Um convite ao pensamento de Simone Weil
Pense e resista, pense
em primeira pessoa e resista sem o culto ao poder, resistência do pensamento a
toda paixão de unanimidade e pensamento de resistência capaz de percebê-la nos
mínimos detalhes da realidade.
Lendo hoje em dia os
textos políticos de Simone Weil (1909-1943), nos dois workshops organizados
pelo CTXT, todos os participantes ficaram impressionados com a sua atualidade.
“Mas quando isso foi escrito?”, alguém perguntou. Como é possível estar tão preso
aquilo que é o mais vivo do presente, como ela sempre esteve, e ao mesmo tempo
pensar para cem anos (e contando)? O que, nos perguntávamos, é o “método Weil”?
É claro que é uma
questão de conteúdo, de afirmações, de argumentos, o que ela escreveu sobre o
poder ou a guerra será sem dúvida discutido durante décadas, mas há também uma
dimensão de olhar, de escuta, de abertura à realidade. Uma forma de estar no mundo
e entre as coisas marcada pela atenção e receptividade radicais.
Colocar o corpo para
pensar era uma constante em sua vida. Ingressou em uma fábrica para pensar as
condições de trabalho. Viveu como uma miliciana para pensar na guerra. Militou
como sindicalista para pensar a revolução. Somente através da experiência nos é
dada a verdade de um fragmento do mundo. “A verdade não é apenas uma obra
nascida do pensamento puro (…) Uma verdade é sempre a verdade de algo, o
esplendor da realidade (…) Desejar a verdade é desejar o contato direto com a
realidade.”
O corpo de Simone
Weil, que teria morrido virgem, era um corpo-esponja capaz de registrar os
mínimos detalhes e pensar a partir deles as tendências ocultas da época. A base
material de seu método. Um corpo poderoso é um corpo sensível, fechado em si
mesmo e ao mesmo tempo aberto, capaz de detectar os menores terremotos como um
sismógrafo. Não necessariamente um corpo liberado ou expansivo, mas sem
vulnerabilidade, sem fissura, sem ferida que o conecte ao mundo.
Força do desespero,
força da guerra, força das palavras: resgato agora das conversas destes dias
três pontos atuais do pensamento de Simone Weil.
• A força do desespero: Simone Weil na
Alemanha
Em 1932, pouco antes
de Hitler chegar ao poder, Simone Weil viajou para a Alemanha para ver e pensar
por si mesma o que estava acontecendo por lá. Normalmente, muitos vivem-se num
país e não se sabem quase nada do que acontece. Simone Weil passa algum tempo
em outro país e parece ver, ouvir e saber tudo. A sua biógrafa, Simone
Pétrement, conta-nos que ela viajou sozinha, teve relativamente poucos
encontros, especialmente com trabalhadores, fez muitas caminhadas e documentou
extensivamente. Suas cartas e histórias são testemunho dessa capacidade de ver
a época simplesmente caminhando por suas ruas.
Weil pensa e descreve
duas coisas: a situação de fundo e as forças presentes. Situação e forças como
eixos coordenados do método de Weil.
Em primeiro lugar, a
situação de grave crise econômica na República de Weimar. Uma situação
potencialmente revolucionária porque a vida de cada pessoa está
indissociavelmente ligada ao destino comum. O pessoal nem sempre é político,
mas é quando ambos vibram juntos. Quando o que está em jogo na situação comum e
objetiva desafia a parte mais íntima e subjetiva de cada pessoa.
As forças presentes
são três: o movimento hitlerista, o Partido Social Democrata (SPD) e o Partido
Comunista (KPD).
Qual é a força dos
hitleristas? É a força do desespero, responde Simone Weil, colocada ao serviço
da classe dominante. A ressonância com o presente é óbvia. A extrema direita
capta e captura o mal-estar social (que a esquerda não sabe representar) e direciona
a serviço da reprodução do mesmo sistema que a provoca.
Os hitleristas
conseguem isso através do nacionalismo, diz Weil. A armadilha nacionalista é
sempre a mesma: substitui a pergunta “o quê” pela questão “quem”. O problema
então não é mais o capitalismo em si, mas o capitalismo “inglês” ou “francês”.
O culpado da crise econômica é o Pacto de Versalhes, que impôs condições
humilhantes para a rendição alemã após a Primeira Guerra Mundial. Hitler
vingará essa humilhação e restaurará o orgulho ferido.
Através do
deslocamento que o quadro nacionalista opera, o mal-estar social fica ligado
aos representantes do capitalismo nacional. O “socialismo” reivindicado pelos
hitleristas é o nacional-socialismo: o capitalismo de Estado. A grande
burguesia alemã utiliza-o contra movimentos efetivamente revolucionários, mas
desta forma alimentará o fogo no qual ela própria acabará por arder.
A segunda força
presente é o Partido Social Democrata, enraizado sobretudo na classe
trabalhadora e nas fábricas alemãs. Weil valoriza muito essa implementação,
pois sempre atribuiu grande importância à experiência de trabalho como
determinante da subjetividade, da forma de pensar, sentir e agir.
Mas Weil também
detecta um problema: a força do SPD e dos seus grandes sindicatos, que consiste
em ter construído um mundo inteiro para os trabalhadores, composto por
escritórios, bibliotecas, escolas e locais de férias, está firmemente costurada
no regime de Weimar, na sua estabilidade e legalidade. E como desafiar aquilo
de que se depende? “Os sindicatos estão acorrentados ao aparelho estatal por
correntes de ouro.”
Pensar, para Simone
Weil, exige um gesto radical de renúncia: às seguranças e certezas que nos
constituem, ao próprio Eu. Ela própria renunciou a muitas coisas durante a sua
vida para poder pensar livremente: a sua condição burguesa, o seu sucesso
intelectual, a sua filiação religiosa, inclusive a sua segurança física.
O SPD pensa a situação
de crise a partir do interesse de preservar a sua infraestrutura
organizacional, mas desta forma torna-se surdo à gravidade do que está
acontecendo e permanece subordinado ao status quo. Ele capitulará ao novo
regime hitlerista, de mãos e pés atados. O pensamento conservador não é apenas
uma questão de ideologia…
A última força
presente é o Partido Comunista (KPD), estabelecido principalmente entre os
desempregados alemães. Isso já representa um problema para Weil, pois para ela
o trabalho produz subjetividade e a experiência do não-trabalho é subjetiva
como uma incapacidade de propor uma alternativa para o futuro.
O segundo problema do
KPD é ser liderado a partir de Moscou. Ou seja, ele é pensado de um lugar
diferente ao que está em marcha. Quem vive as coisas não decide sobre elas,
quem decide sobre elas não as vive. “Todos os fracassos do KPD são
influenciados por Moscou”, conclui Weil, implacável.
A URSS está menos
preocupada com uma Alemanha nazista do que com uma Alemanha antissoviética
(seja qual for a sua origem). Os seus cálculos e decisões são feitos a partir
dos interesses geopolíticos da URSS, não da situação atual na Alemanha ou da
preocupação com as vidas dos militantes comunistas, sacrificados como peões no
tabuleiro de xadrez.
Weil discute a decisão
catastrófica do KPD de copiar a estrutura nacionalista de pensamento. O
fascínio pela sua eficácia leva a abandonar as próprias categorias
(internacionalismo) e a imitar o adversário, entrando numa lógica simétrica e
espelhada. A mesma coisa que hoje se chama, em linguagem populista, “disputa de
significantes nacionais (ou de ordem e certezas) à direita”. Pensar através da
cabeça do adversário.
O resultado final é
que o SPD e o KPD se confrontam ferozmente e não intervêm na situação de crise.
A “frente única” é tentada mil vezes nas ruas, entre os próprios trabalhadores
e a partir da base, mas nunca se cristaliza ao nível das decisões táticas e
estratégicas do partido. Mesmo no caso dos comunistas, são preferidas alianças
específicas com os hitleristas contra os social-democratas, inimigos
históricos.
O que finalmente
precipita o desastre é um problema de representação, de delegação de pensamento
e decisão a líderes independentes da situação. O proletariado resiste ao
desespero, os trabalhadores não se tornam ladrões ou criminosos, nacionalistas
ou hitleristas. Mas a sua gestão pensa no que acontece de no exterior: o
exterior dos interesses geopolíticos ou das propriedades a serem conservadas.
“Os trabalhadores alemães têm contra si todo o poder constituído, o que está
instalado em seu lugar”.
• A força da guerra: Simone Weil na
Espanha
Com base na sua curta
mas intensa experiência na guerra civil espanhola, e através do poema homérico
A Ilíada, Simone Weil desenvolve uma poderosa meditação sobre a guerra, mais
especificamente sobre a força que é ativada na guerra.
Ao contrário do
marxismo, que nos ensina a ver por trás das declarações e retóricas humanistas
a dura realidade dos interesses econômicos, Simone Weil ensina-nos a ver por
baixo dos interesses econômicos outra realidade mais decisiva e determinante: a
materialidade dos afetos, a embriaguez da guerra. O econômico esconde o
pulsional!
O que é a embriaguez
da guerra? É a paixão absoluta que toma e cega os combatentes, impedindo-os de
ver a realidade e os seus limites. Quem tem força acredita, só por tê-la, que
também tem razão e que o derrotado, por ser mais fraco, carece completamente
dela. Entre o adversário e eu, pensa o intoxicado pela guerra, não há nada em
comum, não há humanidade comum. Querer a vitória absoluta é buscar o extermínio
radical do outro.
Esta embriaguez lembra
o mecanismo (ao mesmo tempo racional e passional) que o General Von Clausewitz
chamou de “escalada a partir dos extremos” e que define toda a guerra como uma
tendência. Um jogo recíproco de ataques e represálias que, numa espiral louca e
incontrolável, ameaça levar consigo tudo e todos que estão pela frente. O
vencedor finalmente reina sobre um território devastado, ele é sempre o rei do
deserto.
Este é o pano de fundo
da famosa carta que Weil dirigiu ao escritor George Bernanos após retornar da
frente de Aragão. Bernanos, depois de primeiro ter aplaudido a revolta
franquista, se distanciou horrorizado ao testemunhar a repressão franquista na
ilha de Maiorca. Simone Weil mostra-se em sua carta estar horrorizada pelo
outro lado, que viu colegas anarquistas, eles próprios tomados pela embriaguez
da guerra, executarem fria e brutalmente padres ou jovens falangistas.
Esta paixão pelo
absoluto opõe-se ponto a ponto à concepção de mundo de Weil: como um emaranhado
de relações, uma malha de vínculos, que acima de tudo exige de nós uma arte de
mediações. Viver é como navegar: temos que contar com o que temos ao nosso redor:
os ventos, as correntezas, a terra. A paixão bélica absoluta é, pelo contrário,
como um navio que pretende avançar, destruindo o próprio ambiente em que se
move.
Quando Netanyahu
promete trazer “vitória total” a Israel, ele fala da embriaguez da guerra. O
genocídio, a deslocação de populações, a destruição de casas são o extremo de
uma cadeia lógica que nenhuma potência ocidental ousa hoje interromper. Mas não
existe uma “vitória total”, ensina Weil ao ler A Ilíada, os “heróis” que
acreditam controlar a força são na verdade manipulados por ela como marionetes
patéticas, e sempre acabam sendo eles próprios arrastados pela poeira.
• O poder das palavras: Simone Weil na
linguagem
Por que a guerra? O
problema, diz Weil, é precisamente que as guerras não têm um objetivo preciso
ou uma origem clara, mas antes assumem qualquer pretexto para o desenvolvimento
da vontade de poder. Como o rapto de Helena na Ilíada. Todos os personagens do
poema homérico – exceto Páris – não se importam com Helena, mas a “afronta” que
o seu rapto representa levará o mundo conhecido à catástrofe e à destruição
total.
Mas e os conflitos
contemporâneos? Já nem encontramos na origem o corpo encantador de Helena, pelo
menos algo material, sensível e palpável. “São palavras adornadas com letras
maiúsculas”, diz Weil, “aquelas que desempenham o papel de Helena (…) Atribuía-se
letras maiúsculas a palavras vazias de significado e os homens derramarão rios
de sangue”.
Palavras maiúsculas,
palavras mortais, pelas quais as pessoas se matam e morrem. Que palavras são
essas? Weil cita e analisa as seguintes: Nação, Segurança, Capitalismo,
Comunismo, Fascismo, Ordem, Autoridade, Propriedade, Democracia. Não muito
diferente, como se pode verificar, das palavras atualmente dominantes na
linguagem política.
Mas mais do que tais
ou quais palavras, o que é mortal é um tipo de efeito, de operação, de uso. O
caráter mortal não é apenas uma propriedade da palavra em si, mas um tipo de
funcionamento. Cada palavra pode cristalizar-se num fetiche e numa palavra mortífera.
A palavra mortal é,
antes de tudo, uma palavra absoluta. Entidade autossuficiente, independente de
todas as condições, de toda correspondência com o real, de toda medida ou
proporção, de toda possibilidade de verificação.
Pensemos no uso que
hoje se faz da palavra “democracia” entre os nossos políticos. Como uma questão
absoluta, não relativa a algo: processo, medição, condições. Designar uma
realidade como “democrática” significa que ela não pode ser discutida,
questionada, verificada. É assim, ponto final.
A palavra absoluto é
uma palavra vazia que se refere a tudo e a nada, não se refere a algo preciso,
verificável, observável e palpável. Não admite resposta, réplica, dialética,
diálogo. São palavras-monólogo que expulsam o outro, removem-no como interlocutor
crítico e resolvem toda a discussão. A palavra absoluto sempre tem a última
palavra.
A palavra mortal é, em
segundo lugar, uma palavra moralizante. Distribui o Bem e o Mal. Me identifica
com o Bem, te identifica com o Mal. Dá-me a razão completa, tira-a de ti. O
outro não tem razão ou motivos, nada que valha a pena ouvir, discutir, não tem
legitimidade na sua história. É puro Mal.
A utilização atual do
termo “terrorismo” pela direita global é o exemplo mais óbvio. Serve para
designar qualquer coisa porque não significa nada, coloca o outro fora da
discussão, convida à sua eliminação. Mas a esquerda também tem as suas próprias
palavras mortíferas, o seu uso mortal de certos termos, talvez o mais marcante
hoje seja “fascista”. Um rótulo que serve de arma de arremesso, que inviabiliza
toda escuta do que não é politicamente correto, todo diálogo com o diferente,
qualquer indício de revisão das próprias ideias.
Existem palavras que
possibilitam a relação, levam em conta o outro e ao outro, ao diferente e
mutável. São palavras relativas, relativas a algo, relativas a alguém. Há
outras palavras, porém, que impulsionam o avanço daquela nave que destrói tudo
em seu caminho. São palavras maiúsculas, palavras mortais, palavras que
contagiam a guerra e a sua paixão pelo absoluto.
Lutar na guerra
envolve desativar a natureza mortal das palavras. “Esclarecer ideias,
desacreditar palavras congenitamente vazias, definir o uso de outras através de
análises precisas, isto é, por mais estranho que pareça, um trabalho que
poderia preservar as existências humanas.”
• A relação de forças: Simone Weil e a
luta de classes
Há, finalmente, um
termo que Weil defende e resgata: luta de classes. Por que, em que sentido isso
pode ser afirmado?
A crítica de Weil às
paixões absolutas e totalitárias não é liberal, mas de inspiração
maquiaveliana. A sociedade, diz o famoso florentino, está sempre dividida entre
quem oprime e quem não quer ser oprimido. A única coisa que limita a voracidade
infinita dos poderosos é a resistência dos sem-poder. Na verdade: só a luta dos
fracos (escravos, mulheres, trabalhadores) fez este mundo progredir em termos
de liberdade, igualdade e justiça.
Weil parece não
acreditar, no final de sua vida, na palavra “revolução”. Não tem ela um caráter
absoluto? Derrubar tudo, reiniciar tudo, mas sempre tudo. A resistência, porém,
estabelece uma relação de forças. Onde havia uma única força, potencialmente totalitária,
de repente aparecem duas ou mais que se limitam e se equilibram. A luta é ao
mesmo tempo uma relação. Uma relação em divisão. O oposto da guerra.
Combater a guerra não
implica estabelecer a paz, garantida por uma arquitetura jurídica definitiva,
mas antes permitir a relação de forças, heterogêneas e mutáveis, que se limitam
e se equilibram. A verdadeira catástrofe é, portanto, uma sociedade sem
divisão, intolerante aos conflitos, incapaz do saber-fazer com as lutas
levantadas pelos que estão abaixo, pelos impotentes, pelos fracos. Uma
sociedade exatamente como a nossa.
Pensar e resistir,
pensar em primeira pessoa e resistir sem culto ao poder, resistência do
pensamento a toda paixão de unanimidade e pensamento de resistência capaz de
percebê-la nos mínimos detalhes da realidade: aqui estaria a chave do método
Weil para pensar o presente há cem anos?
Fonte: Por Amador
Fernández-Savater, não CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues, em Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário