Os desafios contra o alcoolismo: entre a
superação e o sofrimento
Apenas uma dose,
talvez um dia, somente, não faça tanta diferença. Um gole qualquer, depois de
um dia cansativo de trabalho, nem deve fazer tão mal assim. De repente, o que
era diário se torna uma rotina que se arrasta por meses e até anos. O
alcoolismo, considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma doença, é
capaz de destruir famílias e abrir portas para as tristezas mais profundas.
Em todo o mundo,
segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), 3 milhões de mortes por
ano resultam do uso nocivo do álcool, representando 5,3% de todos os óbitos. No
Brasil, dados coletados de dezembro de 2022 a abril de 2023 pelo Ministério da
Saúde indicam um crescimento no consumo abusivo de álcool, em especial quando
esses números são comparados com anos anteriores.
De acordo com o
relatório Vigitel, o consumo excessivo de álcool pela população geral teve um
aumento correspondente de 18,4% para 20,8% no período em questão. Entre os
homens, esse percentual cresceu de 25% para 27,3%. Em relação ao sexo feminino,
o gráfico aponta um acréscimo significativo de 12,7% para 15,2%.
Realizada em setembro
de 2021, uma pesquisa encomendada pelo Instituto Brasileiro do Fígado (IBRAFIG)
ao Datafolha, revela que mais da metade dos brasileiros consome bebidas
alcoólicas semanalmente. A dose padrão, segundo o estudo, seria de 14g de
álcool puro, o que corresponde a 45ml de destilado ou 150ml de vinho ou uma
lata de cerveja.
• Formas de impacto
Vitor Blazius, médico
psiquiatra e fundador do Projeto Amor contra Alcoolismo, afirma que o álcool
impacta a vida do indivíduo do ponto de vista biológico, psicológico e social.
"Ele é capaz de causar, mascarar ou até mesmo piorar qualquer quadro de
saúde mental. Diversos tipo de sinapses (conexão entre os neurônios, as células
do cérebro) sofrem um desequilíbrio, principalmente de GABA e glutamato,
fazendo com que, no efeito agudo, seja possível experimentar um alívio em
sintomas de ansiedade ou desinibição", explica.
Esses efeitos, como
descreve Vitor, causam uma reação no cérebro que aumenta a ansiedade e
apresenta, também, sintomas de humor, que podem ser confundidos no dia a dia.
Uma pessoa que bebe nos fins de semana, por exemplo, aguarda esperançosa pela
sexta-feira, esperando encontrar em uma cerveja o relaxamento que precisa.
Assim, Vitor atesta que esse indivíduo pode estar sendo altamente influenciado
a se sentir dessa maneira em razão de um desequilíbrio químico.
"Ele leva a uma
percepção de que a semana é mais pesada do que realmente seria se o cérebro
estivesse em melhores condições. E o alívio que o álcool proporciona pode ter
envolvimento desse processo de neuroadaptação que o cérebro faz para tentar lutar
contra o álcool. Do ponto de vista psicológico, beber álcool vai contra a
natureza do cérebro", detalha o psiquiatra.
Além disso, o álcool,
em via de regra, prejudica os transtornos mentais já existentes. Não só
depressão, mas ansiedade, fobia social, transtorno do estresse pós-traumático,
bipolaridade, esquizofrenia e até burnout. "Obesidade, refluxo, diabetes,
hipertensão arterial, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, como DPOC
também. Inclusive, se um indivíduo continua bebendo mesmo sabendo que o álcool
prejudica a sua saúde, é consenso na comunidade médica de que se trata de um
dos critérios para alcoolismo", acrescenta Vitor.
• De frente para o abismo
"Eu já acordei às
5 da manhã só para tomar uma dose." Sem culpa, Bruno Freitas (nome
fictício), 57 anos, enxergava no álcool uma válvula de escape. Imerso dentro
dessa difícil realidade, mal acreditava que isso lhe traria prejuízos ou que
sequer precisava de ajuda. De forma sutil, ele conta que a bebida sempre fez
parte de sua vida. "Eu nunca percebi a doença. O alcoólatra não admite
ser, só quando está na beira, no meio ou no fundo do poço", completa.
Quando se viu nesse
abismo do qual tanto tinha medo, decidiu buscar auxílio. Entretanto, o caminho
foi estreito, já que começou a beber ainda adolescente. O consumo de
praticamente quatro décadas não sumiria do dia para a noite. Aliás, além de
tentar mudar essa situação, precisava lidar com os estragos que ela tinha
deixado.
Bruno bebia cinco
litros de uísque por semana — sozinho. Abandonar essa rotina, no início,
parecia ser algo impossível. "O impacto foi de maneira sorrateira, nunca é
instantâneo, ele vem em silêncio (no meu caso). Todo dia, o alcoólatra sofre
humilhações e causa o mesmo aos mais próximos, só que não admitimos.
Psicologicamente, atinge em todos os aspectos, mas nunca estamos errados."
Fisicamente, passou a
reparar um inchaço corporal. "As pessoas achavam que eu estava
gordo." O emocional, completamente abalado, o fez deixar de ser um homem
funcional. "Com três doses de uísque minha vida era perfeita, depois que o
efeito passava, vinham as trevas", relembra.
• O renascimento na sobriedade
O álcool, para Bruno,
era como uma escuridão. Em alguns momentos, entretanto, ele afirma que o
consumo excessivo poderia fazer ele se sentir a melhor pessoa do mundo.
Portanto, nunca pensou que tinha um problema ou que necessitava de suporte.
"Eu achava que podia parar a hora que eu quisesse. O alcoólatra não admite
a doença, vive em negação o tempo todo", relata.
De forma inusitada,
conheceu a reunião dos alcoólicos anônimos (AA), há dois anos. Certo dia, parou
o carro na frente de um grupo enquanto bebia. Depois, na mesma semana, passou
mais três vezes, mas sem coragem de entrar. Entretanto, encarou o medo e, mesmo
com a garrafa na mão, decidiu viver a experiência.
"Quando eu
entrei, achei que iria encontrar profissionais da área de saúde e terapia. Nada
disso aconteceu e eu não ingressei. Na quinta vez, fui e ingressei para fazer
um teste. E foi, e está sendo, surreal, ganhei uma subvida. Hoje, sei que não
fui sozinho, foi o poder superior — Deus — quem me deu essa chance. E para não
deixar de citar, minha esposa. Ela foi — e é — meu alicerce. Sozinho é
difícil", comenta Bruno.
Hoje, o álcool não faz
mais parte da rotina. O tratamento, para ele, será até o fim da vida, pois não
quer abrir brechas, novamente, para ter recaídas. "Não fiz nada que não
tivesse álcool no meio, e não tenho saudades de quase nada. Dormir, acordar,
relacionamentos com as pessoas, respeito, saborear a vida, tudo é diferente.
Estou bem, tenho feito algumas reparações com pessoas que magoei no alcoolismo,
tentando ajudar, na medida do possível, outros com o mesmo problema. Viver
sóbrio é outro nível."
• Ajuda mútua
Alcoólicos anônimos é
uma irmandade de pessoas que compartilham, entre si, suas experiências, forças
e esperanças a fim de resolverem seu problema comum e ajudar outros a se
recuperarem do alcoolismo. A recuperação de uma pessoa que tem problema com uso
excessivo de álcool para a sociedade, para a família, para as empresas, para a
segurança pública e até para o trânsito é de importância imensurável. Em
Brasília, existem mais de 62 grupos espalhados pelas regiões de Taguatinga,
Águas Claras, Santa Maria, Gama, Brazlândia, Paranoá, Planaltina, Recanto das
Emas, Riacho Fundo, Samambaia, Sobradinho I e II, Vicente Pires e São
Sebastião.
• Álcool, tristeza e depressão
O etanol é
classificado como um depressor do sistema nervoso central, pois é uma
substância que causa inibição de várias áreas do cérebro. Isso, segundo Vitor
Blazius, médico psiquiatra e fundador do Projeto Amor contra Alcoolismo, causa
a depressão do estado de alerta. Em casos de consumo excessivo, uma pessoa pode
chegar não só a adormecer, como ao coma alcoólico.
Ao atuar nos canais de
cloreto, o álcool ativa a liberação do neurotransmissor GABA, tornando a
membrana neuronal menos sensível aos potenciais de ação. “Isso significa que a
pessoa terá redução na velocidade de processamento visual e auditivo, na noção de
tempo e profundidade, o que se faz muito grave quando, por exemplo, quem bebeu
está atrás de um volante. Pode soar estranho para algumas pessoas, que percebem
efeitos euforizantes, muitas vezes até estimulantes do álcool. Mas isso só
ocorre porque o álcool tem ação mais pronunciada no córtex pré-frontal, que é o
nosso freio”, destaca.
Para Vitor, o álcool é
capaz de entristecer profundamente uma pessoa, ainda que o consumo esteja
associado, por vezes, a momentos bons da vida, reuniões com pessoas queridas e
outras experiências agradáveis. No entanto, a alegria dessas vivências não pode
ser atribuída à bebida. Muito pelo contrário, ela ocorre apesar disso.
“Sobre a tristeza que
o álcool pode causar, isso se dá, mais uma vez, por inúmeros motivos, até
porque são muitos os efeitos prejudiciais que o álcool promove no cérebro. Uma
vez que o álcool reduz o senso crítico, pela inibição do córtex pré-frontal, ele
aumenta o risco de comportamentos que vão contra os valores de quem bebeu. No
dia seguinte, vem, então, a ressaca moral. Isto é: você agiu de forma contrária
ao que você considera importante”, acrescenta
A partir dessa
contrariedade, sentimentos de culpa, remorso e tristeza aparecem. Ao mesmo
tempo, o efeito agudo do álcool, ao reduzir o freio, pode trazer à tona
lembranças de coisas que não ficaram bem resolvidas. Relacionamentos que
terminaram, insatisfações profissionais, e levar a pessoa a se sentir muito
entristecida. “Não é à toa que uma a cada três pessoas que cometeram suicídio
estava sob efeito de álcool. E que 15% das pessoas que fazem uso nocivo de
álcool, mesmo não sendo dependentes, cometem suicídio.”
• O luto e a bebida
Não é fácil ver alguém
que se ama se perder em um beco sem saída. Não conseguir ou sequer tentar sair
de uma realidade que machuca não somente ela como, também, aqueles que estão ao
redor. Vitória Santos (nome fictício), 24, viveu isso de perto. Há pouco mais
de um mês ela perdeu o pai — que era alcoolista — pelo abuso excessivo do
álcool. De acordo com ela, foram mais de 10 anos imersos dentro dessa rotina.
Ainda na adolescência,
ela percebeu que algumas coisas não eram como antes. Em média, o pai bebia de
quatro a 10 latinhas de cerveja todos os dias da semana. “Quando ele se
aposentou, percebi que a saúde dele ficou cada vez mais debilitada.
Aconselhávamos a procurar ajuda, mas ele não reconhecia que a bebida fazia mal
a si mesmo”, ressalta.
Para a filha, era como
se o álcool fosse, realmente, um objeto desejado. Em contrapartida a outras
histórias em que o consumo é tratado como um refúgio, para o pai, era o momento
em que ele poderia aproveitar, de alguma maneira, a própria vida. Ainda assim,
os familiares acompanhavam de perto e sofriam porque, no fundo, sabiam as
consequências que isso poderia acarretar.
De acordo com Vitória,
o pai nunca foi de chegar em casa trocando as pernas, caindo ao chão por ter
consumido bebida alcoólica. “Mas houve momentos em que ele vendeu as coisas de
casa para sustentar essa dependência”, destaca
• A despedida
A morte do pai não foi
repentina. Pelo contrário, todos sabiam do diagnóstico de cirrose hepática, que
veio em 2012. Como filha, ela tinha ciência de que não o teria por muito tempo,
já que ele não reconhecia o problema e tampouco buscava ajuda para tratá-lo.
“Eu me apeguei muito ao lado espiritual, orava bastante. Mas, hoje, entendo que
ele não iria para de beber”, lamenta Vitória.
Antes do falecimento,
ela conta que o pai pediu uma lata de cerveja para beber, enquanto ia para o
hospital. O pedido, na visão da filha, só reforça a gravidade da situação e do
quanto, infelizmente, ele não conseguia lidar com o grave estado de saúde em
que se encontrava.
Às vezes, Vitória
pensa que o pai poderia ter depressão e tentava achar, no álcool, uma forma de
fugir desses e outros possíveis problemas. São indagações que, agora, dão lugar
ao luto e à despedida. Ao menos, hoje, ela acredita que o pai está em um lugar
melhor, descansando da rotina e dos hábitos que tanto lhe fizeram sofrer.
• Saúde física afetada
Os efeitos do álcool
no organismo são complexos e variam de intensidade de acordo com
características pessoais. Segundo Arthur Seabra, clínico geral e coordenador da
Emergência do Hospital Santa Lúcia Sul, o álcool é um depressor do sistema
nervoso central e age diretamente em diversos órgãos, tais como o fígado, o
coração, vasos e na parede do estômago.
“Em pequenas
quantidades, o álcool promove uma desinibição, mas com o aumento dessa
concentração, o indivíduo passa a apresentar uma diminuição da resposta aos
estímulos, fala lentificada, dificuldade à deambulação, entre outros sintomas.
Em concentrações muito altas, ou seja, maiores do que 0,35 gramas/100
mililitros de álcool, o indivíduo pode ficar comatoso ou até mesmo morrer”,
aponta.
Fonte: Correio
Braziliense
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