Senador desnuda o sequestro de uma CPI pela
direita
Depois que o
bolsonarismo foi defenestrado do comando do Executivo em 2022 pelo voto dos
brasileiros, restou à direita recorrer, em 2023, ao Legislativo para atingir os
objetivos mais imediatos de fomentar o dissenso, fabricar fake news e produzir
memes para a internet.
Com o apoio de Arthur
Lira (PP-AL) e de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), parlamentares criaram, à custa do
contribuinte, comissões vazias, sem justificativa plausível, sem fato
determinado e, como consequência, sem resultados. Como na comissão especial
sobre os Yanomami e nas CPIs das ONGs e do MST, os parlamentares usaram a
estrutura do Congresso apenas para desfilar suas teses ideologicamente
enviesadas.
Nas CPIs reinou a pura
perseguição ideológica em episódios que remetem ao macarthismo. Para o bem da
saúde mental do país, elas sumiram do noticiário tão rapidamente quanto
apareceram. Conforme comentei nesta newsletter em março de 2023, os
bolsonaristas-ruralistas criaram a comissão contra o MST a fim de tentar
constranger o governo federal.
A CPI das ONGs,
presidida pelo senador Plínio Valério (PSDB-AM) e relatada por Márcio Bittar
(União-AC), era uma metralhadora giratória que fazia uma pescaria num oceano de
dados, conforme escrevi na newsletter em julho.
No final de 2023, de
forma melancólica, a CPI das ONGs acabou com um relatório pífio, no dizer de um
dos seus membros, o senador Beto Faro (PT-PA). Crítico da abertura da CPI, Faro
proferiu um voto em separado que se constitui no mais extenso desnudamento já
feito sobre as práticas da direita e da extrema direita na degradação das
Comissões Parlamentares de Inquérito do Congresso Nacional.
Em seu texto de 77
páginas, Faro pontuou as barbaridades que revelam uma “tentativa recorrente de
criminalização” das ONGs.
“CPI não pode ser
feita para perseguir setores ou grupos humanos dos quais você discorda.
O senador discorreu:
“Logo no início dos
trabalhos ficou evidente que esta CPI teria limites para o pleno debate
democrático, priorizando apenas uma narrativa já consolidada e apresentada, uma
CPI, que antes de promover oitivas e investigações apontou os ‘criminosos’
embora não apresentasse em seu requerimento de criação quais teriam sido os
crimes cometidos, em quais entidades seriam investigadas.”
“O problema principal
do Requerimento de criação da presente CPI foi a ausência de um fato
determinado: não consta o nome de qualquer ONG que deveria ser investigada,
muito menos quais seriam os convênios ou repasses de verbas objeto da
investigação.”
“O ‘Plano de Trabalho’
apresentado pelo relator [Bittar] não apontou quais seriam os convênios e
repasses de verbas e quais ONGs seriam investigadas.”
“Como o ‘Plano de
Trabalho’ não estabeleceu nenhum cronograma, as audiências e as pessoas
convidadas para depor foram feitas de forma imprevisível e casuística.”
“O grupo majoritário
da CPI desejava apenas expor seus pontos de vista, sem maiores espaços para
divergências.”
A 12ª reunião da CPI
ocorreu em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, quando alguns indígenas
aproveitaram para fazer ataques à gestão da FOIRN, a federação das associações
indígenas do rio Negro. Beto Faro descreveu no seu voto em separado que “uma
indígena defendeu expressamente a depredação da referida entidade indígena, nos
moldes do dia 8 de Janeiro”.
A CPI ouviu um
conhecido negacionista da emergência climática mundial, Luiz Carlos Molion,
professor em Alagoas. Segundo Beto Faro, Molion “deu uma palestra a respeito de
sua tese no sentido de que a devastação da Amazônia não afeta o clima no
planeta”.
“Nessa mesma reunião,
senadores insistiram em relacionar a questão climática com a tese de que as
ONGs foram criadas por potências estrangeiras para promover lavagem cerebral e
controlar o mundo (parte da ‘teoria’ de uma ‘Nova Ordem Mundial’).”
Essa teoria
conspiratória, apresentada principalmente no depoimento prestado pelo
ex-ministro querido dos militares Aldo Rebelo, atribui “superpoderes” às ONGs,
que estariam a serviço de países ou de grupos estrangeiros. Até o Ministério
Público e o Judiciário estariam sob controle das ONGs. Rebelo também tenta
demonizar os jornalistas que cobrem as questões ambientais. Beto Faro observou:
“Se as ONGs tivessem
tanto poder quanto o sr. Aldo Rebelo pensa (ou diz pensar), certamente
conseguiriam eleger uma bancada parlamentar gigantesca. No entanto, o que se
verifica no Congresso Nacional é a existência de inúmeros parlamentares que
defendem o agronegócio, as pautas religiosas e o armamentismo. Nunca ouvimos
falar de uma bancada ou de uma frente parlamentar que defenda os interesses de
ONGs.”
Quem escolhia ouvir
determinado e suposto “especialista” era o comando da CPI, controlada pela
direita.
“Não houve qualquer
explicação por parte da Presidência da CPI a respeito dos critérios para oitiva
de determinadas pessoas (os ‘invisíveis’, no exato termo utilizado pelo
presidente da CPI), de supostos especialistas, de determinados órgãos públicos
ou desta ou daquela ONG. Se havia alguma lógica para ouvir a ONG ‘A’ e não a
ONG ‘B’, ela não foi mencionada. Tampouco por voltar a realizar debates
genéricos a respeito de temas variados. Tudo a reforçar uma condução errática
de uma CPI sem fato determinado e sem um verdadeiro plano de trabalho.”
“Alguns dos indígenas
que depuseram na CPI não parecem ter tido contato direto com ONGs. Sob tal
aspecto, não podem ser testemunhas oculares, mas apenas pessoas que têm
opiniões próprias a respeito de ONGs.”
Um indígena Guajajara,
por exemplo, fez várias acusações contra o Instituto Socioambiental, o ISA. Diz
o senador Faro: “Como se o ISA fosse responsável por todas as mazelas que
sofrem as pessoas da Amazônia. Contudo, o ISA não atua nos territórios Guajajara”.
“As ONGs têm seus
objetivos claramente estabelecidos nos seus estatutos e não há nada de errado
em uma ONG ter por objetivo apenas a defesa da floresta e não de extirpar todas
as mazelas do mundo.”
“Ao contrário da ideia
de que a pobreza e as mazelas socioeconômicas da Amazônia têm como responsáveis
a ação das ONGs, é amplamente reconhecido – e ficou evidenciado em diferentes
momentos das reuniões desta CPI – que essas entidades são uma reação ao processo
de desenvolvimento da Amazônia orientado numa perspectiva de depredação dos
recursos naturais, voltado para o ganho externo em detrimento da população
local, com geração de pobreza, concentração de renda e conflitos fundiários,
dentre outras consequências.”
No depoimento do
presidente do Ibama, Ricardo Agostinho, foram tratados temas totalmente alheios
a uma “CPI das ONGs”, como fogo na floresta e regularização fundiária. Beto
Faro descreveu:
“A história pessoal do
depoente também foi muito indagada pelos membros da CPI, desde cursos e
atividades que ele teria feito quando adolescente e até eventuais
irregularidades em obras realizadas pela prefeitura de Bauru, em São Paulo, no
período em que ele foi prefeito. O Ibama não trabalha com ONGs, ficando claro
que essa reunião foi mais uma reunião sem qualquer conexão com o objeto da
CPI.”
Quando foram ouvir um
dos fundadores do ISA, o ex-presidente da Funai e um dos mais sérios
indigenistas do país, Márcio Santilli, os senadores trouxeram à baila temas tão
absurdamente variados quanto “a construção da Ferrogrão e do Linhão de Tucuruí,
emissões de dióxido de carbono, esquerdismo, mineração, massacre de Haximu,
marco temporal e narcotráfico”.
“Houve ataques ao ISA,
inclusive insinuação de que o ISA promoveria ‘escravidão dos índios do Alto Rio
Negro’. Em várias ocasiões o depoente não pôde responder às perguntas
formuladas por ter sido interrompido por membros da CPI.”
“Na sessão
de mais de seis horas pela qual ouviu a ministra do Meio Ambiente, Marina
Silva, a CPI discutiu temas disparatados e “sem qualquer conexão com ONGs,
inclusive com citações da Bíblia”.
“Essa reunião não se
diferenciou das demais em que ONGs não foram ouvidas, nas quais nada ou quase
nada se discutiu a respeito de ONGs e repasse de verbas a ONGs.
Em um dos pontos mais
inacreditáveis da CPI, em uma diligência na cidade de São Félix do Xingu, no
Pará, abriu-se espaço para “um palanque para que fosse criticado o processo de
desintrusão de não indígenas na Terra Indígena Apyterewa”.
Ao longo do segundo
semestre do ano passado, ainda que sob forte pressão política, conforme
abordado pela Pública, o governo Lula cumpriu ordens judiciais, inclusive do
Supremo Tribunal Federal (STF), para a desintrusão de mais de 2 mil invasores.
Ao longo dos últimos anos, os invasores promoveram uma enorme devastação
ambiental. A CPI, assim, se prestou a um palanque da ilegalidade.
“Posseiros e políticos
locais tiveram amplo espaço para expor suas opiniões pessoais contrárias à
demarcação.”
E o que tudo isso
tinha a ver com “CPI das ONGs”? Nada, é claro.
“Uma CPI sem fato
determinado e sem um cronograma de trabalho não poderia ser algo melhor do que
um fórum de debates e espaço para ilações e denúncias vazias. [...] Sobraram
acusações. O que faltou na CPI foram provas ou evidências mínimas de
malversação de recursos públicos. Restou a impressão de que as ONGs cumpriram
os convênios de forma irretocável. Faltou investigação para localizar ao menos
um caso de irregularidade. [...] Mas a CPI não apontou nada exatamente porque
passou a maior parte do tempo envolta em outras questões.”
A direita, a extrema
direita, o bolsonarismo, o ruralismo e o militarismo que comandaram o governo
de Jair Bolsonaro fizeram tremendos estragos na imagem do Executivo dentro e
fora do país (vide o combate à Covid-19 e a explosão do desmatamento na Amazônia).
Na imagem do Legislativo, a bancada da destruição também deixou sua marca em
2023. E ela é péssima.
.
Fonte: Por Rubens
Valente da Agência Pública
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