
a entrevista completa.
·
Como você observou a regulamentação da
profissão de sanitarista pelo governo federal, através da sanção da lei
Lei 14.725/23?
Avalio como um
reconhecimento histórico da contribuição que esses profissionais dedicados à
saúde pública têm dado ao país, desde o século passado. Tivemos sanitaristas
históricos, como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Sérgio Arouca, que são
precursores da saúde coletiva. Portanto, embora essa atividade profissional já
existisse há décadas, o termo sanitarista ganhou muita relevância com a
implementação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Assim, o
reconhecimento e regulamentação da profissão é resultado de um processo
histórico de construção, que passa pelos sanitaristas históricos e também pela
implementação do Sistema Único de Saúde. Em 2017, a ocupação sanitarista foi
oficialmente incorporada à CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) e agora
alcançamos o novo patamar ao tornar uma profissão oficialmente regulamentada
por lei.
·
O que é, afinal, ser sanitarista?
O sanitarista é esse
profissional muito implicado com a saúde pública e coletiva no Brasil. É um
profissional generalista, interdisciplinar, qualificado, que atua em
diversos setores do sistema e dos serviços de saúde. Ele pode atuar na gestão
de serviços de saúde ou na pesquisa, tanto do setor público como privado. O
sanitarista pode fazer a gestão de hospitais, de unidades de saúde, atuar em
diferentes níveis de complexidade e também em diferentes esferas da gestão do
sistema de saúde. Ele pode atuar na gestão municipal, estadual, federal, na
vigilância sanitária, epidemiológica, ambiental, assim como em diferentes
setores da gestão do sistema de saúde, na regulação, no planejamento.
·
E quem pode ser sanitarista? Que tipo
de profissional está habilitado a ser reconhecido como profissional
sanitarista?
O próprio texto da
lei, num avanço que considero importante, reconhece quem pode ser sanitarista e
estabelece quem é o sanitarista. Hoje, no Brasil sanitaristas podem ser aqueles
aqueles formados na área de saúde coletiva por graduação, uma recente inovação
no Brasil, uma vez que tal graduação surge no país a partir de 2008. Hoje,
temos cursos de graduação em saúde coletiva no país inteiro. A profissão pode
ser exercida também por pós-graduados na área, seja latu ou strictu sensu.
A lei estabelece que
esses três grupos estão aptos à profissão: o formado na graduação em saúde
coletiva, o formado pela pós-graduação, oriundo de qualquer profissão, quem fez
residência e especialização médica, mestrado e doutorado; por fim, também reconhece
a atuação daqueles profissionais que foram formados no exercício profissional
direto. A lei incorpora quem tem formação de nível superior e comprova o
exercício da atividade profissional por no mínimo cinco anos até a data da lei.
·
A nova lei significa uma ampliação do rol
de ocupações em saúde e, consequentemente, do próprio mercado de trabalho de
profissionais de saúde?
Sim. A lei reconhece
que a formação deste profissional é de natureza interdisciplinar. Mas não exige
um fazer exclusivo nem impõe uma reserva de mercado. Quando a lei atribui a
condição de sanitarista, o faz sem prejudicar as competências de outros profissionais,
de maneira que gera essa ampliação do escopo de atuação do profissional de
saúde, no entanto, sem promover uma reserva de mercado. Ela reconhece que um
profissional da saúde coletiva ou pública pode ter múltiplas formações, desde
uma graduação até a pós-graduação em saúde coletiva, além de reconhecer o
direito de reconhecimento a quem efetivamente exerceu a função antes de sua
regulamentação.
·
Como o Brasil se organiza para formar
sanitaristas, teremos investimentos neste sentido?
O Brasil já tem um
histórico de formação de sanitaristas pela pós-graduação. Eu, por exemplo, sou
uma sanitarista formada pela pós. Fiz graduação de fonoaudiologia e percurso
formativo posterior e residência em uma escola de doutorado na área de saúde coletiva.
Temos um histórico importante de formação de sanitarista na pós-graduação, mas
com a implementação desta lei criamos condições de antecipar a formação desse
profissional.
Como disse, os cursos
de saúde coletiva foram implantados no Brasil a partir de 2008, tendo muito em
conta a perspectiva estratégica do movimento da reforma sanitária para
fortalecer o Sistema Único de Saúde. Quando esta formação foi pensada e
debatida, nos anos 2000, visou antecipar e aprimorar a formação desse
profissional. Agora teremos uma graduação, com 3.200 horas de tempo mínimo de
formação, a fim de preparar este profissional generalista, interdisciplinar,
cuja formação estará fortemente ancorada nos pilares da saúde coletiva, que
tratam de epidemiologia, política de planejamento e gestão e ciências sociais,
que consideramos o tripé da saúde coletiva.
Em 2008, começou a
implantação dos primeiros cursos de saúde coletiva no Brasil, muito
impulsionados pelo programa do governo federal à época, a exemplo do plano de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). E atualmente
temos 24 cursos de bacharelado em saúde coletiva ou saúde pública no Brasil, e
que já entregaram ao país a formação de alguns milhares de sanitaristas
atuantes no SUS.
·
Você menciona a reforma sanitária, que
organizou e concebeu o SUS, de onde vem os conceitos de saúde coletiva e da
própria profissão de sanitarista. Se comparamos com outros lugares e sistemas
de saúde do mundo, estamos falando de uma peculiaridade brasileira na
formulação da própria ideia de saúde, em um sentido mais amplo?
Sim, pois a profissão
de sanitarista surge justamente no bojo do debate da reforma sanitária
brasileira. O Brasil é extremamente desigual, país onde se tem uma população
muito dependente de políticas públicas, com um cenário epidemiológico
extremamente complexo, onde coexistem doenças da modernidade com doenças
socialmente determinadas, seculares, como hanseníase e tuberculose, com
indicadores ainda muito elevados. Assim, diante deste complexo contexto
brasileiro, o movimento da reforma sanitária luta pela implantação de um SUS
muito ancorado nas diretrizes de universalidade. Deve ser para todos, deve
falar de integralidade do cuidado. Portanto, a própria formulação da profissão
de sanitarista é ancorada nesse conceito ampliado de saúde.
Quando falamos do
conceito ampliado de saúde, remontamos ao debate da 8ª Conferência Nacional de
Saúde, lá em 1986, quando o Sérgio Arouca falou que “democracia é saúde”. Essa
fala supera o debate de saúde compreendida apenas como ausência de doença, ou seja,
de um sistema de saúde que se ancora no modelo biomédico e na oferta de
serviços de saúde. A partir deste momento, prevalece a compreensão de que saúde
é muito mais, que devemos entender seus determinantes. Saúde é acesso e direito
a trabalho, educação, renda, transporte, lazer, alimentação adequada, moradia.
O sanitarista é formado para compreender saúde a partir deste conceito
ampliado.
·
Como membro do GT da Abrasco que acompanha
a implementação da lei, o que você pode comentar da ação da esfera pública
nesses primeiros meses após a regulamentação da profissão?
A sanção da lei se dá
num contexto político que reconhece a importância de políticas públicas, a
importância do sistema público de saúde e a consequente importância deste
profissional. Temos clareza de que isso só se deu e foi possível em função de
um contexto político e internacional favorável. O processo de regulamentação da
lei não se encerra com a sanção do presidente Lula, que foi um gesto e um ato
importante, porque esse PL podia ter sido vetado.
Apesar da importante
finalização e reconhecimento do governo federal, ela não se encerra aí, porque
a regulamentação da profissão traz em si uma inovação, e ao mesmo tempo um
desafio, porque como reza a lei, que evita a perspectiva corporativista, de
impor reserva de mercado, determina as atribuições do sanitarista sem
prejudicar a competência de outros profissionais, porque entendemos que se
trata de um fazer, por natureza, interprofissional e multiprofissional.
Mas a lei também traz
essa inovação e desafio, como disse, porque a emissão do registro profissional
e a regulação da atividade de sanitarista acontecerão por meio de órgãos
competentes do SUS. Isso é uma inovação nas profissões de saúde, pois temos
atribuição da regulação do exercício profissional a partir de conselhos. Nesta
lei, mudamos isso, e o exercício profissional será regulado por órgão
competente do Sistema Único de Saúde. Isso coloca nova demandas para o SUS,
como a necessidade de construir uma agenda de debates ampliados para
operacionalizar a proposta de regulação do exercício profissional.
·
Quer dizer, aqui falamos de uma mudança de
paradigmas estabelecidos no ordenamento profissional. É como se fossem
quebrados os monopólios corporativos de autarquias que regulam o exercício de
uma determinada profissão, como por exemplo CFM e OAB?
Acreditamos que no
Brasil contemporâneo e no contexto da saúde coletiva as estratégias de
regulação do exercício profissional precisam ser públicas, transparentes, não
corporativas. O desafio posto agora é a maneira operacionalizar, e quando eu
ressalto a importância do contexto político é porque hoje, embora participemos,
como Abrasco, Associação de Bacharéis em Saúde Coletiva, universidades e outros
setores, temos uma indução desse processo pelo próprio Ministério da Saúde, por
meio da Secretaria de Gestão de Trabalho, Educação e Saúde, hoje conduzida pela
Isabela Pinto, docente vinculada à Abrasco, extremamente comprometida com o
Sistema Único de Saúde, com o movimento da Saúde Coletiva e a reforma
sanitária.
Dias atrás
tivemos workshop na USP comandado pelo professor Fernando Aith, um especialista
na área de Direito, para discutir como operacionalizar, quem vai emitir o
registro profissional, quem vai regular o exercício profissional, qual órgão,
qual setor… Tudo isso são questões que estão sendo debatidas de maneira muito
prática, para termos o mais rapidamente possível, sem deixar de garantir um
debate muito amplo e uma construção muito coletiva, a operacionalização do que
está no texto da lei.
·
Portanto, como você mesmo fala, a sanção da
nova lei está diretamente ligada às diretrizes de saúde pública do atual
governo e da própria condução do ministério da Saúde de Nísia Trindade, ela
mesma uma socióloga especializada em saúde coletiva?
Sim, porque o atual
governo federal tem um claro alinhamento e reconhecimento do papel e da
importância do Sistema Único de Saúde. Mas isso não é necessariamente uma
regra. Não há garantia de que todo governo federal será alinhado ao Sistema
Único de Saúde ou vai reconhecê-lo. Basta ver o processo dos últimos anos,
quando vimos governos gerarem uma série de enfrentamentos em torno do SUS, que
viveu toda uma fragilização. Agora, temos um cenário político de reconhecimento
da importância do SUS, percebido como fundamental e estratégico para a garantia
do direito à saúde.
Em um país como o
Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes e extremamente desigual, não dá
para prescindir do Sistema Único de Saúde. E o atual governo reconhece tal
importância. A sanção da lei pelo presidente Lula é um reconhecimento histórico
desta profissão e seu valor estratégico para o SUS. Quando discutimos a
implantação desse profissional formado pela graduação, é uma discussão
estratégica. A formação do sanitarista serve para fortalecer o SUS.
E eu posso dizer que
temos visto isso na realidade. Sou professora do curso de graduação de Saúde
Coletiva na Universidade Federal de Pernambuco, em campus do interior do
estado. E eu posso lhe dizer, não do ponto de vista teórico, mas do ponto de
vista concreto, que quando entregamos este aluno aos municípios logo vemos sua
qualidade. Temos vários egressos nossos que hoje são preceptores de alunos que
fazem estágio. E vemos concretamente a mudança do conjunto de práticas e o
quanto fortalecem os processos de gestão.
Portanto, ao apostar
na regulamentação da profissão, mais do que isso, ao produzir o debate de como
essa regulação será feita, vemos claramente o compromisso da atual gestão
federal com o Sistema Único de Saúde.
Fonte: Por Lívia Souza
em entrevista a Gabriel Brito, em Outra Saúde
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