O juízo de Haia e a moral do Ocidente
As conversações entre
os “donos do mundo” costumam ser secretas e em princípio não deveriam vazar. No
entanto, transpirou em alguns órgãos da imprensa internacional que o
primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, teria alegado a seu favor,
junto a Joe Biden e Anthony Blinken, que os ingleses e norte-americanos também
teriam bombardeado e destruído cidades e populações civis em várias de suas
guerras ao redor do mundo. Se isto for certo, Netanyahu tem razão, porque de
fato sua estratégia de saturação e destruição aérea da infraestrutura e da
população civil da Faixa de Gaza é uma cópia atualizada dos bombardeios aéreos
e massacres noturnos da população civil das cidades alemãs e japonesas que
foram praticados pela aviação da Inglaterra e dos Estados Unidos durante a
Segunda Guerra Mundial.
Na verdade, o primeiro
bombardeio aéreo massivo de que se tem notícia, de uma população civil indefesa
ocorreu durante a Guerra Civil Espanhola, no dia 26 de abril de 1937, sobre a
pequena cidade de Guernica, que tinha cerca de 7 mil habitantes. O ataque foi
realizado por aviões da Força Aérea Alemã, comandados pelo coronel Wolfram von
Richthofen, embora se saiba que foi um bombardeio encomendado pelo próprio Gal
Francisco Franco (1892-1975) contra seus opositores republicanos. Em poucas
horas, 50 bombardeiros da Legião Condor despejaram 22 toneladas de explosivos
incendiários e bombas de 250 quilos sobre uma cidadezinha – sem a menor
importância estratégica – que foi inteiramente destruída, matando 1.645 pessoas
e deixando 889 feridas e mutiladas, a maioria crianças e mulheres.
No entanto, foram os
ingleses e os norte-americanos que de fato massificaram a experiência alemã e
transformaram a estratégia dos “genocídios aéreos” numa arma de guerra,
utilizada com o objetivo de arrasar grandes cidades e destruir a moral e a
vontade de luta de suas populações. Colônia, Dusseldorf, Hamburgo e Dresden
foram as cidades alemãs mais famosas destruídas pelos bombardeios ingleses, e o
mesmo aconteceu com o bombardeio norte-americano da cidade de Tóquio e de
várias outras cidades japonesas, que foram incineradas antes do ataque atômico
norte-americano contra Hiroshima e Nagasaki, como descreveu de forma realista e
implacável o ex-Secretário de Defesa norte-americano, Robert MacNamara, no seu
depoimento filmado em 2003, com o título Sob a névoa da guerra.
Nesta história que
envergonha a Humanidade, existe um personagem inglês que cumpriu papel central
na invenção e no patenteamento desses bombardeios de “saturação” dos espaços
urbanos e de suas populações civis: o Marechal e Sir Arthur Travis Harris, também
conhecido pelos ingleses como Arthur Bomber Harris, ou simplesmente Bomber
Harris. Sir Arthur Bomber Harris foi oficial da Real Air Force inglesa de 1918
até 1946, e participou da Primeira Guerra Mundial como líder de um esquadrão da
RAF. Depois, participou das guerras coloniais da Inglaterra na Índia, em 1921 e
1922, na Rodésia e no Iraque, onde lutou contra as tropas turcas e curdas Entre
1933 e 1937, trabalhou no Air Ministry inglês, onde desenvolveu suas ideias e
estratégia de bombardeios massivos e noturnos das cidades inimigas. Em 1938-9,
Sir Bomber foi enviado para a Palestina, onde pôde experimentar suas ideias de
forma pioneira exatamente contra a população palestina, na chamada “rebelião
árabe” de 1938, podendo ser considerado como uma espécie de mestre e precursor
direto de Benjamin Netanyahu.
Depois do seu longo
estágio através das guerras coloniais inglesas, o Marechal Arthur Harris voltou
para a Inglaterra em 1939, e assumiu a liderança do Bomber Comand da RAF em
fevereiro de 1942, organizando de imediato a sua primeira Operação Milênio, que
incinerou a cidade de Colônia em menos de duas horas, na noite entre 30 e 31 de
maio de 1942. Nessa noite foram lançadas sobre Colônia 1.500 toneladas de
bombas, das quais 8.300 incendiárias, 116 de fósforo, 81 de alta combustão e
outras carregadas com 125 litros de fluidos altamente inflamáveis, deixando
atrás de si 45 mil desabrigados. Um ano depois, Sir Bomber comandou também a
Operação Gomorra, realizada em conjunto com a Força Aérea norte-americana,
contra a cidade de Hamburgo, no norte da Alemanha. O bombardeio de Hamburgo
começou no dia 24 de julho e durou 7 dias e 7 noites (à noite atacavam os
ingleses e de dia, os norte-americanos). Foram realizados 3 mil bombardeios
utilizando 9 mil toneladas de bombas, e no dia 27 de julho vários incêndios se
juntaram pela ação do vento, criando um verdadeiro inferno de fogo, com suas
chamas alcançando mais de 300 metros de altura, e 800 graus centígrados,
provocando 42.600 mortes e 37 mil feridos, e mais de um milhão de desabrigados.
Alguns historiadores falam inclusive deste bombardeio de Hamburgo como tendo
sido a Hiroshima da Alemanha.
Não há dúvida,
entretanto, de que a incineração da cidade de Dresden no leste da Alemanha, em
13 de fevereiro de 1945, já quase no final da Segunda Guerra, pela RAF inglesa
e pela Força Aérea dos Estados Unidos, foi o caso mais absurdo, dramático e
vingativo dos genocídios aéreos anglo-americanos praticados na Alemanha. Neste
caso, por ordem direta e pessoal do primeiro-ministro inglês, Winston
Churchill, uma das cidades históricas mais belas e cultas da Alemanha foi
incendiada e destruída em apenas dois dias. Foram utilizados 1.300 bombardeiros
pesados que lançaram 3.900 toneladas de dispositivos incendiários, destruindo
40 quilômetros quadrados do centro da cidade, e deixando mais de 100 mil
mortos. Um número maior do que todas as mortes de civis ingleses ocorridas
durante toda a Segunda Guerra Mundial, sendo que 80% eram mulheres e crianças.
Depois disso, e ainda
no ano de 1945, a Força Aérea norte-americana utilizou a mesma estratégia dos
bombardeios noturnos contra cidades indefesas, em Tóquio e várias outras
cidades japonesas, que foram literalmente eliminadas do mapa, como aparece
descrito na entrevista ex-ministro Robert MacNamara, já mencionada. No caso
mais famoso da cidade de Tóquio, a Operação Meetinghouse, realizada nos dias 9
e 10 de março de 1945, provocou uma verdadeira tempestade de fogo noturna, com
a utilização de bombas de fragmentação para aumentar o número das vítimas,
estimadas em 200 mil pessoas, com cerca de 1 milhão de feridos. Tudo isto quase
na véspera do lançamento norte-americano de duas bombas atômicas sobre a
população civil das cidades de Hiroshima e Nagasiki, nos dias 6 e 9 de agosto
de 1945, provocando a morte instantânea de mais 200 mil civis japoneses
desarmados. Mais à frente, a aviação norte-americana voltaria a utilizar a
mesma estratégia de “saturação” aérea contra o Vietnã e o Camboja, utilizando
napalm contra as cidades, a população e as florestas vietnamitas e cambojanas.
Antes disso, entretanto, consta que em 1946, o grande “inventor” inglês dos
genocídios aéreos, Sir Arthur Travis Harris, deixou a RAF e foi ser empresário
na África do Sul, deixando atrás uma escola e inúmeros discípulos.
Resumindo: o atual
“genocídio aéreo” do povo palestino da Faixa de Gaza, praticado pela Força
Aérea Israelense, descende diretamente de uma escola estratégica
anglo-americana. Há, no entanto, duas grandes diferenças com relação à prática
anglo-americana da Segunda Guerra: a primeira é que o bombardeio da Faixa de
Gaza se dá à luz do dia e é feito por um Estado atômico que recebe 3,8 bilhões
de dólares anuais de ajuda militar dos Estados Unidos, além da venda de outros
milhões em armamentos, em cima de um povo que vive praticamente da filantropia
internacional; e a segunda, que esse novo “genocídio aéreo” está ocorrendo
neste momento, ao vivo e à cores, no “coração” religioso da civilização
ocidental, e ao ser assistido diariamente por toda a população mundial, está
contribuindo de forma decisiva e cabal para enterrar a ideia da
excepcionalidade moral do Ocidente. Neste sentido, a denúncia de Israel, pela
África do Sul, frente à Corte Internacional de Haia, pelo genocídio palestino
na Faixa de Gaza, deve ser lida também, como uma denúncia da África Negra da
inconsistência moral das potências coloniais e neocoloniais euromericanas.
Fonte: Por José Luís
Fiori, em Outras Palavras
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