O possível uso de um software
de espionagem por agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) está
sendo investigado pela Polícia Federal (PF).
Segundo investigação,
a ferramenta pode ter sido utilizada de maneira ilegal por agentes da
Abin durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para rastrear e monitorar dados de geolocalização de
celulares.
Nesta quinta-feira
(25/01), agentes da Polícia Federal realizam buscas em endereços ligados a doze
suspeitos, entre eles o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), diretor Abin no
governo anterior.
A suspeita é que uma
organização criminosa teria funcionado dentro da agência para monitorar
adversários políticos da família Bolsonaro e proteger filhos do então
presidente de investigações da PF.
A PF realizou buscas
em Brasília, Juiz de Fora (MG), São João Del Rei (MG) e Rio de Janeiro. Um dos
locais vasculhados foi o gabinete de Ramagem na Câmara dos Deputados.
A operação foi
autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
Por outro lado, ele não atendeu o pedido da PF para afastar Ramagem do seu
mandato parlamentar.
O software FirstMile,
produzido pela empresa israelense Cognyte, está no centro da operação Última
Milha, da PF. Em outubro, a operação havia prendido dois oficiais e afastou
cinco dirigentes da Abin.
Segundo a PF, provas
levantadas naquela ocasião levaram à realização da operação Vigilância
Aproximada nesta quinta-feira.
De acordo com as
investigações iniciais, os servidores usaram o FirstMile para monitorar membros
do Supremo Tribunal Federal (STF), jornalistas, advogados e políticos durante o
governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
O software foi
adquirido sem licitação ainda no governo Michel Temer (MDB) durante a
intervenção federal na área de segurança pública do Rio de Janeiro, mas teria
sido utilizado mais intensamente no governo Bolsonaro, de acordo com a apuração
da PF.
Esse monitoramento
seria ilegal, diz a polícia, pois os agentes investigados precisariam de
autorização judicial para realizá-lo.
Os investigados podem
responder por vários crimes, como invasão de dispositivo informático alheio,
organização criminosa e interceptação de comunicações sem autorização judicial
ou com objetivos não autorizados em lei.
Em nota publicada em
seu site em outubro, a Abin afirmou que a corregedoria da agência instaurou uma
sindicância investigativa sobre o assunto e que as informações apuradas estão
sendo repassadas à Polícia Federal e ao STF.
A agência informou
ainda que o software FirstMile deixou de ser utilizado em maio de 2021.
"A atual gestão e
os servidores da Abin reafirmam o compromisso com a legalidade e o Estado
Democrático de Direito", diz.
Na época, o Exército,
que também adquiriu o software em 2018, afirmou à BBC News Brasil por meio de
uma nota que não comentaria o caso.
Após a nova operação
da PF, a BBC News Brasil procurou o deputado Ramagem por meio de seu gabinete,
mas ainda não havia manifestação do parlamentar sobre a ação da PF.
A reportagem também
tentou obter um posicionamento de Jair Bolsonaro por meio de Fabio Wajngarten,
secretário de Comunicação do governo anterior, mas não obteve retorno.
Já senador Flávio
Bolsonaro (PL-RJ), filho mais velho do ex-presidente, se manifestou, por meio
de sua assessoria, negando qualquer uso da Abin para protegê-lo.
A decisão de Moraes
cita suposta atuação da Abin com a produção de relatórios de inteligência para
ajudar sua defesa na investigação por um suposto esquema de rachadinha (desvio
de salário de funcionários) em seu antigo gabinete de deputado estadual no Rio
de Janeiro.
“É mentira que a Abin
tenha me favorecido de alguma forma, em qualquer situação, durante meus 42 anos
de vida. Isso é um completo absurdo e mais uma tentativa de criar falsas
narrativas para atacar o sobrenome Bolsonaro”, disse o senador em nota.
“Minha vida foi virada
do avesso por quase cinco anos e nada foi encontrado, sendo a investigação
arquivada pelos tribunais superiores com teses tão somente jurídicas, conforme
amplamente divulgado pela grande mídia”, disse ainda.
·
Como a ferramenta
funciona?
O software FirstMile
teria capacidade de monitorar a geolocalização de até 10 mil celulares por um
período de um ano. Pelo que se sabe, a ferramenta não tem acesso a mensagens ou
a ligações dos alvos rastreados.
Segundo Rafael
Zanatta, diretor da ONG Data Privacy Brasil, o software "invade" e
"engana" a rede de empresas de telefonia para conseguir rastrear o
alvo do monitoramento.
"Todo celular
emite informações para o que chamamos de uma 'estação rádio-base', que seriam
as antenas de celular espalhadas pelo país, em um protocolo conhecido como
SS7", explica Zanatta.
"O que se
descobriu é que esse software consegue bagunçar esse protocolo, enganando a
estação e perguntando a ela: 'qual era a localização do número tal nesse
momento exato?'", diz.
Por lei, essas
informações são sigilosas, ou seja, uma operadora de celular só pode fornecer a
geolocalização de seus clientes mediante autorização da Justiça. É diferente,
por exemplo, de quando o próprio usuário permite que aplicativos, como o Google
ou o Uber, tenham acesso a esses dados.
"O que o software
FirstMile faz é atacar o sistema das operadoras, ou seja, isso deveria ser uma
preocupação delas também. Esses dados são depois armazenados em nuvem e o
histórico é analisado e vendido ao cliente", diz Zanatta.
"Essas
informações podem ser usadas de diversas formas, como em investigações
policiais contra o crime organizado, mas também podem ser um atrativo para
monitorar ilegalmente opositores políticos e a própria população, atacando o
direito a liberdades cívicas, como o de manifestação", afirma.
De acordo com um
relatório da Anistia Internacional de 2021, serviços oferecidos pela Cognyte, a
empresa israelense que desenvolveu o FirstMile, "foram utilizados pelo
governo do Sudão para instrumentalizar perseguição e violação de direitos de
opositores.”
Em março, após o caso
Abin ser revelado pelo jornal O Globo, a ONG Data Privacy Brasil enviou um
ofício ao Ministério Público Federal pedindo que o uso do FirstMile fosse
investigado pelo órgão.
Segundo a ONG, "a
utilização do FirstMile pela Abin apresenta um grave problema de violação do
direito fundamental autônomo à proteção de dados pessoais".
Ø
Quem é Alexandre Ramagem, deputado
bolsonarista alvo da PF por suposto uso da Abin para proteger aliados e vigiar
opositores
O deputado federal
Alexandre Ramagem (PL-RJ), diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin)
no governo de Jair Bolsonaro, foi alvo
de uma operação da Polícia Federal (PF) nesta
quinta-feira (25/01) que investiga possível atuação ilegal do órgão durante seu
comando.
A suspeita é que uma organização criminosa teria funcionado dentro da Abin para monitorar adversários da família Bolsonaro e proteger
filhos do então presidente de investigações.
Ramagem é forte aliado
da família Bolsonaro, sendo cotado para disputar neste ano a eleição para
prefeito do Rio de Janeiro, berço político do ex-presidente.
Ele se tornou próximo
do clã político na campanha de 2018, quando foi destacado pela PF para
coordenar a segurança do então candidato após ele ter sido alvo de uma facada
em setembro daquele ano e quase morrer.
Em 2020, quando o hoje
senador Sergio Moro (União-PR) deixou o Ministério da Justiça acusando
Bolsonaro de tentar interferir na PF, o ex-presidente quis colocar Ramagem como
diretor do órgão, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou a nomeação devido
à proximidade pessoal de ambos.
Agora, Ramagem é
suspeito de ter usado a Abin em favor de interesses da família Bolsonaro.
A BBC News Brasil
procurou o deputado Ramagem por meio de seu gabinete, mas ainda não havia
manifestação do parlamentar sobre a ação da PF.
Segundo decisão do
ministro do STF Alexandre de Moraes autorizando
a operação desta quinta-feira, "os policiais federais destacados, sob a
direção de ALEXANDRE RAMAGEM, utilizaram das ferramentas e serviços da ABIN
para serviços e contrainteligência ilícitos e para interferir em diversas
investigações da Polícia Federal, como por exemplo, para tentar fazer prova a
favor de RENAN BOLSONARO, filho do então Presidente JAIR BOLSONARO".
Em inquérito já
arquivado, Renan era suspeito de cometer tráfico de influência ao ter,
supostamente, intermediado reuniões entre empresários e integrantes do governo
Bolsonaro. Foi nesse caso que a Abin teria atuado em seu favor.
A decisão cita também
suposta atuação da Abin com a produção de relatórios de inteligência para
ajudar a defesa do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho mais velho do
ex-presidente, na investigação por um suposto esquema de rachadinha (desvio de
salário de funcionários) em seu antigo gabinete de deputado estadual no Rio de
Janeiro.
O caso depois foi
paralisado por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) que anularam provas obtidas.
A BBC News Brasil
tentou obter um posicionamento de Jair Bolsonaro e de seu filho Renan por meio
de Fabio Wajngarten, secretário de Comunicação do governo anterior, mas não
obteve retorno.
Já Flávio Bolsonaro se
manifestou, por meio de sua assessoria, negando qualquer uso da Abin para
protegê-lo.
“É mentira que a Abin
tenha me favorecido de alguma forma, em qualquer situação, durante meus 42 anos
de vida. Isso é um completo absurdo e mais uma tentativa de criar falsas
narrativas para atacar o sobrenome Bolsonaro”, disse o senador em nota.
“Minha vida foi virada
do avesso por quase cinco anos e nada foi encontrado, sendo a investigação
arquivada pelos tribunais superiores com teses tão somente jurídicas, conforme
amplamente divulgado pela grande mídia”, disse ainda.
Ainda segundo a
decisão de Moraes, a investigação apura se o sistema de inteligência First Mile
teria sido usado pela Abin para monitorar dispositivos móveis de adversários
políticos de Bolsonaro, sem prévia autorização judicial e sem a necessidade de
interferência ou ciência das operadoras de telefonia.
"A Polícia
Federal indica, também, que os investigados, sob as ordens de ALEXANDRE
RAMAGEM, utilizaram a ferramenta FIRST MILE para monitoramento do então
Presidente da Câmara dos Deputados, RODRIGO MAIA, da então deputada federal
JOICE HASSSELMAN e de ROBERTO BERTHOLDO", escreveu Moraes.
Bertholdo é apontado
como advogado de Joice Hasselmann e do então vice-governador de São Paulo,
Rodrigo Garcia (PSDB), à época tidos como adversários políticos do governo
Bolsonaro.
Já o comunicado da PF
diz que a operação Vigilância Aproximada foi deflagrada a partir de provas
obtidas na operação Última Milha, realizada em outubro.
Essas provas
indicariam que “o grupo criminoso criou uma estrutura paralela na Abin e
utilizou ferramentas e serviços daquela agência de inteligência do Estado para
ações ilícitas, produzindo informações para uso político e midiático, para a
obtenção de proveitos pessoais e até mesmo para interferir em investigações da
Polícia Federal”.
Além de Ramagem, a
operação atingiu mais onze pessoas, incluindo sete policias federais que foram
afastados de suas funções.
A Polícia Federal
cumpriu 21 mandados de busca e apreensão, a maioria em Brasília, mas também no
Rio de Janeiro e nas cidades mineiras da Juiz de Fora e São João Del Rei.
O gabinete parlamentar
de Ramagem foi um dos alvos. Ninguém foi preso.
Moraes, porém, negou
pedido da PF para afastar o investigado do seu mandato de deputado.
"Essa hipótese
poderá ser reanalisada se o investigado voltar a utilizar suas funções para
interferir na produção probatória ou no curso das investigações",
ressaltou na decisão.
Outros parlamentares
bolsonaristas saíram em defesa de Ramagem.
"Essas operações
contra deputados da oposição evidenciam uma clara perseguição a esses
parlamentares e esse espectro político. Precisamos nos manter firmes perante
esse período de turbulência", afirmou o deputado federal Sargento
Gonçalves (PL-RN) em declaração enviada à imprensa.
·
A trajetória de
Ramagem até a Abin
Graduado em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) em 2000,
Ramagem se tornou delegado da Polícia Federal em 2005.
Na PF, foi responsável
pelas divisões de Administração de Recursos Humanos (2013 e 2014) e de Estudos,
Legislações e Pareceres (2016 e 2017).
Também fez parte da
equipe de investigação da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro em 2017.
Com a posse de
Bolsonaro, Ramagem foi chamado para o governo, tendo primeiro atuado como
assessor especial da Secretaria de Governo, quando a pasta era comandada pelo
general Carlos Alberto Santos Cruz.
Em junho de 2019,
deixou essa função para assumir a Abin.
Em abril de
2020, Bolsonaro tentou nomear Ramagem como diretor da Polícia Federal, mas a medida foi barrada pelo STF, em decisão de Moraes.
O ministro do STF
acatou pedido do PDT, que argumentou que a amizade entre Bolsonaro e Ramagem
comprometiam “os princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e
do interesse público”, necessários para nomear o diretor da PF.
Na época, circulou uma
foto de Ramagem ao lado dos filhos do presidente em uma festa de Ano Novo, na
virada de 2018 para 2019.
Na ocasião, Bolsonaro
minimizou a questão ao responder um comentário numa rede social: "E daí?
Antes de [ele] conhecer meus filhos, eu conheci o Ramagem. Por isso deve ser
vetado? Devo escolher alguém amigo de quem?".
A proximidade do então
delegado com a família causou especial controvérsia devido ao contexto em que
ocorreu a troca de comando da Polícia Federal, logo após o então ministro da
Justiça Sergio Moro se demitir afirmando que Bolsonaro estava tentando interferir
na PF.
Na ocasião, o então
presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva,
afirmou que Ramagem era tido como "um profissional sério e
competente" na categoria.
"Não há desabono
à carreira dele", afirmou ainda em abril de 2020.
"Mas há um
incômodo dos delegados com essa saída traumática de Moro, com acusações [de
interferência na instituição], porque a própria Polícia Federal fica como órgão
em suspeita", ressaltou na época.
Com a decisão do STF
barrando a nomeação, a PF foi assumida pelo delegado Rolando Alexandre de
Souza. Ramagem continuou no comando da Abin até março de 2022, quando saiu para
disputar e vencer a eleição para a Câmara dos Deputados.
Fonte: BBC News Brasil
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