Caatinga vive o dilema da transição
energética justa
A Caatinga é o foco da
expansão das energias renováveis no Brasil, que acontece em ritmo acelerado
desde 2011 e alçou o país ao posto de sexto maior produtor de energia eólica e
oitavo em solar. Com ventos fortes e alta irradiação, o único bioma totalmente
brasileiro tem puxado esse crescimento das matrizes eólica e fotovoltaica, com
35,35 dos 38,71 gigawatts (GW) de potência instalada no Brasil – quase um
quinto da capacidade energética nacional em 2023, conforme a Agência Nacional
de Energia Elétrica (Aneel).
Esse potencial
deve quintuplicar em um futuro
próximo. Nos estados da Caatinga, já são 873 parques eólicos em operação e mais
620 em construção, que somam uma potência de 51 GW. O cenário é promissor
também para a energia solar, que pode chegar a 130,82 GW de capacidade com as
3.140 centrais fotovoltaicas em operação e as 2.787 em obras. Quase metade dos
empreendimentos concentra-se na Bahia e no Rio Grande do Norte.
Esse potencial
presente e futuro contribui para os esforços de redução de emissões no contexto
da emergência climática. Por outro lado, setores da sociedade civil e da
ciência têm chamado a atenção para ajustes necessários nesta rota de expansão,
de modo a garantir que haja uma transição energética justa e inclusiva.
Normalmente, os
empreendimentos procuram os ventos das serras da Caatinga, que são refúgios da
biodiversidade, ou desmatam extensas áreas de vegetação nativa para dar lugar
às fazendas solares. Do ponto de vista social, comunidades locais demandam mais
transparência e participação nas relações com as empresas e os tomadores de
decisão, além de contratos mais equilibrados.
“Está tendo um
grande boom desses investimentos, principalmente no Nordeste.
Mas temos que ver como isso tem sido pensado”, pondera Fabiana Couto,
articuladora política da iniciativa Plano Nordeste Potência. “Precisa ser feito
com mais planejamento, com reconhecimento às comunidades tradicionais, com
respeito à presença das populações nos territórios.”
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A descoberta dos
ventos
A expansão das
renováveis no Nordeste começou pelas eólicas. Em 2004, o ProInfa, um programa
de fontes alternativas que abrangeu eólica, biomassa e pequenas centrais
hidrelétricas, contribuiu para estruturar as bases do setor em termos de
licenciamento ambiental e nacionalização da cadeia produtiva. Mas
principalmente jogou luz ao potencial dos ventos brasileiros.
“Do litoral até o
semiárido, o Nordeste tem um potencial eólico sensacional. É onde tem um vento
veloz, com poucas variações e praticamente unidirecional”, observa Elbia
Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) e
vice-presidente do Conselho Global de Energia Eólica (GWEC). “O
vento unidirecional faz com que a turbina não tenha que ficar virando tanto
para buscar o vento. Isso faz com que ela produza mais.”
Os ventos no Nordeste
são fortes, de 8 a 12 metros por segundo, e constantes ao longo do dia, o que,
na avaliação de Gannoum, os tornam “os melhores do mundo”. “É até melhor no
interior do que no litoral, porque sofre a influência do oceano Atlântico – os
ventos alísios entram exatamente naquela região da Bahia, do Piauí e do Rio
Grande do Norte.”
Os leilões anuais de
contratação de energia eólica começaram em 2009 e logo os investimentos
ganharam força, com uma média de crescimento anual de 1,74 GW de 2011 a
2019.
Segundo dados da
ANEEL, em média 87 novas usinas eólicas foram instaladas no Brasil por ano, de
2014 a 2023 – nos dez anos anteriores, a média anual foi de 10.
“Em 2017, a energia
eólica se tornou a fonte de energia mais barata do país – mais do que as
hidrelétricas”, diz Gannoum. Na visão da presidente da ABEEólica, a expansão da
indústria foi movida pela competitividade da matriz, pelos leilões e pela
Política de Conteúdo Local, na qual o BNDES exige, para apoio financeiro, que
em torno de 80% da turbina seja fabricada no Brasil.
Em 2023, as eólicas
injetaram 13,12% da energia do Sistema Interligado Nacional (SIN) e
impulsionaram metade da expansão de 10,3 GW da matriz energética brasileira. “A energia
eólica tende a continuar nessa trajetória de crescimentos sendo a fonte de
grande porte que mais cresce no país”, ela considera, tendo em vista as metas
de neutralidade das emissões de carbono até 2050.
Em dezembro de 2023, o
Brasil e mais 117 países se comprometeram a triplicar a capacidade instalada de
energias renováveis, na COP 28, em Dubai, nos Emirados Árabes. Os investimentos
já se traduziram no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com R$ 75,7 bilhões para 343
empreendimentos em transição e segurança energética. Entre eles, estão 120
usinas eólicas e 196 parques solares, concentrados principalmente no Nordeste –
e na Caatinga.
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O novo ciclo de
expansão na Caatinga
“A energia renovável
é, na minha visão, a indústria sem água que pode ser instalada no semiárido”,
considera Sérgio Xavier, coordenador do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC), do Governo Federal. “Nós já temos um déficit
hídrico que no futuro vai se agravar com as mudanças climáticas, com elevação
de temperatura, redução de chuva.”
Em 2011, Xavier era
secretário de Meio Ambiente de Pernambuco quando as eólicas começaram a chegar
com força no Nordeste, seguida pela solar. “Estava todo mundo apressado para
ter licença rápida, dizendo que a energia renovável é muito importante. Mas a gente
dizia que tinha que ser feito com rigor, olhando a dimensão social e
ambiental”, ele recorda.
No âmbito do
licenciamento, a secretaria realizou um mapeamento do estado. Considerou que a
expansão poderia ocorrer em áreas em processo de desertificação, degradadas ou
que precisavam de recomposição florestal. Já áreas de importância biológica
exigiram um licenciamento “muito rigoroso”, a exemplo das serras visadas pelos
empreendimentos, mas com “espécies que nem foram estudadas”.
Diante deste novo
ciclo de crescimento do setor, Xavier considera que os estados ainda carecem de
um zoneamento, para aliar a produção energética e a conservação. “O Nordeste
precisa definir quais são aquelas áreas em que é muito bem-vindo chegar projeto
eólico e solar e, no licenciamento, criar um conjunto de condições com uma
visão integral, que inclua as comunidades locais no processo e agregue na
regeneração da Caatinga”, avalia.
O FBMC está em
processo de reestruturação. Em fevereiro, os trabalhos terão início com 24
câmaras técnicas temáticas. No grupo de transição energética, o objetivo é
reunir representantes dos governos, empresas, academia e sociedade civil, e
formular propostas para o Governo Federal, os governos e fóruns estaduais e
outros atores do setor, como a ANEEL e a Empresa de Pesquisa Energética.
“A prioridade maior é
fortalecer a relação com as comunidades. Criar canais, processos e modelos em
que sejam efetivamente ouvidas e sejam beneficiadas”, ressalta Xavier. “Hoje,
grande parte dos empreendimentos geram uma série de problemas de injustiça
social, contratos desequilibrados que não respeitam as pessoas mais frágeis, e
não estão melhorando os indicadores sociais. O desenvolvimento precisa ser
positivo na economia, na rentabilidade das empresas e na evolução social,
redução da pobreza, proteção e, sobretudo, regeneração ambiental.”
O Plano Nordeste
Potência, iniciativa de organizações da sociedade civil, foi lançado em julho
de 2022 e apresenta propostas para que as energias renováveis cheguem “de uma
forma justa e inclusiva”, diz Fabiana Couto. Para esse avanço se dar de maneira
adequada, o plano estabelece
cinco eixos de ação: gestão pública direta, capacitação de mão de obra,
participação social, geração distribuída de energia renovável e ações na bacia
do rio São Francisco.
Para Couto, os parques
eólicos e solares são primordiais para o projeto de desenvolvimento verde da
região. O plano avalia que os empreendimentos já outorgados e em construção
representam dois milhões de empregos.
Uma das propostas
principais é o desenvolvimento participativo de um zoneamento econômico
ecológico social (ZEES), para que os estados definam “áreas mais aproveitáveis”
do ponto de vista energético e “cartografias sociais para identificar onde
estão esses territórios e quem está neles”, para “implementar empreendimentos
em locais com menores impactos socioambientais”. “É um ponto base para
conseguir avançar de uma forma mais justa para as populações. A maioria dos
estados ainda não tem. Alguns estão mais avançados, como o Ceará e o Rio Grande
do Norte”, observa Couto.
A participação social,
por sua vez, abrange a inclusão da população nas discussões em fóruns
permanentes, “para democratizar a informação sobre o que são os projetos
solares e eólicos e as linhas de transmissão, e assim garantir direitos de
identidade e permanência dessas populações sobre o território.”
Em 31 de janeiro,
comunidades locais atingidas no Nordeste vão lançar o documento “Salvaguardas
Socioambientais para Energia Renovável”. Após dois anos de discussões sobre os
impactos enfrentados, elas chegaram a mais de cem recomendações para os setores
público e privado tornarem esta uma transição energética justa e inclusiva, com
efetiva redução de impactos dos parques ao meio ambiente e às populações
locais. O lançamento acontecerá em uma audiência virtual, com representantes
das comunidades e órgãos como o Ministério Público Federal e a Defensoria
Pública da União.
O Plano Nordeste
Potência apoiou no desenvolvimento e vai atuar na apresentação aos órgãos
tomadores de decisão. Segundo Couto, os pontos centrais do documento são os
contratos de arrendamento de terra entre empresas e populações locais, o
licenciamento ambiental e as outorgas. “Muita coisa tem sido discutida em
termos de consulta livre, prévia e informada, prevista na Organização
Internacional do Trabalho (OIT) 169; violação de direitos da terra, respeito
aos modos de vida tradicionais. A consulta a essas comunidades, principalmente
indígenas e tradicionais, tem sido renegada”, destaca Couto.
“Com todos os
incentivos que estão sendo dados para energia solar, eólica e, agora,
hidrogênio verde, é extremamente necessário ter os marcos regulatórios, para
regulamentar toda essa expansão nesse sentido. Projetos de lei em andamento das
eólicas, do hidrogênio verde, que são muito positivos e fazem com que o
Nordeste avance nessas questões e seja protagonista”, continua Couto.
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O aparato regulatório
Elbia Gannoum,
presidente da ABEEólica, considera que “o Brasil já tem um aparato legal muito
firme na indústria de energia”. Os estados são os responsáveis por estabelecer
a legislação para projetos eólicos, mas precisam seguir as diretrizes federais.
No licenciamento
ambiental, os órgãos estaduais devem adotar duas resoluções do Conselho
Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) para empreendimentos elétricos: a 279,
simplificada, no caso de impacto ambiental de pequeno porte, e a 462,
publicada em 2014, específica para eólicas e que estabelece condições em que a
empresa precisa apresentar o estudo e relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA)
– entre elas, para parques em locais que geram impactos socioambientais ou em
áreas com presença da espécies ameaçadas de extinção e endemismo.
Para Gannoum, o que
precisa é de uma evolução do aparato regulatório, “falando de social e
ambiental”. “Na medida em que a sociedade e a indústria evoluem, é importante
ajustar. É muito importante que a legislação global – não só do Brasil – traga
um aparato social mais forte, que consiga incluir na pauta o conceito de
transição energética justa”, diz. “O que nós estamos discutindo hoje é
justamente modernizar toda a legislação”.
Em abril de 2023, o Ministério Público Federal da Bahia suspendeu a licença da empresa francesa Voltalia para as
obras no Complexo Eólico de Canudos, na região do Raso da Catarina. A decisão
foi motivada por manifestação de associações das comunidades locais, que
denunciavam “considerável supressão da vegetação nativa” e “implicação
sobre a fauna local, principalmente na criação de animais”, bem como porque “a
área afetada faz parte da rota da arara-azul-de-lear”, uma espécie endêmica da
Caatinga. O MPF-BA entendeu que o licenciamento “não poderia ter sido considerado
empreendimento eólico de baixo impacto ambiental”. Contudo, em julho a Justiça
da Bahia autorizou a retomada das obras – que já se encontravam em fase final – e a Voltalia
apresentou o EIA/RIMA em novembro, com programas de conservação.
“Pelas especificações
iniciais, o projeto realmente não precisava de EIA/RIMA”, acredita Gannoum. “O
processo ambiental tem aprendizado. Mesmo que não tenha pedido um licenciamento
fundamentado no EIA/RIMA, a Voltali fez estudos no mesmo nível e conseguiu
desenrolar o processo ali no final.”
Para Rárisson Sampaio,
membro da LACLIMA, associação de advogados de mudanças climáticas na América
Latina, o caso do Raso da Catarina é um exemplo de que “o licenciamento no
Brasil tende a favorecer mais as empresas, no desentrave desses empreendimentos”.
“Na maioria dos casos não é uma decisão terminativa”, diz o advogado, que
estudou as relações entre empresas e comunidades no mestrado em Direito
Econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). “Com esses processos
simplificados, o que vemos hoje é um distanciamento de análises dos impactos
sociais, porque em muitos casos ou esses estudos são inexistentes pelo
empreendimento, ou são muito superficiais e não consideram efetivamente como
essas comunidades serão impactadas.”
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Contratos
desequilibrados
Para implantar parques
eólicos ou solares, as empresas muitas vezes recorrem ao arrendamento de terras
de pequenos proprietários. A concessão do direito de uso é feita por contratos
privados, uma relação que foi investigada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos,
em parceria com o Nordeste Potência. No relatório,
Sampaio analisou 50 contratos feitos de 2008 a 2018 entre empresas eólicas e
comunidades. “O que nós materializamos é essa assimetria, um desequilíbrio
contratual muito grande, em que a população assina um documento sob uma
promessa de renda, mas na prática acaba sendo diferente do que é prometido”,
ele aponta.
O aspecto econômico
lhe chamou a atenção. Para a instalação dos empreendimentos, negocia-se o
pagamento por hectare, ou por energia produzida na propriedade, porém a valores
“ínfimos, irrisórios”. “No pior caso que presenciamos, esses contratos
reverteram cerca de R$ 1, R$ 2 por hectare, para pequenas propriedades de até
100 hectares. é um valor mensal de R$ 100 pelo uso da terra.”
Sampaio também destaca
cláusulas que estabelecem multas altas por quebras contratuais apenas em caso
de desistência dos proprietários. “Se, por alguma razão, a família se arrepende
e desiste do contrato, é fixada uma multa milionária diretamente, como alguns
contratos colocam, ou associam ao valor do empreendimento, que é milionário”,
avalia. “Na prática, tem uma captação da terra por meio desses contratos, que
vão manter a propriedade com a população, mas o domínio com a empresa.”
Para Sampaio,
contratos mais justos para parques eólicos e solares começam por um diálogo de
maneira coletiva, e não individual. Em agosto de 2023, o estado da
Paraíba determinou a realização de consulta livre, prévia e informada para a
concessão de licenças de instalação de empreendimentos de energia renovável em
territórios quilombolas, indígenas, comunidades tradicionais e assentamentos de
reforma agrária.
“É inadmissível ter um
estado que gera energia renovável, limpa, em grande quantidade e ainda tenha um
contingente da população em situação de vulnerabilidade social e pobreza
energética, algo que vemos muito na região”, considera o advogado.
Em 2023, a ABEEólica
desenvolveu um diagnóstico dos problemas enfrentados pelas comunidades e está
implementando um plano de ação. Uma das medidas é a elaboração de um guia de
boas práticas, que será lançado até fevereiro, junto a uma certificação. Para Gannoum,
houve uma evolução nas relações contratuais, mas o tema é uma das prioridades
do manual destinado às empresas.
A proximidade dos
aerogeradores das casas é outro eixo, ainda que sejam “poucos que têm esse tipo
de situação”, sendo a maioria “parques mais antigos”, segundo a presidente.
“Muitas empresas já
aplicaram melhorias. No caso de Caetés, em Pernambuco, era o problema mais
gritante, de parques a 100 metros. As empresas que compraram recentemente os
parques fizeram um programa e solucionaram esses problemas das famílias”, diz
Gannoum. “Hoje, a legislação está trabalhando com 400 metros de distância, e
não é só esse critério. O aprendizado nos mostrou que o ruído se modifica
dependendo da região, da circunstância do local, se tem serra ou não, o tipo de
vegetação.”
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Caatinga desmatada
O MapBiomas detectou
que os empreendimentos de energia renovável já são o segundo maior vetor de
desmatamento da Caatinga. Desde 2020, a plataforma emitiu 121 alertas de
desmatamento que compreenderam uma área de 8 mil hectares, atrás apenas da
agropecuária – o equivalente a sete campos de futebol por dia. Ceará (1,76 mil
ha), Pernambuco (1,6 mil ha) e Rio Grande do Norte (1,55 mil ha) lideram o
ranking. Nos últimos dois anos ocorreu 88% dessa supressão vegetal.
Segundo Washington
Rocha, coordenador do MapBiomas Caatinga, a alta expressiva do desmatamento
está relacionada ao aumento dos investimentos para a ampliação dessa
infraestrutura. Nos últimos quatro anos, foram instalados no Brasil 14.403
novas usinas fotovoltaicas e 349 parques eólicos. “Só no Ceará, até julho de
2023, havia 31 novos memorandos de entendimento entre empresas, alcançando a
cifra de 30 bilhões de dólares investidos somente no estado”, observa Rocha.
“Os empreendimentos de
energias renováveis têm uma questão de seletividade na sua locação. A geração
de parques eólicos onshore, no interior, se dá em áreas elevadas,
os topos de serra, onde tem maior velocidade dos ventos”, explica Rocha. “É
crítico porque se instala em áreas com maior preservação de vegetação nativa da
Caatinga. Muitos desses topos são refúgios ecológicos de espécies, com muita
mata fechada, e importantes para a recarga hídrica das nascentes e dos rios.”
Para os parques
solares, por sua vez, o desmatamento ocorre em maior escala. O SAD Caatinga
ainda não caracteriza o tipo de empreendimento renovável (eólico ou solar) –
essa adaptação dos algoritmos é uma das metas do MapBiomas para 2024, diz
Rocha. No entanto, ((o))eco identificou pelas imagens de satélite que os dez
maiores desmatamentos desde 2020 deram lugar a parques fotovoltaicos.
“As usinas
fotovoltaicas podiam ter um melhor critério de alocação. Existe uma vastidão de
áreas que poderiam ser utilizadas para essa geração, entre elas pastagens
degradadas”, observa Rocha. “Essa energia demanda áreas maiores, então isso se
torna crítico se precisar desmatar.”
Os municípios de São
José do Belmonte (PE), Brasileira (PI) e Santa Luzia (PB) lideraram o ranking
com, respectivamente, 1.513,3 ha, 998,2 ha e 887,3 ha de vegetação suprimida. O
MapBiomas ainda detectou desmatamento de 998 ha na Área de Proteção Ambiental
(APA) Serra da Ibiapaba (PI); 190 ha na APA do Boqueirão da Onça (BA), 131 ha
na APA da Chapada do Araripe (PI) e 25,7 ha na APA da Lagoa de Itaparica
(BA).
Para Rocha, a
instalação dos empreendimentos deve estar atenta às áreas susceptíveis à
desertificação no semiárido, mapeadas pelo Ministério do Meio Ambiente, para
que os parques não se sobreponham a esses locais. “Hoje, temos seis núcleos
principais de desertificação já reconhecidos há algumas décadas. Temos
monitorado esses núcleos e em alguns deles, como o de Cabrobó, em Pernambuco,
notamos uma expansão. Desmatar uma área que já apresenta fragilidades naturais
e históricas pode levar a um desencadeamento do processo de desertificação.”
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Onças da Caatinga em
risco
No Norte da Bahia, o
Boqueirão da Onça representa o elo de um dos maiores contínuos de vegetação
nativa da Caatinga. Esta área de 900 mil hectares se conecta, ao norte, com a
Serra da Capivara e a Serra das Confusões, no Piauí, e, ao sul, com o Parque Estadual
Morro do Chapéu e a Chapada Diamantina, no estado baiano. Desde 2018, o
Boqueirão da Onça é protegido por um parque nacional (347 mil hectares) e uma
área de proteção ambiental (505 mil hectares). Mas a fragmentação e mudanças do
uso do solo têm ameaçado essa conectividade.
“Esses corredores
ecológicos são importantes para diversas espécies da fauna, para ajudar nos
fluxos gênicos”, observa Carolina Esteves, bióloga e co-fundadora do Programa
Amigos da Onça, do Instituto Pró-Carnívoros. “Os grandes felinos necessitam de
grandes áreas para buscar recursos, como água, alimento, abrigo, e manter sua
área de vida.”
Esteves, especialista
em ecologia e conservação de mamíferos de médio e grande porte, trabalha na
região do Boqueirão da Onça desde 2012. O lugar é o habitat de parte das
últimas populações de onças da Caatinga – estima-se que, no bioma, ainda vivam
250 onças-pintadas e 2.500 onças-pardas.
No Programa Amigos da
Onça, os estudos aprofundaram o conhecimento científico sobre os grandes
felinos da Caatinga, por meio do monitoramento por telemetria, exames e coleta
de material biológico na captura para a instalação dos rádio-colares e
armadilhas fotográficas.
Esteves destaca
algumas particularidades físicas e comportamentais nas onças da Caatinga: são
menores, devido à termorregulação exigida pelo clima semiárido; os pelos das
patas são mais grossos, para se adaptar ao solo mais quente; as vibrissas, os
bigodes que ajudam na percepção sensorial dos felinos no ambiente, são mais
duros. Além disso, os dados de monitoramento mostraram que as onças percorrem
uma área de vida de mais de 10 mil hectares – superior ao deslocamento nos
demais biomas.
Quando o programa
começou, os principais problemas da conservação consistiam em conflitos entre a
população do entorno e as onças. Mas logo chegaram os empreendimentos
renováveis. “Hoje, são quatro complexos eólicos, com duas mil torres, dois em
expansão e seis para serem instalados”, conta a bióloga.
Em 2022, os três
alertas de desmatamento do MapBiomas dentro da APA envolveram o Complexo
Fotovoltaico Apia, parque de 3 mil hectares que se instalou sem a ciência do
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Em maio
passado, o Ministério Público Estadual da Bahia determinou que o Instituto do Meio Ambiente e Recursos
Hídricos (Inema) adote medidas de proteção às UCs no Boqueirão da Onça, informe
o ICMBio sobre o processo de licenciamento ambiental e adote a Resolução nº 428 do Conama.
O programa Amigos da
Onça ainda não conseguiu entender todos os efeitos diretos e indiretos das
usinas sobre a fauna. “A chegada desses empreendimentos é bem mais rápida do
que as pesquisas e os estudos sobre o impacto na fauna conseguem elucidar”,
nota Esteves. Mas há alguns sinais.
Em 2017, no período de
instalação de um dos parques, a equipe monitorava a onça-parda Vitória.
“Durante dez meses, em nenhum momento ela cruzou a linha que forma os
aerogeradores – em torno de 90 na época”, lembra Esteves. “Ela rodeava o
parque, precisava se movimentar numa área muito maior para ir atrás dos seus
recursos. Isso traz um gasto energético muito grande para o animal, em um
ambiente semiárido, com altas temperaturas do ar e do solo e baixos índices de
chuva.”
Na instalação, a
abertura de estrada para locais antes inacessíveis, junto ao aumento do tráfego
de veículos e pessoas, coincidiu com relatos mais frequentes de moradores das
comunidades do entorno da APA sobre o avistamento de onças.
“Os empreendimentos
eólicos ocorrem no topo das serras, porque os ventos são melhores, mas estão na
área de vida das onças, por serem áreas mais protegidas”, explica Esteves.
“Consequentemente, temos notado que as onças tendem a descer a serra, se aproximar
das comunidades, predar rebanhos dos criadores que, em contrapartida, muitas
vezes perseguem e abatem aquele indivíduo – a caça por retaliação.”
Fonte: ((O))eco
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