Brasil
precisa de outro rumo
É uma
verdadeira conquista ver A ordem do capital publicado em
português. Afinal, ainda que narre algo que teve lugar na Europa de um século
atrás, seguindo uma linha que revisita e revê os fundamentos da economia a fim
de relacionar os efeitos das políticas econômicas de austeridade do início do
século XX à ascensão do fascismo, neste livro há elementos analíticos que podem
contribuir para compreender a natureza e a lógica da austeridade no Brasil
atual. Não obstante se concentre nas relações de classe em contextos europeus
nos quais a austeridade foi usada como instrumento político para esmagar as
reivindicações de democracia econômica, transporta essa dinâmica à compreensão
de como as relações de classe foram forjadas em países cujo histórico é de
escravidão e colonialismo. Entender as relações de classe da Europa do século
XIX serve para calibrar como o discurso da austeridade vem acompanhado de uma
pauta argumentativa que cancela o aspecto de classe das políticas adotadas,
como se estas atingissem a todos de maneira equânime.
Os eventos
ocorridos entre Europa ocidental e Norte global no início do século passado
reverberaram no eixo centro-periferia e orientaram como os subalternos
pautariam a própria política. Economistas do Sul global buscaram validação nas
vertentes econômicas que disseminaram a austeridade e assumiriam os contornos
neoliberais que testemunhamos hoje.
Outra
chave que a história nos ensina consiste na inseparabilidade da austeridade
fiscal e monetária, por meio do comprometimento orçamentário com o constante
aumento das taxas de juros, afetando diretamente o mundo do trabalho. A
escassez de crédito em razão da política rentista de juros altos faz que o
trabalhador seja impactado em duas frentes: de um lado, pela redução do emprego
e, por conseguinte, pela sujeição ao trabalho precarizado; de outro, por uma
política salarial baixa que comprime o poder de compra entre as inúmeras
necessidades a serem satisfeitas no vácuo deixado pela ausência do serviço
público. Não por outra razão, uma das primeiras medidas recentes na
implementação da austeridade no Brasil consistiu em eliminar leis trabalhistas.
Também as
privatizações para atrair investidores nas famigeradas parcerias
público-privadas, acompanhadas da desregulamentação do mercado, desempenham um
papel fundamental na dinâmica da austeridade. Boa parte do discurso gira em
torno de justificar a redução dos gastos públicos ao comprometer o orçamento
com o pagamento dos juros e amortização da dívida. Tal ideia, ainda que
equivocada, permitiu, como veremos, que a autoridade máxima no Banco Central se
tornasse imune à política de juros sugerida pelo chefe do Executivo. Após a
promulgação da Lei complementar n. 179, de 2019, as necessidades orçamentárias
do presidente da República são completamente irrelevantes para o presidente do
Banco Central, uma vez que seu mandato é dotado de garantias a exigir um dificultoso
processo de exoneração, dependente da maioria absoluta do Senado. O
aprofundamento da austeridade alcançada por diversos estratagemas durante o
mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, sob o disfarce de conferir plena
autonomia ao Banco Central, retirou do poder político as alianças, tão caras à
construção de um programa orçamentário harmônico e consentâneo, com as
indispensáveis políticas sociais de um país de modernidade tardia. Dado o
presente cenário, vale ressaltar que o Brasil já conta com a maior taxa de juro
real do mundo, superando países que agonizam com a inflação, como a Argentina.
Ao mesmo tempo, o comprometimento do PIB brasileiro com a dívida pública é
inferior ao de países desenvolvidos, de maneira a inviabilizar o argumento de que
o país deve reduzir gastos, de que o país gasta descontroladamente.
Enquanto a
Itália, objeto central de estudo desta obra, apresenta uma relação entre o PIB
e a dívida pública que supera os 150%, a proporção do Brasil é inferior a 80%.
Países como o Japão e a Grécia superam os 200%, e os Estados Unidos atingem
120%. Portanto, o argumento de que o Brasil não possui alternativa senão
implementar políticas de austeridade não se sustenta. O ponto nodal do
orçamento nacional reside no importe destinado ao pagamento dos juros da dívida
pública, injustificável e propagador das mazelas sociais das quais o país
padece.
O ano 2022
encerrou-se com a aprovação de uma emenda de transição do então futuro governo
Lula, a Emenda constitucional n. 126, que ampliou o orçamento público para
permitir que despesas correntes na ordem de R$ 145 bilhões não fossem limitadas
ao teto de gastos. A emenda também balizou outro teto de gastos, que viria a se
chamar “novo arcabouço fiscal”. As balizas estabelecidas pelas novas regras
mostraram-se tímidas, senão covardes, sobretudo em abolir o nefasto teto de
gastos estabelecido pela Emenda constitucional n. 95/2016, impedindo o país de
austeridade que ignora a facção política que ocupa o poder. O regime de
austeridade, apesar de não alcançar os resultados de estabilização econômica
almejados, não falha em atingir seu verdadeiro intuito: assegurar que a tríade
de políticas fiscais, políticas monetárias e erosão da capacidade da classe
trabalhadora de reagir a elas silenciem a dissidência.
Ademais,
por compor o Sul global, o Brasil é mais suscetível às pressões das elites
internas e globais. Portanto, a imposição de medidas de austeridade pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI) para a concessão de empréstimos internacionais
não foi acaso. A ingerência do FMI a afetar diretamente assuntos ínsitos à
soberania do país culminou na aprovação da lei de responsabilidade fiscal, em
2000, como parte de uma pauta de “recomendações” que asseguraria o pagamento da
dívida. Contudo, para além de estabelecer garantias desse pagamento, o
verdadeiro intuito era ditar como a política deveria orientar-se, a prescindir
do governante no poder.
Antes de
assumir seu primeiro mandato, em 2003, Lula entregou uma carta de compromissos
para “tranquilizar o mercado”, prometendo manter a “estabilidade” de seu
predecessor Fernando Henrique Cardoso. Em 2023, retornando à Presidência após o
período de convulsão que o país atravessou, Lula comprometeu-se a “colocar o
pobre no orçamento”; no entanto, até o momento, impera o continuísmo em relação
a Temer e Bolsonaro. Uma maior incursão na história política do país revela que
o período da ditadura militar e as mudanças de poder pouco alteraram a forma
como o capital é extraído da classe trabalhadora. Em alusão ao ex-ministro da
Fazenda do “milagre econômico”, Delfim Netto, seria necessário “fazer o bolo
crescer para depois dividi-lo” – só que o momento da divisão jamais alcança os
desfavorecidos do sistema.
A
austeridade não consiste em remédio amargo administrado para brecar a “gastança
desenfreada” e “retomar o crescimento”, jargões já tão conhecidos quanto
desgastados. A austeridade tampouco é um erro de percurso na política para
desfazer o “agigantamento do Estado” e proporcionar “menos Estado, mais
mercado”. A lente através da qual o economista enxerga as variáveis de mercado
distorce o modo como a realidade opera, vislumbrando o agregado (a unidade
nacional) a despeito do bem-estar social e apresentando uma acentuada miopia às
distinções de classe.
Como bem
evidenciado, a definição comum de austeridade enquanto corte nos gastos e
aumento de impostos mascara a escolha da alocação de recursos, que são
abundantes para financiar guerras, arcar com juros da dívida pública, mas
ínfimos na expansão do gasto social. No Brasil, os cortes foram significativos
em setores que não comportavam ulterior achatamento. O salário mínimo carece de
aumento real comparado à inflação, as reformas da previdência passaram a
estabelecer critérios mais rígidos para concessão de benefícios, e as
privatizações encareceram o preço dos serviços públicos ao longo dos anos. A
austeridade que se delineia nos países desenvolvidos continua admitindo um
elevado comprometimento do PIB com a dívida pública, porém segue o preceito de
eliminar prestações sociais, condicionando-as ao recrutamento de trabalho mal
remunerado, ao corte de gastos em saúde, educação e moradia e à eliminação da
tributação dos mais ricos, transferindo o ônus aos mais pobres por meio da
taxação regressiva do consumo e dos serviços. O capital sai ainda mais
privilegiado das equações de austeridade, mercantilizando as prestações sociais
como barganha em detrimento da sociedade.
No caso
brasileiro, os juros elevados agradam o especulador internacional, ávido por
retornos substanciais em um país que não investe e, portanto, jamais se liberta
da situação de dependência. Ao mesmo tempo, optando pela constituição em pessoa
jurídica, o capital conta com a benesse sem precedentes – afora na Estônia e na
Letônia – de não incidência de imposto de renda em lucros e dividendos.
A
austeridade fiscal, inseparável da monetária, atua junto à imposição de um
incremento artificial dos juros sob o argumento de conter a inflação,
comprometendo, assim, o orçamento público com o pagamento de juros
injustificáveis. O valor do salário – outro fator relevante –, a despeito do
que se possa pensar, possui correlação direta com a política de austeridade.
Existe uma
relação inversamente proporcional entre a privatização dos serviços públicos e
a estabilidade da remuneração proveniente desse setor. Esse fenômeno ocorre em
paralelo à revogação das proteções trabalhistas, previdenciárias e
assistenciais e à supressão das prestações públicas, enfraquecendo o poder de
negociação de sindicatos e trabalhadores. Quanto mais escassos são os recursos
disponíveis para satisfazer as próprias necessidades de subsistência, mais
suscetível estará o trabalhador a sujeitar-se a relações de trabalho
opressivas. Não por coincidência, as políticas de austeridade no Brasil vêm
acompanhadas de precarização das relações de trabalho e de uma disseminada
incapacidade de mobilização sindical e reinvindicação política dos direitos trabalhistas
e, mais amplamente, dos direitos sociais.
O presente
contexto político é bastante desfavorável à realização de direitos sociais e
econômicos dos contingentes mais vulneráveis da sociedade brasileira. Desde
o impeachment da presidenta Dilma Rousseff – sob a falsa
acusação de violação das leis orçamentárias, as chamadas “pedaladas fiscais”,
indispensáveis para conciliar o gasto com o não atingimento das receitas diante
da crise econômica que assolou o país, providências que nada mais eram que
instrumentos para a execução de despesas públicas inadiáveis –, o cenário de
desfazimento do Estado social ganhou fôlego com o rompimento do pacto social
por meio da forjada Emenda constitucional n. 95/2016, resultado da aprovação da
“PEC da morte”. Tal reforma elevou ao status constitucional um
estado de coisas que subverte os primados estabelecidos na própria
Constituição.
Não
bastasse, a “austeridade expansionista” do então ministro Paulo Guedes
aprofundou o processo de empobrecimento social, acompanhada das reformas
trabalhistas previdenciárias e de uma desenfreada busca pela privatização de
setores pertencentes ao poder público. Tal programa mostrou-se, desde o
princípio, um fracasso, pois, assim que a pandemia de covid-19 interrompeu o
funcionamento da economia, tornou-se impossível manter a força de trabalho,
refém do ambiente doméstico, sem qualquer alternativa para mitigar a crise. A
pandemia expôs a fragilidade do sistema em lidar com o excepcional, e algumas
das medidas de contenção de gastos essenciais precisaram ser abrandadas para
fazer frente à aprovação de auxílios emergenciais, que teria vigência
provisória e, portanto, transformaram um então direito em faculdade do
exercente de poder. Nos capítulos a seguir, Clara Mattei nos atenta a outro
pilar da austeridade: a importância dos bancos centrais como meio de usurpar a
democracia da esfera econômica. Tal qual em outros países, no Brasil a deflação
monetária possui efeitos devassantes nas taxas de ocupação, eliminando empregos
ao oferecer qualquer contrapartida afora o discurso apolítico que tais medidas
draconianas impõem.
A
autonomia sem análogos, conferindo um mandato de quatro anos ao presidente do
Banco Central por meio da Lei complementar n. 179/2019, mostrou-se das mais
nocivas à discussão política sobre os rumos do país. Sempre sob a tônica da
neutralidade econômica, vincularam-se os governos vindouros a uma política
monetária-fiscal não conforme com o programa eleito para a Presidência da
República. O debate político, agora permeado por um confronto nítido entre o
presidente do Banco Central indicado por Bolsonaro e o presidente Lula, faz
emergir a insustentável coexistência de uma elevadíssima política de juros
comprometedora do crescimento do país e um orçamento carente de consecução de
prestações sociais, criando um diálogo áspero.
Tal
cenário desencadeou a aprovação do “novo arcabouço fiscal”, insuficiente e
vergonhosamente austero, sobretudo se consideramos os mandatos anteriores do
presidente Lula. O desacordo, por fim, resvala na inevitável erosão do consenso
econômico e na retumbante vitória de os “politicamente” mortos governarem os
vivos, dado que o ex-presidente se tornou inelegível. A partir das categorias
apresentadas neste livro, em retrospecto, não se sabe dizer ao certo em qual
ponto da história brasileira a austeridade teve início; o que se sabe é que o
país é vítima de esquemas ensaiados ultramares e experimentados de maneira
inédita em território nacional.
O Brasil
foi e continua a ser cobaia de ensaios perigosos: entre golpes e ditaduras,
períodos inflacionários que ultrapassaram os 2.000% (entre as décadas de 1980 e
1990), confisco da poupança dos cidadãos e um plano econômico que reiniciou a
economia do zero, não há quem se ressinta em submeter o povo às estimativas que
a poucos beneficiam. Tantas oscilações não surgem sem contrapartida, pois, há
muito, o país é refém do mercado, de instituições financeiras internacionais ou
de agências de classificação de risco, prontas a projetar o país ao abismo
quando ele não atende às almejadas metas que propugna o mercado. Na retaguarda
do discurso econômico asséptico, operam os mais autoritários instrumentos de
exercício do poder, evidenciando, na linha de Franz Neumann1 e
David Abraham2, que a ascensão do nazifascismo foi, sobretudo, um
projeto político-econômico.
A
austeridade é um movimento carente de realização democrática, pois asfixia as
promessas constitucionais de efetivação de direitos fundamentais de segunda
dimensão, esvazia o Estado social e reverte a tributação aos detentores do
poder. Da contenção inflacionária dos períodos de arrocho salarial à gestão de
balanços orçamentários via superávit primário, até a dramática deposição
presidencial, ancorada em tecnicismos fiscais, a narrativa econômica brasileira
é um Leitmotiv em que austeridade e política tecem seu sinuoso
dueto. Nesse contexto, A ordem do capital não apenas critica
a mentalité que degrada os países à condição de vassalos da
pauta econômica, como pretende contribuir para des- montar narrativas prontas
acerca do êxito do capitalismo financeiro que sequestra o futuro e mantém as
classes oprimidas imobilizadas e incapazes de oferecer resistência à
austeridade por design do sistema.
Se um país
como o Brasil obtém reputação internacional por sua economia “sólida” e
“virtuosa”, capaz de transmitir confiança aos mercados, tal êxito, longe de
beneficiar as classes trabalhadoras, frequentemente opera contra as classes que
se pretendeu em primeiro lugar proteger. O verdadeiro fato político,
demonstrado pela história, é que a confiança dos mercados é inversamente
proporcional ao bem-estar dos cidadãos e ase reflete, sobretudo, na lógica da
coerção econômica.
Fonte: Por
Clara Mattei e Mariella Pittari, em Outras Palavras
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