São Paulo, o santo que fez do cristianismo
uma religião
Naquela carta que pode
ser considerada a certidão de nascimento da maior metrópole brasileira, o padre
jesuíta José de Anchieta (1534-1597) escreveu sobre 25 de janeiro de 1554:
"Celebramos em paupérrima e estreitíssima casinha a primeira missa, no dia
da conversão do apóstolo São Paulo e, por isso, dedicamos a ele nossa
casa".
Foi assim que a base
daqueles missionários religiosos no planalto de Piratininga foi batizada com o
nome do santo. Com o tempo, o nome seria emprestado à vila — São Paulo dos
Campos de Piratinga —, até se tornar a denominação da cidade.
Quase que um acaso,
poderia se dizer. Fosse outro dia, seria outro santo o homenageado, afinal a
praxe do catolicismo de então era recorrer sempre ao santo do dia na hora das
nomenclaturas.
Um feliz acaso, diriam
os estudiosos do cristianismo. Porque se a cidade que comemora o 470º
aniversário nesta quinta-feira (25/1) se tornou uma das mais importantes do
mundo, este cidadão romano chamado Paulo que viveu 2.000 anos atrás também pode
ser chamado de protagonista.
Não fosse Paulo,
prolífico escritor do seu tempo, empreendedor de diversas viagens missionárias,
perspicaz na resolução de conflitos e hábil em organizar e sistematizar o
conhecimento, o cristianismo não teria se tornado uma religião — ao menos não
uma religião tão importante, sobretudo para o Ocidente.
"Ele foi, sem
dúvida, o primeiro grande teólogo do cristianismo", afirma o religioso
Darlei Zanon, filósofo e teólogo, conselheiro da Società San Paolo, em Roma.
"E ainda hoje pode ser considerado um dos maiores teólogos da história do
cristianismo, porque as bases [que ele fundamentou] ainda são estudadas."
"Mais do que
teólogo, diria que foi um grande pastoralista, porque ele dava respostas
concretas às questões pastorais, da sociedade, daquelas primeiras comunidades
cristãs. Assim, vejo-o como um teólogo prático, um pastor, já que suas cartas
tentavam dar respostas concretas aos problemas de moral, de liturgia, de
correção fraterna, de liderança…", enumera.
Nascido em Tarso, na
atual Turquia, por volta do ano 5, ele se chamava Saulo. Cidadão romano,
tornou-se um oficial encarregado de perseguir cristãos naqueles tempos em que,
logo após a morte de Jesus, os primeiros seguidores de seus ensinamentos
precisavam agir na clandestinidade.
Conforme relatos
bíblicos constantes do livro Atos dos Apóstolos, foi em uma dessas
missões que ele viveu uma experiência mística decisiva. Segundo o texto, depois
corroborado pela tradição, o oficial estava saindo de Jerusalém a caminho de
Damasco, onde deveria buscar prisioneiros para serem interrogados e, muito provavelmente,
executados.
Sua jornada, então,
teria sido interrompida por uma luz ofuscante, seguida de uma voz divina.
"Saulo, Saulo, por que me persegues?", teria ele ouvido. "Quem
és, Senhor?", foi sua resposta, atônito. "Eu sou Jesus, a quem tu
persegues."
A partir desta
experiência, Paulo resolveu mudar de lado. Deixou de perseguir cristãos para se
tornar um deles. "Essa narrativa é uma espécie de rito de passagem, a
mudança de perseguidor para perseguido", analisa o estudioso de
hagiografias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
E, num simbolismo de
mudança de vida, adotou novo nome. Saulo passou então a ser Paulo.
Mais do que seguidor
do cristianismo, tornou-se um protagonista da evangelização. Fundou
comunidades, com as quais mantinha contato frequente por cartas, e sistematizou
os ensinamentos de Jesus de forma a consolidar, além de uma doutrina, uma
religião.
"Não fosse Paulo,
talvez hoje não conheceríamos Jesus. Ao menos não o cristianismo como temos
hoje", afirma Maerki. "Os escritos de Paulo e toda a reverberação
posterior foram de fato uma espécie de raiz do cristianismo."
·
Uma teologia a partir
da experiência
Vice-diretor do Lay
Centre em Roma e doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, o
vaticanista Filipe Domingues atenta para o ponto de que a teologia de Paulo
"parte de uma experiência. "É importante frisar isso, porque antes de
procurar entender o que é a fé cristã ou racionalizar sobre ela, os seguidores
de Cristo, principalmente os primeiros, partiram de uma experiência de fé. No
caso de Paulo, foi a conversão, que o tornou o maior anunciador", comenta
ele.
"Nesse sentido,
não se trata de um processo racional, político ou metódico, simplesmente. Ele
teve uma experiência radical, fez uma interpretação e, a partir dali, começou a
anunciar", complementa o vaticanista.
A importância é
tamanha que a Igreja Católica, cujo costume mais frequente é celebrar como data
festiva de um santo o dia da morte do mesmo, reservou para Paulo duas
efemérides: enquanto o 29 de junho marca seu martírio, o 25 de janeiro recorda
o episódio de sua conversão.
Ambas as datas,
diga-se, foram inventadas a posteriori, pois não há registros precisos que
atestem a exata ocorrência desses episódios. Segundo pesquisas de Maerki, a
festa da conversão de Paulo começou a ocorrer na região da Gália, hoje França,
no século 6. Em Roma, ela só começou a aparecer 500 anos mais tarde.
Fato é que mesmo não
tendo convivido com Jesus vivo, Paulo acabou assumindo um papel importante no
grupo dos primeiros cristãos — sendo que muitos deles, como Pedro, tinham
vivido junto e acompanhado o mestre em vida. Não à toa, ele mesmo se
autodenomina apóstolo — e é reconhecido como tal —, usando aqui um termo mais
comumente reservado aos 12 primeiros seguidores, os "escolhidos" por
Jesus no início de sua missão, que conviveram com ele.
Há um racha inicial
desses primeiros anos do que viria a ser o cristianismo. E a queda de braço,
vencida por Paulo, deixa claro que ele tinha poder argumentativo sobre os
demais pensadores dessa igreja ainda embrionária.
"Ele abriu a
Igreja para aqueles que não eram judeus. E esse foi o grande feito de
Paulo", lembra Domingues. Era uma questão pertinente na época. Como Jesus
era judeu e havia pregado o seu evangelho aos judeus, os primeiros seguidores
eram todos previamente judeus — convertidos ao cristianismo. Esse modus
operandi fazia com que alguns pensassem, inclusive Pedro — considerado o
primeiro papa —, que para se tornar cristão era preciso, antes, ser judeu.
"Paulo tinha um
entendimento diferente. Entendia que era preciso abrir para todo mundo",
salienta Domingues. "Interpretava que, se Jesus tinha vindo para salvar a
todos, o evangelho não deveria ser anunciado antes apenas aos judeus."
Como a visão dele
prevaleceu, o cristianismo pôde se espalhar.
·
Escritor prolífico
De regiões no Oriente
Médio a pontos importantes na Europa de então, cada viagem representava a
evangelização cristã e o assentamento de comunidades do que viria a ser a
Igreja Católica.
Para não perder o
contato com tantos povos, Paulo escrevia cartas. Muitas cartas. Eram documentos
nos quais consolidava o que ele entendia do cristianismo, por meio de
orientações morais, recordações interpretativas das mensagens deixadas por
Jesus e recomendações sobre como as lideranças deveriam se comportar.
Mas não era nada
simples escrever naquela época. "Tratava-se de um processo lento e muito
caro, muito custoso", comenta Zanon. Escrevia-se nos papiros ou nos
pergaminhos e, segundo pesquisas, Paulo preferia os pergaminhos, preparados a
partir de couro.
Para escrever, Paulo
utilizava um instrumento cortante chamado cálamo. As letras eram riscadas e
preenchidas a tinta. "Era um processo muito lento. Mesmo assim ele
escreveu muito. Não sabemos quantas cartas. Catorze estão na Bíblia, sendo que
alguns estudiosos consideram que 9 são dele e outras cinco de comunidades
paulinas", diz Zanon. "Mas as próprias cartas trazem referências a
outras que não temos hoje, então ele certamente escreveu muito mais. Escreveu
muito."
"Como era um
processo caro, tinha de ser feito com cuidado. Ele não podia errar nem
reescrever, para não desperdiçar material. Escrevia com as letras muito
próximas, muito juntas, ocupando o máximo possível o espaço do
pergaminho", detalha.
Essas missivas foram
escritas durante suas viagens e, principalmente, nos anos em que ele esteve
preso — justamente por praticar o cristianismo. "Ficou parte do período em
cárcere domiciliar e tinha a liberdade de escrever. Escrevia para animar as comunidades
que ele fundou", conta Zanon.
O religioso lembra de
outra característica das cartas de Paulo. "Ele conhecia o aramaico e o
hebraico, mas escreveu as cartas em grego, o que deve ter tornado um processo
ainda mais lento", aponta.
A escolha do idioma já
denotava uma aspiração a universalizar cada vez mais o cristianismo. "O
grego era a cultura predominante na época e foi assim que ele espalhou aquilo
que era da cultura localizada naquela época onde a gente chama hoje de Terra
Santa. Trouxe para a cultura grega, ocidental. Isso foi uma grande abertura.
Por isso a Igreja Católica não existiria hoje não fosse o trabalho de
Paulo", diz o vaticanista Domingues.
Zanon lembra que
"a grande novidade" de Paulo foi a "inculturação do
evangelho". "Ele fez uma 'tradução' da mensagem, adaptando os
conceitos-chave para a linguagem e a mentalidade greco-romana", analisa.
"Soube dar categorias teóricas, e adaptar a mensagem para outras culturas,
para as exigências e os problemas concretos das comunidades. Trouxe imagens da
guerra, do esporte, da cidade, coisas que Jesus não utilizava em suas
parábolas, que eram calcadas em símbolos agropastoris."
"São Paulo fez a
passagem para o mundo mais amplo, universal. Deu as bases para que o
cristianismo se tornasse universal", afirma ele.
Zanon acredita que se
Paulo tivesse vivido em tempos contemporâneos, teria se tornado "um grande
escritor, talvez um jornalista". "Ele escrevia muito, conhecia muito
os problemas do mundo. Hoje, tentaria dar respostas para as problemáticas
atuais, expor as dificuldades e os problemas, denunciar as injustiças",
compara.
·
Morte por decapitação
Todo esse trabalho, é
claro, passou a incomodar os romanos, que viam no cristianismo um grupo de
arruaceiros que, ao proclamar Jesus como um rei, poderia botar em risco a
hegemonia política do sistema.
Há controvérsias sobre
quantas vezes e por quanto tempo Paulo teria ficado preso, mas o mais provável
é que tenha sido uma vez na atual Turquia e duas vezes, mais para o fim de sua
vida, na região da cidade de Roma.
É certo que ele
participou presencialmente de um encontro ocorrido entre os primeiros líderes
cristãos, em algum momento entre os anos de 48 e 50, em Jerusalém — naquele que
é conhecido como o primeiro concílio da história da Igreja.
E acredita-se que
tenha ido evangelizar na região de Roma a partir do ano de 60. Ali teria sido
preso novamente e, por fim, provavelmente no ano 67, condenado à morte.
"Não se sabe
exatamente o dia da morte [a Igreja acabou, por convenção, adotando o dia 29 de
junho]. O que temos veio por tradição: ele teria morrido durante as
perseguições de Nero [imperador romano que governou de 54 a 68]. Foi decapitado
com uma espada na então periferia de Roma", conta Zanon.
Era uma pena capital
considerada mais branda, reservada aos cidadãos romanos. "Sua morte teria
sido mais digna do que a dos outros cristãos. Os não-romanos, como Pedro, foram
crucificados. A decapitação era algo menos doloroso, e Paulo tinha cidadania
romana", explica.
No local onde
acredita-se que ele tenha sido morto, depois foi erguida uma igreja, hoje a
Basílica de São Paulo Fora dos Muros.
·
Protetor de muitas
causas
Curiosamente, apesar
de emprestar seu nome à cidade desde a fundação, São Paulo só passou a ser
reconhecido como patrono da capital paulista em 2008, quando o cardeal
arcebispo d. Odilo Scherer apresentou um pedido formal ao então papa Bento 16.
Mas o santo é
tradicionalmente citado como protetor de muitas coisas e muitas causas. Zanon
frisa que ele também é patrono oficial de Roma e de Londres, além de ser
considerado o protetor dos escritores, impressores e editores — "por uma
questão óbvia, já que foi ele talvez um dos maiores escritores da história da
humanidade", ressalta.
"Também é o
patrono dos evangelizadores e missionários", acrescenta. "E, não
oficialmente, também podemos dizer que ele é o patrono dos imigrantes e dos
viajantes, porque ele passou grande parte da vida viajando. É o santo da
universalidade, conheceu muitas culturas e tem um coração universal."
O religioso ainda
lembra que Paulo é acionado "contra as tempestades do mar e os
naufrágios" e em casos "de picada de cobra", também conforme a
devoção popular. "E padroeiro dos convertidos", diz.
"No mundo atual,
ele pode nos ajudar muito porque foi alguém que sempre se abriu ao diferente.
Precisamos de tolerância, de abertura ao diálogo, de aceitação das diferenças
em busca de um denominador comum", comenta Zanon.
De olho nos problemas
contemporâneos, o religioso ainda atualiza Paulo como "um modelo contra as
fake news". "Porque Paulo, em suas cartas, era o defensor da verdade.
Ele passou a vida toda escrevendo para as comunidades buscando combater a
manipulação, criticando as pessoas que tentavam manipular os povos em benefício
próprio. Nesse sentido, estava combatendo as fake news, o que hoje chamamos de
fake news", acredita.
Fonte: BBC News Brasil
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