terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Dono da fazenda de “Terra e Paixão” assessorou Tereza Cristina e sua empresa venceu contratos na era Bolsonaro

A novela “Terra e Paixão”, escrita por Walcyr Carrasco, reproduz uma narrativa comum às tramas rurais exibidas pela Rede Globo. O roteiro cria uma dualidade entre dois personagens ideais do campo brasileiro. De um lado, o latifundiário Antônio La Selva, um homem violento, inescrupuloso e símbolo do atraso, vivido por Tony Ramos. De outro, seu filho Caio, interpretado por Cauã Raymond, como um empresário consciente, uma visão idealizada do agronegócio moderno.

Em determinado ponto da novela, os dois personagens discutem sobre o apoio de La Selva a políticos sul-mato-grossenses, com o propósito de livrá-lo de quaisquer acusações. Nos últimos capítulos, o tema novamente volta à tona, com o fazendeiro sendo liberado da cadeia após acionar seus contatos em Brasília.

Na vida real, os donos do imóvel onde foi gravada “Terra e Paixão” também nutrem uma relação de proximidade com a política. Em uma série de reportagens, De Olho nos Ruralistas revelou o histórico de violações ambientais da Fazenda Annalu, que vai do desmatamento e criação de gado em área de Reserva Legal ao desvio do curso de um afluente do Rio Dourados para atender um megaprojeto de piscicultura de tilápias. A série detalha a dimensão do império agropecuário erigido pela família Rocha, para além da propriedade que inspirou a La Selva da novela.

A Fazenda Annalu está registrada em nome de Aurélio Rolim Rocha, o Lelinho. Aos 30 anos, o diretor da Valor Commodities, um dos maiores grupos de comercialização de grãos, bois e pescado do Mato Grosso do Sul, formou-se em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas, fala inglês fluente e dedicou-se desde cedo ao desenvolvimento no comércio exterior. Ainda durante a graduação, especializou-se em Relações Internacionais e foi assessor para missões internacionais nos governos de João Dória e Bruno Covas na prefeitura de São Paulo.

Atualmente, Lelinho é diretor-suplente da Associação de Criadores do Mato Grosso do Sul (Acrissul), principal organização de classe dos pecuaristas do estado. Em 2013, a Acrissul esteve entre as organizadoras do “Leilão da Resistência“, que reuniu dezenas de empresários e políticos para arrecadar recursos para a contratação de “serviços de segurança” visando combater as retomadas de fazendas pelos povos Guarani Kaiowá e Terena. Ao todo, as vendas de gado geraram R$ 860 mil, mas o dinheiro foi bloqueado por decisão da Justiça, que julgou que o leilão teria “o poder de incentivar a violência” e colidia “com os princípios constitucionais do direito à vida, à segurança e à integridade física”.

O empresário também atua como consultor de Relações Internacionais para a Federação das Indústrias de Mato Grosso do Sul (Fiems), tendo liderado a missões do grupo à Índia e ao Paraguai.

EMPRESÁRIO VIAJOU COM A MINISTRA PARA ÁSIA E EUROPA

Entre 2019 e 2021, Lelinho Rocha ocupou os cargos de assessor internacional e de coordenador de Promoção de Imagem e Cultura Exportadora do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), acompanhando a ex-ministra Tereza Cristina (PP-MS) em viagens internacionais à China, Alemanha, Inglaterra, Índia e Arábia Saudita.

A relação com a senadora sul-mato-grossense inclui a adesão de Lelinho à campanha bolsonarista da Semana da Pátria, em 2020. A ação, deflagrada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e pela própria Tereza Cristina, convocava fazendeiros a hastearem a bandeira do Brasil na entrada de suas propriedades para celebrar o Dia da Independência em meio à pandemia de Covid-19. Em sua conta no Instagram, o diretor da Valor Commodities parabenizava a ação com uma foto da própria Fazenda Annalu.

Durante o período em que Lelinho atuou no governo de Jair Bolsonaro, uma das empresas do grupo foi agraciada em contratos públicos dos Ministérios da Defesa e da Economia. Segundo dados do Portal da Transparência, a Mirage Aero Combustíveis Ltda, dona de seis postos de abastecimento de aeronaves, espalhadas por Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina, recebeu R$ 414.478,76 do governo federal. As contratações são relativas a 32 operações de compra de querosene e combustíveis pelo Comando da Aeronáutica e pela 9ª Superintendência da Receita Federal, em Curitiba (PR).

A aviação agrícola é um dos principais filões de negócios da Valor Commodities, além de principal meio de transporte entre as fazendas do grupo. Em uma foto no Instagram, Lelinho posa dentro de um jatinho ao lado do avô, Nilton Rocha Filho, o fundador do grupo empresarial e dono original da Fazenda Annalu. Em 2020, o empresário recebeu da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) a autorização para instalação de um aeródromo na Fazenda Salto, em Nioaque (MS), somando-se à pista privada existente na fazenda de “Terra e Paixão”.

“ORIENTANDO” DE FHC, LELINHO VISA CARREIRA POLÍTICA

Antes de assumir os negócios da família, Lelinho Rocha foi um dos 250 herdeiros de grupos empresariais brasileiros selecionado para ingressar no programa Legado para a Juventude. Segundo a página no Linkedin, o projeto visava conduzir “as novas gerações da elite empresarial brasileira a conhecer a fundo o Brasil”, encontrando “seu próprio caminho de protagonismo no país”.

O nome da plataforma vem do livro homônimo de Fernando Henrique Cardoso e da educadora Daniela Rogatis, que atuaram como conselheiros do programa. Encerrado em 2019, o Legado para a Juventude foi dirigido por Marina Cançado, ex-integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência, durante o governo de Michel Temer, e que atualmente presta consultoria relativa a créditos de carbono. Entre os professores, três ex-ministros de FHC — Armínio Fraga, Pedro Malan e Gustavo Franco —, além do colunista Joel Pinheiro da Fonseca, da Folha.

A relação com o ex-presidente foi celebrada por Lelinho em sua conta no Instagram, desativada após a publicação da série deste observatório sobre a Fazenda Annalu. O diretor da Valor Commodities chama FHC de “orientador” e declara sua admiração pelo político.

Ele também possui fotos com Michel Temer e com o dono da Havan, Luciano Hang, a quem considera uma “fonte de inspiração”. “É uma pessoa que acredita no Brasil, uma pessoa excepcional”, afirma Lelinho, em vídeo publicado ao lado do empresário.

O jovem não disfarça a vontade de ingressar na política. Em entrevista ao podcast Publi & Cast, o herdeiro detalha seus propósitos:

— Eu gosto muito de política. Eu acho que hoje, se você perguntasse assim: ‘Lelinho você quer ser candidato?’ Hoje, eu não gostaria de ser. Por quê? Porque eu acho que tem muita coisa que tem que mudar. Fora que eu tenho uma coisa muito positiva que é a idade que eu tenho. Para eu ser candidato, o que eu penso: eu quero ter uma história para apresentar.

VÍDEO DETALHA HISTÓRICO DE VIOLAÇÕES AMBIENTAIS

Ao longo da série de reportagens, De Olho nos Ruralistas identificou um longo histórico de irregularidades ambientais na Fazenda Annalu, que sediou as gravações de “Terra e Paixão”, e nas outras propriedades do grupo Valor Commodities, controlado pela família Rocha.

Essas histórias são contadas em um vídeo publicado no no canal do De Olho nos Ruralistas no YouTube, que mostra, em imagens, os impactos do desmatamento e da degradação causadas pelos drenos e pela criação de gado em Deodápolis (MS).

 

Ø  Donos da fazenda de “Terra e Paixão” têm terra flagrada com trabalho paraguaio escravo e infantil

 

A novela “Terra e Paixão” chegou ao fim na última sexta-feira (19). No último capítulo da trama de Walcyr Carrasco, o vilão Antônio La Selva (Tony Ramos) é morto por seu ex-capanga Ramiro (Amaury Lorenzo), após fugir da cadeia e tentar invadir o casamento de seu filho Caio (Cauã Raymond) com a professora Aline (Bárbara Reis). O folhetim encerra com um final feliz dos mocinhos, em meio à narração do pajé Jurecê, vivido pelo ator e escritor indígena Daniel Munduruku.

Na vida real, os finais nem sempre são felizes para quem vive cercado pelo latifúndio. Em 2020, uma inspeção na Fazenda Salto, no município de Nioaque (MS), conduzida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), encontrou quinze trabalhadores em situação degradante — sendo oito menores de 18 anos e três paraguaios. Três deles tinham 15 anos, o que configura trabalho infantil. O imóvel pertence à Valor Commodities, um dos maiores grupos comercializadores de grãos, carne e pescados do Mato Grosso do Sul, e dono da Fazenda Annalu, que recebeu as gravações da novela “Terra e Paixão”.

Em uma série de reportagens, De Olho nos Ruralistas mostrou o histórico de violações ambientais na fazenda usada pela Rede Globo e em outras propriedades da família Rocha, dona do Grupo Valor. A investigação mostrou as conexões políticas do diretor da empresa Aurélio Rolim Rocha, ex-assessor da ministra Tereza Cristina, além de expor as dívidas milionárias da empresa junto às multinacionais Bunge e Seara, que pediram a penhora dos valores pagos pela emissora carioca para gravar na Fazenda Annalu.

A lista de violações encontrada pelo MPT em Nioaque é extensa. As vítimas não recebiam equipamentos adequados para o manejo de agrotóxicos, tampouco tinham acesso a água e sabão para se lavarem após o contato com as substâncias tóxicas. Segundo o texto da denúncia ao qual a reportagem do De Olho nos Ruralistas teve acesso, os trabalhadores eram “forçados a viver em barracos de lona, numa estrutura totalmente improvisada em um curral, dormindo em camas feitas com tábuas e fazendo suas necessidades fisiológicas num buraco, ou então no mato”.

O documento revela que o banheiro, improvisado com lonas plásticas e sem teto, estava bastante sujo no momento da inspeção, tornando seu uso inviável. De acordo com o relato dos trabalhadores, a situação sem higiene e segurança deixava-os expostos ao ataque de animais peçonhentos, como cobras e escorpiões, comumente encontrados na região.

Em uma segunda vistoria, realizada em outubro de 2022, os fiscais encontraram alojamentos ainda precários. Os quartos, divididos por várias pessoas, eram cubículos mal ventilados e com quase nenhum espaço entre as camas. Paredes sem pintura e ausência de armários completavam o cenário insalubre.

Pela jornada diária de até nove horas de trabalho — de segunda a sábado — os empregados recebiam entre R$ 50 e R$ 60 por dia. Somado o tempo de deslocamento, ficavam à disposição dos contratantes por quase 12 horas diárias. O MPT constatou ainda que os empregadores não realizavam o depósito mensal do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Entre as obrigações dos trabalhadores, estava a limpeza do solo para o plantio de soja. Para isso, eles recolhiam pedras e raízes com as próprias mãos.

DONOS DA FAZENDA SABIAM DAS CONDIÇÕES DEGRADANTES, DIZ MPT

Desde julho de 2020, a Fazenda Salto vinha sendo arrendada por Maísa Rodrigues da Costa, que teve seu nome inserido na “lista suja” do trabalho escravo. O imóvel de 2.882 hectares pertence a Aurélio Rolim Rocha, o Lelinho, diretor da Valor Commodities, que não foi ouvido durante as investigações. No entanto, de acordo com o relatório final do Inquérito Policial, apresentado em abril de 2023, “ficou também evidenciado que o gerente e os proprietários da Fazenda Salto sabiam das precárias condições dos trabalhadores”.

Em depoimento à Polícia Federal, a agropecuarista contou que sua família é responsável por terras em outros estados e alegou não ter conhecimento das condições precárias de trabalho na Fazenda Salto porque não visitava o local. Aos policiais, Maisa afirmou trabalhar ao lado dos irmãos Wanderley e Wanilton Rodrigues da Costa, que assinam como fiadores o contrato de arrendamento da Fazenda Salto. “A gente tem área em Roraima, no Maranhão e aqui no Mato Grosso do Sul”, revelou. “A gente toca 35 mil hectares, eu não tenho como ir nas fazendas”.

A reportagem teve acesso ao vídeo do depoimento, onde Maisa afirma que um dos funcionários seria o responsável pela contratação dos demais trabalhadores. No entanto, o nome dele aparece na lista de vítimas no processo de investigação.

O contrato de arrendamento rural tem duração de dez anos e garante ao proprietário do imóvel uma participação sobre o produto da colheita. Iniciado como uma parceria agrícola, o acordo previa a limpeza da propriedade e a conversão da pastagem em lavoura. Os arrendatários haviam se comprometido a iniciar o plantio com a área limpa — normalmente um eufemismo para o desmatamento — em até um ano a partir do início da vigência do contrato.

No processo, que corre na Vara de Trabalho de Jardim (MS), do Tribunal Regional do Trabalho da 24º Região, Maisa firmou um acordo de pagamento das verbas rescisórias acrescidas de R$ 5 mil a título de indenização por danos morais para cada trabalhador. O valor total é de R$ 146.286,00, a ser pago em cinco parcelas de R$ 29.257,20. Após a conclusão do inquérito policial, o MPF ofereceu a denúncia em agosto de 2023, sem incluir os proprietários da Fazenda Salto entre os réus. A denúncia foi aceita pela Justiça Federal em agosto do ano passado, pela 3ª Vara Federal de Campo Grande. O processo está em curso.

Em 2022, após a segunda vistoria, Maísa voltou a ser autuada pela fazenda permanecer transgredindo uma série de leis trabalhistas. Ela firmou um novo acordo em março de 2023 para pagamento de R$ 13 mil devido às novas irregularidades constatadas.

Em seu site oficial — retirado do ar após o início da publicação desta série de reportagens —, o Grupo Valor incluía a Fazenda Salto entre as propriedades ligadas à empresa. Em 2021, um ano após a vistoria que identificou trabalho infantil na propriedade, Aurélio Rolim Rocha conseguiu junto ao governo Bolsonaro a permissão para instalar um aeródromo privado na Fazenda Salto.

De Olho nos Ruralistas tentou novamente contato com os representantes de Lelinho e do Grupo Valor. Assim como nas primeiras reportagens da série, nossa equipe não obteve retorno. O observatório também buscou ouvir a arrendatária Maisa Costa, sem sucesso.

DENÚNCIA DE DESMATAMENTO GEROU FLAGRANTE TRABALHISTA

O inquérito para investigar o trabalho análogo à escravidão na Fazenda Salto, aberto em 2021, se iniciou por acaso, após o Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS) receber uma denúncia de desmatamento na propriedade. Com a ajuda de imagens de satélites, o órgão identificou a supressão de aproximadamente 105 hectares de Cerrado.

A primeira visita técnica do MPMS para apurar o desmate ilegal se deu em dezembro de 2020. Na propriedade, foi constatado o corte raso de aroeira, uma espécie nativa protegida por lei. A portaria 83-N de 1991, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), proíbe o corte da aroeira — considerada uma madeira nobre — sem plano de manejo aprovado pelos órgãos ambientais. Mesmo em caso de desmatamentos autorizados, a espécie não pode ser cortada. Durante a operação na Fazenda Salto, foram apreendidas 415 lascas de aroeira, avaliadas em R$ 10.436,00, bem como 36 troncos, medindo 2,2 metros, avaliados em R$ 1.157,00.

Foi durante essa vistoria que a equipe do MPMS foi surpreendida pela presença de adultos e adolescentes vivendo e trabalhando em condições insalubres. O caso foi então repassado ao MPT.

Entre as irregularidades, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) da Fazenda Salto previa uma Área de Preservação Permanente (APP) inferior à prevista pela legislação ambiental. A lavoura de soja invadia a faixa destinada à preservação das margens do Rio Apa. No processo, a atual arrendatária afirma não ter relação com qualquer inconsistência no CAR da propriedade, atribuindo a responsabilidade a Lelinho Rocha e ao Grupo Valor.

Em 2022, ano seguinte à instauração do Inquérito Civil que apurou os crimes ambientais, novas imagens de satélite identificaram o aumento da área desmatada. Segundo relatório formulado pelo Núcleo de Geotecnologia do MPMS, a supressão vegetal na Fazenda Salto atingiu 219,56 hectares. Mais que o dobro do que fora constatado anteriormente em 2021.

Maisa Rodrigues da Costa nega a responsabilidade pelo novo desmatamento. Em julho de 2023, Lelinho foi notificado para esclarecer os danos ambientais, mas ainda não se manifestou no processo.

SÉRIE REVELOU IRREGULARIDADES EM SÉRIE EM IMÓVEIS DA FAMÍLIA ROCHA
Em Nioaque (MS), além da Fazenda Salto, local do flagrante das irregularidades, o grupo Valor Commodities mantém outras duas fazendas, a Fazenda Porteira Velha e a Fazenda Vaticano. Somadas, as propriedades no município atingem 5.949,36 de extensão.

Segundo o site do grupo, a companhia tem 50 mil hectares em Caracol, Deodápolis, Douradina, Nioaque, Porto Murtinho, Corumbá, além de uma empresa de aviação, seis postos de abastecimento de aeronaves e um setor de ativos imobiliários. O patrimônio da família Rocha inclui ainda o megaprojeto de piscicultura da Fazenda Annalu, que rendeu uma denúncia do MPMS pela instalação irregular de drenos.

A dimensão desse império — comparável ao de Antônio La Selva, na novela “Terra e Paixão” — é detalhada em vídeo publicado no canal do De Olho nos Ruralistas no YouTube.

 

Fonte: De Olho nos Ruralistas

 

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