Calor afeta mais pretos, pardos, idosos e
mulheres no Brasil, aponta estudo
Nos anos 2010, o Brasil enfrentou de 3 a 11 ondas de calor por ano, quase quatro vezes mais do que na década de 1970, quando de
zero a no máximo três desses eventos climáticos extremos foram registrados.
As consequências são
fatais: de 2000 a 2018, em torno de 48 mil brasileiros morreram por efeito de bruscos aumentos de temperatura - número superior ao de mortes por deslizamentos de terra.
Os dados inéditos
foram compilados em estudo publicado na quarta-feira (24/1) por 12
pesquisadores de sete universidades e instituições brasileiras e portuguesas,
como a Universidade de Lisboa e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no periódico
científico Plos One.
Outra descoberta da
pesquisa é a de que há grupos mais vulneráveis a esses eventos extremos do
clima. Em primeiro lugar, os idosos e, entre eles, as mulheres.
"Pela questão
fisiológica, sabemos que os mais velhos são os mais vulneráveis, por terem
corpos com menor capacidade de regulação térmica e por apresentarem mais
comorbidades", explica Renata Libonati, professora do Instituto de
Geociências da UFRJ e coautora da pesquisa.
A maior
vulnerabilidade das mulheres também se justifica por razões fisiológicas,
segundo o estudo.
Pessoas pardas, pretas
e menos escolarizadas também estão entre os grupos considerados mais
vulneráveis, conforme a pesquisa.
"Os eventos
climáticos extremos não são democráticos, eles atingem muito mais aqueles que
não têm acesso a recursos de adaptação", comenta o físico Djacinto
Monteiro dos Santos, que liderou o estudo, como parte de sua pesquisa no
Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Situações
socioeconômica precárias, que atingem as faixas mais pobres, levam a acesso
também precário a condições de moradia, sistema de saúde e meios de
prevenção."
Santos afirma que as
condições urbanas também costumam fazer com que regiões mais pobres das cidades
sejam mais vulneráveis.
"Quando a
sensação térmica é de 45ºC na Zona Sul do Rio de Janeiro [onde estão bairros de
famílias mais ricas], aí é de 58ºC em Bangu, na Zona Oeste [área mais
pobre]", exemplifica o pesquisador.
Para calcular as
vítimas das ondas de calor, os pesquisadores analisaram mais de 9 milhões de
registros de óbitos de períodos em que ocorreram esses fenômenos no Brasil.
"Seguimos uma
série de padrões de tratamentos de dados para evitar alterações nos
resultados", afirma Libonati.
Os cálculos levaram à
conclusão de que em torno de 48 mil brasileiros morreram por consequência de
ondas de calor entre 2000 e 2018.
As mortes se deram por
razões como problemas circulatórios, doenças respiratórias e por condições
crônicas agravadas pela alta temperatura.
·
Ondas de calor mais
frequentes e prolongadas
Para definir o que são
ondas de calor, usou-se um padrão conhecido como Fator de Excesso de Calor (EHF,
na sigla em inglês), que leva em consideração a intensidade, duração e
frequência de aumentos na temperatura para prever níveis considerados nocivos à
saúde humana.
"Os eventos de
ondas de calor aumentaram em frequência e intensidade", diz Monteiro dos Santos, da UFRJ.
A pesquisa analisou
dados das 14 áreas metropolitanas mais populosas do Brasil, onde vive 35% da
população nacional, um total de 74 milhões de brasileiros.
Foram assim
consideradas as seguintes cidades: Manaus e Belém, no Norte; Fortaleza,
Salvador e Recife, no Nordeste; São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, no
Sudeste; Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre, no Sul; e as regiões
metropolitanas de Goiânia, Cuiabá e do Distrito Federal, no Centro-Oeste.
Além de aumentarem em
volume, as ondas de calor também estão cada vez mais prolongadas.
Nas décadas de 1970 e
1980, esses eventos adversos duravam de três a cinco dias. Entre os anos de
2000 e 2010, entre quatro e seis dias.
O climatologista
Carlos Nobre, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo (USP) e copresidente do Painel Científico para a
Amazônia, ressalta que estes impactos do calor extremo têm sido evidenciados
por pesquisas científicas.
"Já há dados
globais que mostram que as ondas de calor são os eventos climáticos extremos
que mais vitimam no planeta, à frente, por exemplo, de enchentes, e que há
grupos mais vulneráveis a essas tragédias", diz Nobre.
Membro da Academia
Brasileira de Ciências, Nobre é hoje um dos mais renomados nomes no campo de
estudos das mudanças climáticas. Ele não tem ligação com o estudo da UFRJ e o
leu a pedido da BBC News Brasil.
"A pesquisa é
interessante por trazer dados inéditos e por mostrar como as ondas de calor tem
efeitos no Brasil que já foram vistos em outras regiões do planeta", opina
o climatologista.
"Outro aspecto
que quero destacar é como a análise foi feita em torno de centros urbanos, nos
quais os efeitos do aquecimento global são ainda mais sentidos, por efeitos
como o da ilha de calor [fenômeno caracterizado pela maior temperatura em cidades,
em relação às áreas rurais]."
Nobre ressalta que, na
cidade de São Paulo, a temperatura média é 4ºC acima do que em áreas menos
urbanizadas do Estado.
Quando há aumentos
bruscos, com as ondas de calor, os efeitos são ainda mais drásticos em regiões
urbanas.
"Já se tem
ciência de que populações com menos acesso a recursos, como os mais pobres,
sofrem mais. Afinal, ter um ar condicionado, por exemplo, já soluciona o
problema", complementa o pesquisador da USP.
"Essa nova
pesquisa, contudo, faz associações socioeconômicas e traz dados inéditos que
podem ajudar a guiar políticas públicas."
Os autores da pesquisa
avaliam que, apesar de ter matado mais de 48 mil brasileiros em duas décadas,
as ondas de calor tem menos visibilidade e recebem menos atenção em comparação
com outros eventos climáticos catastróficos.
"Mesmo com a alta
mortalidade, as ondas de calor são desastres negligenciados no Brasil",
diz Renata Libonati, da UFRJ e coautora do estudo.
"Em comparação a
deslizamentos e enchentes, que apresentam grande impacto visual, o aumento de
temperatura pode ser tido como invisível."
O levantamento
calculou que ocorreram mais mortes por efeito de ondas de calor no Brasil do
que por deslizamentos de terra, que costumam ocorrer por efeito de tempestades.
A referência para a
comparação é uma pesquisa do ano passado do Instituto de Pesquisas Tecnológicas
(IPT) que chegou à conclusão de que, de 1988 a 2022, houve cerca de 4,1 mil
mortes de brasileiros por deslizamentos em 269 municípios de 16 Estados.
O climatologista
Carlos Nobre acrescenta outro motivo para desastres como alagamentos terem
recebido maior atenção midiática do que as ondas de calor.
"Outros desastres
climáticos causam mortes imediatamente, como em enchentes. Já o aumento da
temperatura por vezes leva dias, semanas ou até meses para matar."
·
Medidas urgentes
Segundo os autores do
novo estudo brasileiro, o interesse global pelas consequências das ondas de
calor aumentou após 2003. Carlos Nobre concorda com a conclusão, que é um
consenso entre pesquisadores do campo.
Naquele ano, uma onda
de calor atingiu a Europa, em particular a França, vitimando cerca de 70 mil
pessoas durante o verão.
Desde então, segundo
os cientistas escrevem no artigo publicado na Plos One, "a mega onda de
calor do verão europeu de 2003 foi estudada profundamente".
Segundo um relatório
conjunto da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da Organização Mundial de
Meteorologia (OMM), divulgado no ano passado, o calor mata 15 milhões de
pessoas ao ano em todo o mundo.
"Após o trauma de
2003, os países europeus passaram a adotar protocolos transversais de prevenção
e combate, unindo defesa civil, meteorologia, sistemas de saúde e esforços de
comunicação, o que tem mostrado resultados positivos", diz Libonati, da
UFRJ.
Carlos Nobre, que
também é ex-diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres
Naturais (Cemaden), indica que seria preciso começar pela implementação de
sistemas de alertas de ondas de calor.
"Mortes por
deslizamentos e alagamentos ocorrem, mas diminuem ano a ano, pelo sucesso de
forças de prevenir e combater que o Brasil tem implementado, com mais de 4 mil
pluviômetros espalhados por 1,2 mil cidades, monitorando pontos de maior risco."
Uma das medidas
apresentadas pelo estudo lançado na Plos One é a instalação de sistemas
similares para alertar a população sobre a chegada de ondas de calor.
"Se nada for
feito nesse sentido, mortes por efeito das altas temperaturas, que poderiam ser
prevenidas, vão aumentar ano a ano", conclui Nobre.
Fonte: BBC News Brasil
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