Crônica: Carta aos que não sepultei
Em uma sala iluminada
precariamente, um palestino dava uma entrevista. A calvície, os óculos, a barba
por fazer revelam uma pessoa cansada, de noites insones. Enquanto durava a
entrevista, o som das bombas lá fora não arrefecia. Ele olhava para a câmera e
dizia: Não sei se vou sobreviver. Não gritava. Não pedia socorro. Não, ele não
olhava para a câmera. Olhava diretamente nos meus olhos. E me perguntava: você
pode me salvar? Eu o escutava em desespero. Eu não podia acreditar. Ele vai
sobreviver, desejava. Ele sabia que não. Foi a última vez que o vi. Foi daquela
casa que, minutos depois, seria seu túmulo e de sua família, que o poeta
palestino expôs uma nova forma de denunciar o genocídio em curso. Logo depois
da entrevista, Refaat al-Areer, de 44 anos, professor de literatura, tradutor e
poeta, sucumbia vítima de um bombardeio de Israel. Ele morreu no dia 7 de
dezembro de 2023.
Durante a Guerra do
Golfo, em 1990, aconteceu algo inédito. Pela primeira vez, os combates e os
bombardeios eram mostrados ao vivo. Estava sendo inaugurada ali o chamado
“jornalismo 24 horas” e a transmissão da guerra se dava ao vivo. A guerra
tornou-se um espetáculo midiático como nunca antes se havia visto. As pessoas
passaram a sentar-se diante da televisão, com pipocas e refrigerantes, para
assistir aos bombardeios.
Agora, algo novo está
acontecendo e ainda não temos léxico suficiente para alcançar o que estamos
testemunhando. Não são apenas vídeos panorâmicos. Imagens de bombardeios. Pela
primeira vez na história da humanidade, acompanhamos o anúncio da morte. Um anúncio
feito diretamente aos nossos olhos. Somos levados, pelos rostos e olhares, ao
momento do sacrifício. Assistimos ao sacrífico de um povo, mas este povo,
agora, olha diretamente para mim. É isso que chamam de testemunhar?
Testemunhar não é uma
atitude passiva, mas um ato que me torna parte, um gesto que me convoca. Quando
eu digo: “eu vi ou eu escutei”, já faço parte da história. Os meios de
comunicação sionistas sabem disso. Sabem que precisam controlar com precisão
cirúrgica o fluxo de imagens, sons e textos que são exibidos. Não é uma
narrativa da guerra, mas uma guerra de narrativa, uma operação bélica
construída nos detalhes. E quando digo detalhes não é uma figura de retórica. É
na miudeza do olhar de uma criança que olha diretamente nos meus olhos que está
o perigo.
A estratégia de
humanização, da produção da empatia, foi amplamente acionada pela imprensa
sionista, chegando à exaustão ao expor as histórias de vida dos reféns
israelenses feitos pela resistência palestina. Em algum momento, começou-se a
entrevistar e dar um pouco de visibilidade à dor palestina. Só então, acredito,
houve uma mudança na opinião pública. Diante dessa mudança, o que os meios de
comunicação fizeram? Acabaram simbolicamente com o genocídio. Pararam de pautar
a questão.
Nada é mais perigoso
do que conhecer o nome, a idade, os sonhos de alguém que foi assassinado. Não
se trata de uma multidão sem rosto, mas de um ser único. Nada é mais
revolucionário do que o rosto do outro. E este rosto é um perigo. O rosto,
aquilo que, ao mesmo tempo que me singulariza, me separa do outro, é também
aquilo que me torna parte, que me faz responsável pelo outro. Diante do rosto,
toda a vulnerabilidade é exposta. Mas não são apenas fotografias, como
aconteceu durante a Guerra do Golfo. São pessoas que relatam, anunciam,
prenunciam suas mortes. Quando, na história da humanidade, vivemos a
experiência de escutar alguém relatar sua própria morte?
O rosto nos remete à
responsabilidade ética com o Outro. Este é o primeiro momento da relação ética.
Como apontou o filósofo judeu Emmanuel Levinas em Totalidade e infinito, “O
rosto é o que não se pode matar ou, pelo menos, aquilo cujo sentido consiste em
dizer: ‘tu não matarás’”. O poeta palestino e tantos rostos de crianças que
sumiram da face da terra nos últimos meses seguem comigo. A ausência física não
os fez desaparecer. Seguem presentes. Eu não os enterrei. Eles seguem comigo. O
rosto é a representação mais contundente da humanidade, quando a imagem humana
se torna visível. A minha identidade se constitui inexoravelmente a partir
dessa relação com o Outro, da “responsabilidade” com o Outro.
Durante a Guerra do
Golfo, começaram a circular nos jornais estadunidenses fotos com os rostos de
crianças iraquianas mortas, o que começou a alterar a opinião pública em
relação à guerra. O Departamento de Defesa proibiu que as fotos circulassem. A
orientação era clara: as fotos deveriam ser panorâmicas, de multidões e
distantes dos corpos. O rosto é um risco. É um perigo à segurança nacional.
Olhar dentro dos olhos é um gesto que pode mudar uma posição. Os palestinos
inventaram outra forma de nos deixar próximos a eles. Ainda não sabemos muito
bem qual o efeito dessa nova forma de relatar e antecipar a morte em nossas
subjetividades diante da dor do outro.
Agora, nos deparamos
com rostos que clamam por ajuda. Como lidar, como elaborar o luto da perda de
alguém que me pediu ajuda para, minutos depois, ser assassinado? Chorar basta?
Indignar-se, clamar por justiça basta? É tudo tão pouco, ainda que eu tenha repetido:
“eu faço o possível”. Porém, o possível é muito pouco. Não evitou a morte de
29313 palestinos (este número pode chegar a 36313 palestinos, se considerarmos
os 7 mil desaparecidos sob os escombros), sendo que, desse total, são cerca de
12300 crianças (dados do Ministério da Saúde da Palestina, em 21 de fevereiro
de 2024).
Há outros rostos que
nos miram diretamente nos olhos. Pequenos vídeos produzidos por soldados
israelenses circulam pelo mundo. Eles gravam, em êxtase, a hora em que apertam
um botão e jogam pelos ares mesquitas, residências e escolas. Eu também posso
olhá-los, mas não entendo, não alcanço totalmente o que lhes provocam as
gargalhadas ou o que os fazem dançar freneticamente diante ou sobre os
escombros. O colonialismo é uma droga
poderosa, pesada. Ao testemunhar o gozo perverso daqueles soldados, eu reverbero
a pergunta de Primo Levi, outro pensador judeu: “É isto um homem?”.
O colonialismo
sionista está convencido de que tem autorização, ou melhor, tem o direito (e o
dever) de matar e que nada irá atingi-lo, porque a vida palestina é uma vida
matável, está fora do registro do humano, é um corpo sacrificável, sem rosto,
sem voz. Nas paredes do Hospital Alshifa, em Gaza, algum palestino escreveu:
“Nós somos todos funerais temporários”. Aqui está a consciência da não
importância da vida palestina, expressada por um palestino que, certamente, já
teve seu funeral definitivo.
No fundamental, na
relação com o Outro, o colonialismo sionista não se diferencia do colonialismo
europeu. Negros, populações originárias nunca tiveram seu estatuto ontológico
de gente reconhecido. E no caso do sionismo, há uma outra camada: eles transformaram
os nativos da terra em fantasmas, afinal, ali não existia gente, era uma terra
vazia. Quem se importa com as vidas palestinas? Não apenas se pode matá-las,
mas deve-se performatizar o assassinato como um ato de festa, de comunhão
coletiva.
Não se trata mais da
“banalidade do mal”, conforme formulado por Hannah Arendt em Eichmann em
Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, em que o indivíduo abre mão de
sua capacidade de decidir e torna-se um mero cumpridor de ordens, um corpo
obediente esvaziado de sua capacidade de questionar as normas. São seres que
antes de tudo zelam pelo cumprimento da ordem, sem refletir sobre o bem ou o
mal que podem causar. Não, a banalidade do mal não nos serve para entender o
que estamos testemunhando. Não temos apenas obediência. Nada ali é passividade.
O soldado e a soldada orgulham-se, filmam-se, comemoram. Eles foram construídos
no registro de vítimas absolutas, o que lhes gerou um crédito infinito que os
autoriza a matar sem nenhum dilema ético. Eles não estão matando, mas cobrando
uma dívida que o mundo lhes deve. Querem ser o herói ou a heroína para sua
comunidade. E o reconhecimento da comunidade será diretamente proporcional à
quantidade de vidas palestinas sacrificadas.
A primeira reação,
inevitável, diante do gozo perverso dos sionistas é um desejo profundo de
expulsá-los da categoria e da comunidade humano, daí a pergunta “é isto um
homem?”. No entanto, de nada adianta chamá-los de monstros ou aberrações
políticas. Precisamos, antes, reconhecer que a pedagogia colonial sionista é
exitosa. A pedagogia do ódio venceu em Israel e as poucas vozes divergentes são
sufocadas. Não se trata de uma natureza humana perversa, mas de um projeto
político-pedagógico que tem na morte e na guerra suas razões de ser. Mas também
me impressiona, na mesma intensidade, a força de pessoas judias que romperam
com esta pedagogia da morte e decidiram pela justiça social, para seguir com a
boa tradição judaica, a exemplo do que faz Breno Altman, um homem que, sozinho,
tem sido um exército inteiro. Assim como ele, milhões de pessoas judias em todo
mundo gritam: “Não em nosso nome!”. Eu não tenho dúvida: a tarefa de libertar a
judaicidade do sionismo e a luta pela expulsão dos sionistas da Palestina são
lutas irmãs.
Acho que nãosairemos
dessa história iguais. Seja porque fomos e somos perseguidos pelos rostos
palestinos que vimos sucumbir, seja pelas novas formas de acompanhar e
testemunhar o horror do genocídio. Se antes o colonialismo fazia parte da minha
vida como um tema de estudo e de atuação, agora transformou-se em uma
dilacerante experiência de dor. No meu cotidiano, o que tem me acompanhado não
são os vídeos macabros sionistas.
Vejo o olhar do pai
que tenta juntar, em um saco de plástico, as partes do corpo do filho
dilacerado por um bombardeio, para lhe dar os últimos ritos funerários e
reinstaurar a humanidade negada. Sou atravessada pelo olhar da mãe que, depois
da ordem de evacuar um hospital, carrega nas costas o corpo do filho envolto em
um lençol branco. Onde ela o enterrou? Choro com o avô que aperta contra seu
corpo o miúdo corpo da netinha e olha para o céu, certamente conversando com
Allah, para encontrar algum sentido em tudo aquilo. Lembro agora do olhar
esfomeado de uma criança que tentava encontrar alguma grama para comer, depois
que a ração dos animais que serviu sua família acabou. A fome como prenúncio da
morte, como arma de extermínio. É isso o que eu vejo. Vejo o olhar da menina de
dentes de leite, que me olha e me pergunta: o que fizemos para merecer isso?
Engulo as notícias
diárias como se ácido fossem. Algo morre e parece que um campo estéril de
tristeza e desesperança brota. A dor do ácido talvez seja outro nome para
“luto”. Sim, eu posso repetir: “vamos resistir”, transformemos o luto em luta…
Mas precisamos dizer, com todas as letras, nos espaços públicos: os malditos
sionistas também estão nos matando. Este é outro efeito da palestinização do
mundo a que estamos testemunhando.
E se alguém não está
cheio de hematomas internos é porque não olhou nos olhos das crianças
palestinas.
Fonte: Por Berenice
Bento, na Cult
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