terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Chocolateiros da Amazônia: biofábrica propõe novo modo de vida para comunidades da floresta

Numa tenda na comunidade de Surucuá, na beira do Rio Tapajós, Jhanne Franco ensina 15 moradores a fabricarem chocolate a partir do zero. Jhanne é uma mestre-chocolateira de Rondônia, e também uma prova viva de como o conceito do chocolate produzido do grão à barra (bean to bar) pode funcionar na floresta amazônica.

“Aqui é onde desenvolvemos as ideias dos alunos”, diz ela, apontando para a sala de aula montada em uma clareira. “Não estou aqui para passar uma receita. Quero mostrar para eles como se dá a fabricação do chocolate, para que eles possam criar suas próprias receitas”, ressalva Jhanne.

O programa de treinamento faz parte de um conceito desenvolvido pelo Instituto Amazônia 4.0, organização sem fins lucrativos voltada para a preservação da floresta. O instituto foi concebido em 2017, quando dois cientistas brasileiros, os irmãos Carlos e Ismael Nobre, começaram a pensar em formas de impedir que a Amazônia atingisse seu ponto de não-retorno, quando o desmatamento, associado às mudanças climáticas, transformaria a floresta numa savana seca de maneira permanente.

A solução é criar uma bioeconomia descentralizada, em vez de enxergar a Amazônia como uma fornecedora de commodities para indústrias de outros locais. Os investimentos seriam feitos em plantios florestais susentáveis, no lugar do gado e da soja, responsáveis pelo desmatamento de grandes trechos de floresta. Além disso, os lucros permaneceriam dentro das comunidades locais.

Um estudo do World Resources Institute (WRI) e da New Climate Economy, publicado em junho de 2023, analisou 13 produtos primários da Amazônia, incluindo o cacau e o cupuaçu, e concluiu que mesmo essa pequena seleção de produtos poderia aumentar o PIB da bioeconomia em pelo menos US$ 8 bilhões por ano.

Agregar valor a essas matérias-primas originárias da floresta requer alguma industrialização, e para isso foram criados os Laboratórios Criativos da Amazônia (LCAs). Tratam-se de biofábricas itinerantes e sustentáveis que incorporam a automação industrial e a inteligência artificial no processo de produção de chocolates, permitindo que as comunidades tradicionais não só colham os produtos, mas também os processem e embalem, vendendo o produto final a preços mais elevados.

A lógica é simples: sem uma renda atrativa, os moradores muitas vezes são obrigados a vender ou usar suas terras para a pecuária, lavouras de soja ou mineração. Por outro lado, se conseguem garantir seu sustento a partir da floresta, têm um incentivo para permanecer no local e protegê-la, tornando-se guardiões da Amazônia.

“A ideia é traduzir esta riqueza biológica e cultural para uma atividade econômica que não seja exploratória ou prejudicial”, diz Ismael Nobre.

·        Chocolate da floresta

Depois de anos de planejamento, a primeira biofábrica foi montada no final de setembro de 2023 em Surucuá, comunidade tradicional localizada na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, perto do Rio Tapajós. A tenda tem formato de domo geodésico e pode ser montada e desmontada em poucos dias. Ela conta com 60 painéis solares para atender à demanda de energia, reduzindo bastante o custo de funcionamento.

Dentro da fábrica, uma máquina torra os grãos de cacau em meio ao aroma de chocolate que paira no ar. Jhanne caminha pela sala informando aos alunos que o forno é equipado com sensores para garantir temperatura constante na torra do cacau. Ela também explica que todas as máquinas são automatizadas, o que facilita sua operação.

“Você configura a receita passo a passo no sistema, e o sistema envia informações para o equipamento que realizará todo o processo, sem que você tenha que lembrar como faz”, diz Jhanne. “Ele também informa quando você precisa acrescentar algum ingrediente à receita programada.”

Na sala de armazenamento, as geladeiras estão cheias de chocolates criados pelos alunos, que levam frutas locais na composição, e também de cupulate – produto feito com cupuaçu, da mesma família do cacau. Jhanne me oferece uma barra feita por um aluno e diz: “é um dos melhores chocolates que já comi”. O chocolate leva uma especiaria da floresta – mantida em segredo – que confere um sabor picante parecido com canela.

“Tivemos ideias de produtos que eu não conhecia, e quando experimentei achei fantásticos”, acrescenta Jhanne.

Os alunos podem também imprimir seus próprios desenhos no chocolate, como logotipos ou símbolos culturais. Além disso, eles têm aulas que ensinam a vender os produtos para mercados maiores e a atender às regulações da vigilância sanitária. Todos com quem a reportagem conversou na comunidade se disseram entusiasmados com as novas oportunidades que a iniciativa pode trazer, especialmente com a nova alternativa de meio de vida para além do plantio de mandioca, sua principal atividade econômica.

“Tem sido uma ótima experiência de aprendizagem conhecer e valorizar mais nossa biodiversidade e produtos locais”, conta Mariane Souza Chaves, moradora que trabalha na agricultura. “Costumávamos jogar fora as sementes de cupuaçu, e agora estamos fazendo cupulate com elas.”

“Ela [a iniciativa] gera renda para as famílias e melhora a qualidade de vida, a segurança e a soberania alimentar para as famílias daqui”, acrescenta Mariane. “É uma fonte de renda alternativa para os jovens permanecerem aqui e preservarem nosso conhecimento cultural.”

Embora o projeto ainda esteja no início, levou meses para chegar a esse ponto. O Amazônia 4.0 visitou várias comunidades na floresta e trabalhou junto com elas para criar o conceito da biofábrica. O instituto convidou 13 lideranças indígenas, ribeirinhas, extrativistas e quilombolas para passar uma semana em São Paulo visitando fábricas de chocolate para ver todo o processo de produção, do início até “o momento em que o consumidor paga o preço mais alto pelo produto final”, diz Ismael Nobre.

“Isso faz parte do nosso método de desenvolver as coisas com as comunidades na Amazônia. Não desenvolvemos coisas na nossa cabeça e as levamos para lá como se fosse uma fórmula mágica, dizendo: ‘Olhem, isso vai ser bom para vocês’”, diz Ismael. “Todo o trabalho é feito em parceria e usando o conhecimento local, e ao mesmo tempo compreendendo que há mais coisas além do mundo em que eles vivem, que é o mundo da alta tecnologia.”

Na biofábrica, encontramos Francisco Maia, que ajudou a montar o domo em setembro e documenta todos os passos do projeto para o Amazônia 4.0. Natural de São Paulo, ele fez parte da equipe que levou a biofábrica para Surucuá, a cinco dias de viagem por terra e seis horas de barco pelo Rio Tapajós, um dos afluentes do Amazonas, que chega a ter 16 quilômetros de largura em alguns lugares.

O projeto exige uma curva de aprendizagem, diz Francisco. Por exemplo, eles aprenderam logo no início que precisavam de um ar-condicionado mais potente na fábrica para mantê-la fresca no calor da Amazônia; o processo de fabricação de chocolate exige uma temperatura constante, pois as variações podem alterar seu sabor. Todas essas descobertas contribuirão para o sucesso do projeto na próxima comunidade.

Depois que Jhanne concluir o treinamento em janeiro e a comunidade aprender todo o processo de produção e como operar as máquinas, a biofábrica será desmontada e transportada de barco para a próxima comunidade ribeirinha ou quilombola do Pará.

No novo local, ao longo de algumas semanas, a comunidade receberá o mesmo treinamento. Alguns equipamentos ficarão em Surucuá para que a comunidade possa dar continuidade à produção de chocolate e cupulate depois que a biofábrica partir.

“Nós somos as cobaias”, diz Francisco. “O que vai acontecer nas outras comunidades, não sabemos. Todas são diferentes.”

·        Um novo modo de vida

A região Norte é a maior produtora de cacau do Brasil, onde a matéria-prima é vendida por cerca de 10 reais o quilo, comenta Ismael Nobre. No outro extremo da cadeia de produção, “um quilo de chocolate fino custa de 200 a 300 reais”, diz ele. “Isso representa um valor agregado de cerca de 2.000% ou mais.”. Se esses lucros pudessem ser mantidos dentro das comunidades que fabricam os produtos, eles aumentariam drasticamente a renda local e forneceriam mais incentivos para proteger a terra.

Outros produtos amazônicos, como o açaí, sustentam mais de 350 mil pessoas somente no Pará e oferecem uma renda muito maior do que o trabalho na pecuária ou na extração de madeira, atividades associadas ao desmatamento desenfreado.

O Instiuto Amazônia 4.0 tem planos de implantar mais biofábricas, que também podem produzir azeites de frutos amazônicos – como buriti, patauá e tucumã – e castanhas-do-pará, outro setor multimilionário. “Esse influxo de recursos gerará uma cadeia de transformação econômica”, diz Ismael Nobre.

Francisco e eu nos abrigamos do sol do meio-dia dentro do domo geodésico, sob o ar-condicionado. A Amazônia vem sofrendo uma seca prolongada, resultado de um clima que está mudando de forma imprevisível e que pode significar um desastre para a floresta tropical. No entanto, há esperança. “Estamos aqui agora no meio da tempestade, mas estamos fazendo algo bom”, diz Maia, olhando ao redor da biofábrica. “É uma nova maneira de viver.”

 

Ø  Sul Global paga caro pelo uso de pesticidas, revela o novo Atlas dos Agrotóxicos

 

O Brasil está no topo dos países que mais importam e consomem agrotóxicos no mundo. Só no final de 2023, foi aprovada, com vetos, a PL 1459/2022, conhecida entre ambientalistas como “PL do Veneno”, lei que flexibiliza a utilização de pesticidas em todo o país.

São mais de 3 mil agroquímicos registrados hoje em território nacional, número que dobrou entre os anos de 2010 e 2021. Desse montante, 49% dos produtos são considerados altamente perigosos, como mostram dados publicados no recém-lançado Atlas dos Agrotóxicos, editado pelo braço brasileiro da fundação alemã Heinrich Böll.

Ao compilar dados de forma inédita sobre a ação de determinados produtos no solo, no ar e nas águas, o atlas joga luz em questões sobretudo comunitárias, como a insegurança alimentar, a pobreza e a influência de empresas do ramo em políticas públicas – além de estudos sobre o impacto dos agrotóxicos em vários campos, como o econômico, o ecológico e o social.

“Um dos objetivos do mapa é visibilizar o trabalho de pesquisadores de todo o país”, conta Marcelo Montenegro, coordenador de programas e projetos de justiça socioambiental da fundação no Brasil. Para ele, a mudança de paradigma pode acontecer quando a perspectiva regional for sobreposta à visão econômica. “O pensamento tem que ser feito a partir do ambiental, do local, ao invés do econômico. Hoje, continua-se usando agrotóxico para resolver o problema, não a causa do problema.”

Neste processo, uma máxima do filósofo inglês Thomas Hobbes parece pautar o debate: se os fins justificam os meios, agir com o intuito de produzir alimentos em larga escala é ir de encontro com o projeto da Revolução Verde, que incentivou as monoculturas pelo mundo – e popularizou o uso de pesticidas também.

No atlas, a pesquisadora Julia Dolce, co-editora da publicação, escreve sobre as falhas dessa política implementada no Brasil na década de 1960 e faz paralelos com problemas contemporâneos. Um deles está nas recentes nomenclaturas e readequações para tornar produtos mais ‘verdes’. Um rebranding, uma maquiagem para a comercialização desses insumos danosos para a agricultura.

Ao mesmo tempo, a fome, fantasma que assombrou o Brasil nos últimos anos, voltou, atingindo 15,5% da população. Um indício de que o aumento da produção de alimentos favorecida pelos pesticidas não foi capaz de combater a insegurança alimentar – como mostra o gráfico abaixo, produzido com dados da Rede Penssan e publicado no Atlas dos Agrotóxicos.

·        Pesquisas regionais, perspectivas globais

Por meio de artigos de ativistas e ambientalistas de vários biomas do Brasil, a Fundação Heinrich Böll pretende pautar o debate público para a revisão e a implementação de políticas regulatórias para o consumo dos agrotóxicos.

Hoje, por exemplo, a quantidade de resíduo do herbicida glifosato encontrado em amostras de água potável no Brasil é 5 mil vezes maior do que na União Europeia. Usado para o controle de ervas daninhas, o glifosato é danoso para espécies polinizadoras, como as abelhas – um dos maiores e mais recentes problemas da fauna brasileira.

“Herbicidas como o glifosato e 2,4-D provocam uma redução de organismos vivos do solo”, pontua a pesquisadora Francileia Paula de Castro. “Pesquisas realizadas com minhocas expostas a concentrações de glifosato por períodos incubatórios mostraram redução de peso – com perda de até 50% –, parada reprodutiva e notórias alterações morfológicas, podendo [estes organismos] inclusive desaparecer de plantações que usam este ingrediente ativo”.

Como relembra o Atlas dos Agrotóxicos, o glifosato é potencialmente cancerígeno para os humanos, assim como outros herbicidas amplamente vendidos também causam sérios danos à saúde: a atrazina, por exemplo, é um desregulador hormonal, e o paraquat pode causar intoxicações fatais.

A pesquisadora em Saúde Pública Aline do Monte Gurgel, em seu artigo sobre a presença de pesticidas na água publicado no atlas, mostra como a questão começa antes da própria vida, no ventre das mulheres: “Há também um recorte de gênero nestas intoxicações, posto que as mulheres têm sofrido em seus próprios corpos os desdobramentos delas: seja por resíduos de agrotóxicos encontrados no leite materno, seja pelos casos de abortos em função da exposição aos agrotóxicos, seja ainda por gerarem bebês com malformação fetal e/ou que apresentam puberdade precoce nos primeiros anos de vida”.

Ao longo da edição, mapas elaborados com base em pesquisas de institutos, com dados checados pela Agência Lupa, mostram vários gargalos do agronegócio, como a contaminação do milho por defensores agrícolas. Como hoje 96% da produção do alimento é transgênica, Castro trouxe os perigos da contaminação cruzada na cultura do grão – que é importado para diversos países do globo.

Nos últimos anos, a União Europeia aprovou uma série de medidas para controlar o uso de agrotóxicos em suas plantações sem deixar, no entanto, de os produzir em larga escala. A exportação de insumos para países do Sul Global é uma faca de dois gumes.

Em um levantamento recente, compilado no Atlas dos Agrotóxicos, dados que mostram como resíduos de defensivos agrícolas proibidos em países como França e Alemanha são encontrados em alimentos consumidos nas dietas locais. “As commodities brasileiras entram em solo europeu com uma espécie de consentimento”, alerta Montenegro, citando uma das medidas mais polêmicas da Convenção de Roterdã.

“Essas empresas acabam produzindo e exportando para países como o Brasil, mas o impacto volta para os países do norte. É um problema global, porque existem poucos processos internacionais em que se pode debater essa questão. É preciso de um marco global para se regular a questão dos agrotóxicos”, ressalta Montenegro.

Para complementar a questão, a pesquisadora Katrin Wenz, em seu artigo no atlas, mostra o impacto dessas substâncias no pólen e néctar de plantas tratadas com agrotóxicos, citando um estudo de 2017 revelador: “75% de todas as amostras de mel do mundo todo continham pelo menos um neonicotinoide, conhecido por ser prejudicial às abelhas”.

 

Fonte: Mongabay

 

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