À beira de uma guerra civil, Israel está se
autodestruindo há muito
Israel está em
autodestruição há muito. Antes de 7 de Outubro, à beira de uma guerra civil
entre os que acreditam que o país é uma democracia e os que querem uma
autocracia, ou teocracia
1.
Gaza já foi um campo
de concentração, num tempo remoto, há cinco meses. Agora é um campo de
extermínio, nos nossos ecrãs. Vi, no meu telefone, uma menina de Gaza pedir ao
seu gato, com festas: quando formos mortos, por favor não nos comas. Vi gatos a
rondarem gente morta no meio da rua. Cães a desenterrarem valas para comerem
gente. Gente que comeu a comida dos cães, dos gatos, fez pão com isso. Que está
a comer erva da rua, algas do mar com esgoto.
Milhares a lutar por
um saco de farinha da ajuda humanitária. Uma menina com a metade de um limão
porque não há pão. Crianças na areia de Rafah a brincar de amassar pão
imaginário, cozer pão imaginário, porque estão esfomeadas. Como aquele judeu
que cobiçava o pão do vizinho em Auschwitz, e nos perguntou – continua a
perguntar – se isto é um homem.
Nunca vimos tantas
provas de quem morre. E de quem mata. Soldados dedicam bombas às namoradas
antes de carregarem no botão. Mandam pelos ares prédios de Gaza ao melhor
estilo PlayStation. Montam vídeos com banda sonora, hits israelitas de guerra,
raves de pastilha. Estão só doentes, ou também drogados?
Como aqueles soldados
a espancarem coisas já muito destruídas numa loja da Cisjordânia: espancavam e
espancavam, eufóricos, com tacos de baseball, com martelos, numa orgia. Um
deles urrava, regando tudo com um jacto de espuma.
Muitos grafitam casas
e mesquitas, insultos, estrelas de David (fotografei dezenas em Jenin). E agora
roubam casas em Gaza por sistema: tapetes, cosméticos, motos. Um dos mais ricos
e bem equipados exércitos do planeta, na sua versão gangs de Israel. Comportamentos
que eu nunca tinha visto desde a primeira vez que lá estive, há 22 anos. Tal
como israelitas com idade para serem pais e avós, sempre amorosos com os seus,
e com os seus animais, dizem agora, como nunca antes: “Fuck Gaza”.
Porque para eles é 7
de Outubro. Não passaram 141 dias e 30 mil mortos em Gaza. Toda a compaixão que
têm é para os 1000 mortos israelitas, os mais de 100 reféns do Hamas ainda
vivos. Gente que merece estar tão viva como toda a gente. Incluindo o milhão e
meio de moribundos nas barracas de Rafah, que já não movem esses israelitas
laicos. Não os levam às ruas.
2.
E a cada manhã acordo
e mais uma estrela da TV em Israel, mais um ministro, por vezes ministra, diz:
“Estou orgulhosa das ruínas de Gaza.” Ou: “Não há inocentes em Gaza, as
crianças de cinco anos não são inocentes.” Ou: “Vamos matá-los à fome, destruir
tudo para partirem voluntariamente.” Ou: “Nunca haverá um Estado palestiniano.”
Ou: “Como se atrevem a criticar-nos? Somos os filhos do Holocausto.” Ou:
“Ninguém diz a Israel o que fazer”.
Não faltam declarações
de intenção, além de comprovativos. Não falta orgulho nisso. Um país mais que
narcísico: em grande parte doente.
A brava pequena
minoria que combate a ocupação e a guerra, que se nega, por exemplo, a
combater, é ostracizada, presa, mesmo. Em 25 de fevereiro, Sofi Orr, 18 anos,
enfrenta a prisão. Entrevistei-a em sua casa no começo de janeiro.
3.
Nos últimos dias,
multiplicam-se relatos de mulheres em Gaza, até já avós, que foram levadas
pelos soldados, obrigadas a ficarem de roupa interior, ameaçadas, interrogadas
sobre o Hamas. Na sua guerra “até à vitória final”, Israel está a tentar
extrair informações torturando incontáveis multidões de palestinianos. Já
acontecia com os homens, e era registado em imagens há meses, mas tudo se
agravou, a escala dos detidos, a pressão das torturas, com simulação de
afogamento, espancamento com barras de ferro, ferros metidos pela boca.
Soldados de elite a humilharem milhares de homens, filmando-os despidos,
vendados e amarrados, uns atrás dos outros, de cabeça curvada. O fascismo dos
120 dias de Saló-Sodoma que Pasolini retratou no cinema. Mas agora há 141 dias
nos nossos telefones, pela mão armada dos descendentes de Auschwitz.
Então o que havia
depois de Auschwitz era Auschwitz-em-direto.
4.
Lula da Silva quebrou
um tabu entre líderes democráticos ao comparar o que está a acontecer com o
Holocausto. O governo de Israel declarou-o persona non grata. Vi
um cartoon em que Benjamin Netanyahu lhe chamava extremista
enquanto lhe pingava sangue das mãos. Pois. Fora Israel, e bolsas sionistas
aqui, ali, não dei por uma indignação alargada contra Lula. Um sinal de como
ele toca em algo verdadeiro. Podemos preferir que algumas palavras dele
tivessem sido outras.
Sabemos, como Lula
sabe, que nunca antes nem depois seis milhões foram exterminados, com uma
“Solução Final” decretada por um homem, e câmaras de gás e fornos adjudicados a
toda uma máquina, e burocracia, de morte industrial. O Holocausto dos judeus da
Europa tem circunstâncias únicas, e Lula não põe isso em causa. Mas claro que a
comparação que ele faz está na mente de toda a gente com memória, com cabeça,
com coração.
Masha Gessen,
intelectual judia que citei há semanas, também foi criticada por essa
comparação, e respondeu que não só ela pode como deve ser feita. Claro que
fazê-la perturba, mas devíamos estar todos a perder o sono é com o que se passa
em Gaza, diz Masha Gessen. E deve ser feita agora, porque é agora que temos de
salvar vidas.
Foi isto que Lula
percebeu. Um estadista com a intuição de poucos. Lula liberta os líderes para
pressionarem o cessar-fogo, apontando a Israel o espelho que Israel mais teme.
E que é o que lhe cabe, sim. Vou mais longe do que dizer que a comparação deve ser
feita: essa é “a” comparação. Porque é de Israel que falamos. Da excepção que
Israel representa no mundo. Do Holocausto que Israel explorou, transformando-o
numa arma apontada para nós até hoje, na maior chantagem política de que há
memória. Lula tocou no ponto, na ferida, no horror: que sejam os descendentes
do mal maior a fazer isto. E que estejamos nós paralisados na culpa, deixando
os vivos de agora morrer.
A comparação não é só
incómoda para Israel. É para todos nós. O que diz isso sobre o humano.
Há mais de quatro
meses escrevi aqui que travar a morte em Gaza seria honrar enfim a memória do
Holocausto. Logo a seguir, que era preciso uma força de interposição em Gaza, e
um boicote do mundo ao governo de Israel. Dezenas de milhares de mortos depois,
e com milhões em risco de morrerem à fome ou doença, Gaza é o maior campo de
extermínio do nosso tempo de vida.
Lula falou. Faltam
sanções, boicote e desinvestimento. Israel tem de ser isolado: em nome de Gaza,
dos palestinianos, de todos nós, dos judeus em geral. E dos israelitas. Não o
fazer será ser parte do crime e da doença. O tabu do Holocausto acabou. Tal como
a utopia de Israel.
Saudei que o ainda
ministro Cravinho contrariasse as sanções à UNRWA, com um simbólico milhão
extra de apoio, e falando no isolamento de Israel. Falta tudo o resto, isolar
de facto, espero que também pela mão do próximo governo português.
5.
Israel está em
autodestruição há muito. Antes de 7 de Outubro, à beira de uma guerra civil
entre os que acreditam que o país é uma democracia e os que querem uma
autocracia, ou teocracia. É o grande fosso entre sionistas laicos e religiosos.
E o 7 de Outubro, que foi o maior trauma do Estado de Israel, não apaziguou
isso. Ao contrário do que tende a acontecer quando um país se sente atacado,
Israel não se uniu. A guerra interna segue latente.
Um dos frutos de todas
estas décadas, e de todas as contradições. Desde a contradição de origem —
querer ser um Estado judaico e uma democracia — a continuar a ocupar e
colonizar um povo, depois de o destituir da sua terra, forçar a tornar-se
refugiado.
O historiador
israelita Ilan Pappé elencou em Janeiro cinco fatores para o que chama “começo
do fim do projeto sionista”. O fosso laicos-religiosos é um. Outros quatro: o
apoio crescente à Palestina, agora numa lógica anti-apartheid inspirada
na África do Sul; a ocupação e a guerra sugarem a economia de Israel (e a Moody’s rebaixou
Israel há dias, inédito e muito falado lá); a incapacidade de defesa que o
exército demonstrou a 7 de Outubro; e cada vez mais judeus no mundo, sobretudo
nos EUA, já não acreditarem que a existência de Israel protege os judeus. Ao
contrário, pensarem que os ameaça. Subscrevo tudo.
Israel foi uma utopia
a mentir para si mesma coisas como: “Uma terra sem povo para um povo sem
terra.” Presa na culpa, a Europa sustentou a utopia. Foi cúmplice, com o
dinheiro e as armas americanas. Israel chegou a 2023 mais doente que nunca. A
ferida interna mais a gangrena colonial apodrecendo o colonizador. Mais três
mil casas nos colonatos anunciadas anteontem (em retaliação a um ataque a
colonos à entrada de Jerusalém).
Benjamin Netanyahu é
um escroque. Mas não é a origem do mal, é o desfecho, muitos milhões de
desalojados e mortos depois. O Hamas cravou uma faca em Israel a 7 de Outubro.
A faca veio de fora. A doença vem de dentro. Israel não vai destruir a
Palestina. Autodestrói-se.
Fonte: Por Alexandra
Lucas Coelho, em A Terra é Redonda
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