Chocolateiros da Amazônia: biofábrica
propõe novo modo de vida para comunidades da floresta
Numa tenda na
comunidade de Surucuá, na beira do Rio Tapajós, Jhanne Franco ensina 15
moradores a fabricarem chocolate a partir do zero. Jhanne é uma
mestre-chocolateira de Rondônia, e também uma prova viva de como o conceito do
chocolate produzido do grão à barra (bean to bar) pode funcionar na
floresta amazônica.
“Aqui é onde
desenvolvemos as ideias dos alunos”, diz ela, apontando para a sala de aula
montada em uma clareira. “Não estou aqui para passar uma receita. Quero mostrar
para eles como se dá a fabricação do chocolate, para que eles possam criar suas
próprias receitas”, ressalva Jhanne.
O programa de
treinamento faz parte de um conceito desenvolvido pelo Instituto Amazônia 4.0, organização sem fins lucrativos voltada para a preservação da
floresta. O instituto foi concebido em 2017, quando dois cientistas brasileiros, os irmãos Carlos e Ismael
Nobre, começaram a pensar em formas de impedir que a Amazônia atingisse seu
ponto de não-retorno, quando o desmatamento, associado às mudanças climáticas,
transformaria a floresta numa savana seca de maneira permanente.
A solução é criar uma
bioeconomia descentralizada, em vez de enxergar a Amazônia como uma fornecedora
de commodities para indústrias de outros locais. Os investimentos seriam feitos
em plantios florestais susentáveis, no lugar do gado e da soja, responsáveis pelo desmatamento de
grandes trechos de floresta. Além disso, os lucros permaneceriam dentro das
comunidades locais.
Um estudo do World Resources Institute (WRI) e
da New Climate Economy, publicado em junho de 2023, analisou 13 produtos
primários da Amazônia, incluindo o cacau e o cupuaçu, e concluiu que mesmo essa
pequena seleção de produtos poderia aumentar o PIB da bioeconomia em pelo menos
US$ 8 bilhões por ano.
Agregar valor a essas
matérias-primas originárias da floresta requer alguma industrialização, e para
isso foram criados os Laboratórios Criativos da Amazônia (LCAs). Tratam-se de
biofábricas itinerantes e sustentáveis que incorporam a automação industrial e
a inteligência artificial no processo de produção de chocolates, permitindo que
as comunidades tradicionais não só colham os produtos, mas também os processem
e embalem, vendendo o produto final a preços mais elevados.
A lógica é simples:
sem uma renda atrativa, os moradores muitas vezes são obrigados a vender ou
usar suas terras para a pecuária, lavouras de soja ou mineração. Por outro
lado, se conseguem garantir seu sustento a partir da floresta, têm um incentivo
para permanecer no local e protegê-la, tornando-se guardiões da Amazônia.
“A ideia é traduzir
esta riqueza biológica e cultural para uma atividade econômica que não seja
exploratória ou prejudicial”, diz Ismael Nobre.
·
Chocolate da floresta
Depois de anos de
planejamento, a primeira biofábrica foi montada no final de setembro de 2023 em
Surucuá, comunidade tradicional localizada na Reserva Extrativista
Tapajós-Arapiuns, perto do Rio Tapajós. A tenda tem formato de domo geodésico e
pode ser montada e desmontada em poucos dias. Ela conta com 60 painéis solares
para atender à demanda de energia, reduzindo bastante o custo de funcionamento.
Dentro da fábrica, uma
máquina torra os grãos de cacau em meio ao aroma de chocolate que paira no ar.
Jhanne caminha pela sala informando aos alunos que o forno é equipado com
sensores para garantir temperatura constante na torra do cacau. Ela também explica
que todas as máquinas são automatizadas, o que facilita sua operação.
“Você configura a
receita passo a passo no sistema, e o sistema envia informações para o
equipamento que realizará todo o processo, sem que você tenha que lembrar como
faz”, diz Jhanne. “Ele também informa quando você precisa acrescentar algum
ingrediente à receita programada.”
Na sala de
armazenamento, as geladeiras estão cheias de chocolates criados pelos alunos,
que levam frutas locais na composição, e também de cupulate – produto feito com
cupuaçu, da mesma família do cacau. Jhanne me oferece uma barra feita por um
aluno e diz: “é um dos melhores chocolates que já comi”. O chocolate leva uma
especiaria da floresta – mantida em segredo – que confere um sabor picante
parecido com canela.
“Tivemos ideias de
produtos que eu não conhecia, e quando experimentei achei fantásticos”,
acrescenta Jhanne.
Os alunos podem também
imprimir seus próprios desenhos no chocolate, como logotipos ou símbolos
culturais. Além disso, eles têm aulas que ensinam a vender os produtos para
mercados maiores e a atender às regulações da vigilância sanitária. Todos com
quem a reportagem conversou na comunidade se disseram entusiasmados com as
novas oportunidades que a iniciativa pode trazer, especialmente com a nova
alternativa de meio de vida para além do plantio de mandioca, sua principal
atividade econômica.
“Tem sido uma ótima
experiência de aprendizagem conhecer e valorizar mais nossa biodiversidade e
produtos locais”, conta Mariane Souza Chaves, moradora que trabalha na
agricultura. “Costumávamos jogar fora as sementes de cupuaçu, e agora estamos
fazendo cupulate com elas.”
“Ela [a iniciativa]
gera renda para as famílias e melhora a qualidade de vida, a segurança e a
soberania alimentar para as famílias daqui”, acrescenta Mariane. “É uma fonte
de renda alternativa para os jovens permanecerem aqui e preservarem nosso
conhecimento cultural.”
Embora o projeto ainda
esteja no início, levou meses para chegar a esse ponto. O Amazônia 4.0 visitou
várias comunidades na floresta e trabalhou junto com elas para criar o conceito
da biofábrica. O instituto convidou 13 lideranças indígenas, ribeirinhas,
extrativistas e quilombolas para passar uma semana em São Paulo visitando
fábricas de chocolate para ver todo o processo de produção, do início até “o
momento em que o consumidor paga o preço mais alto pelo produto final”, diz
Ismael Nobre.
“Isso faz parte do
nosso método de desenvolver as coisas com as comunidades na Amazônia. Não
desenvolvemos coisas na nossa cabeça e as levamos para lá como se fosse uma
fórmula mágica, dizendo: ‘Olhem, isso vai ser bom para vocês’”, diz Ismael.
“Todo o trabalho é feito em parceria e usando o conhecimento local, e ao mesmo
tempo compreendendo que há mais coisas além do mundo em que eles vivem, que é o
mundo da alta tecnologia.”
Na biofábrica,
encontramos Francisco Maia, que ajudou a montar o domo em setembro e documenta
todos os passos do projeto para o Amazônia 4.0. Natural de São Paulo, ele fez
parte da equipe que levou a biofábrica para Surucuá, a cinco dias de viagem por
terra e seis horas de barco pelo Rio Tapajós, um dos afluentes do Amazonas, que
chega a ter 16 quilômetros de largura em alguns lugares.
O projeto exige uma
curva de aprendizagem, diz Francisco. Por exemplo, eles aprenderam logo no
início que precisavam de um ar-condicionado mais potente na fábrica para
mantê-la fresca no calor da Amazônia; o processo de fabricação de chocolate
exige uma temperatura constante, pois as variações podem alterar seu sabor.
Todas essas descobertas contribuirão para o sucesso do projeto na próxima
comunidade.
Depois que Jhanne
concluir o treinamento em janeiro e a comunidade aprender todo o processo de
produção e como operar as máquinas, a biofábrica será desmontada e transportada
de barco para a próxima comunidade ribeirinha ou quilombola do Pará.
No novo local, ao
longo de algumas semanas, a comunidade receberá o mesmo treinamento. Alguns
equipamentos ficarão em Surucuá para que a comunidade possa dar continuidade à
produção de chocolate e cupulate depois que a biofábrica partir.
“Nós somos as
cobaias”, diz Francisco. “O que vai acontecer nas outras comunidades, não
sabemos. Todas são diferentes.”
·
Um novo modo de vida
A região Norte é
a maior produtora de cacau do Brasil, onde a matéria-prima é vendida por cerca de 10 reais o quilo,
comenta Ismael Nobre. No outro extremo da cadeia de produção, “um quilo de
chocolate fino custa de 200 a 300 reais”, diz ele. “Isso representa um valor
agregado de cerca de 2.000% ou mais.”. Se esses lucros pudessem ser mantidos
dentro das comunidades que fabricam os produtos, eles aumentariam drasticamente
a renda local e forneceriam mais incentivos para proteger a terra.
Outros produtos
amazônicos, como o açaí, sustentam mais de 350 mil pessoas somente no Pará e
oferecem uma renda muito maior do que o trabalho na pecuária ou na extração de
madeira, atividades associadas ao desmatamento desenfreado.
O Instiuto Amazônia
4.0 tem planos de implantar mais biofábricas, que também podem produzir azeites
de frutos amazônicos – como buriti, patauá e tucumã – e castanhas-do-pará,
outro setor multimilionário. “Esse influxo de recursos gerará uma cadeia de transformação
econômica”, diz Ismael Nobre.
Francisco e eu nos
abrigamos do sol do meio-dia dentro do domo geodésico, sob o ar-condicionado. A
Amazônia vem sofrendo uma seca prolongada,
resultado de um clima que está mudando de forma imprevisível e que pode
significar um desastre para a floresta tropical. No entanto, há esperança.
“Estamos aqui agora no meio da tempestade, mas estamos fazendo algo bom”, diz
Maia, olhando ao redor da biofábrica. “É uma nova maneira de viver.”
Ø
Sul Global paga caro pelo uso de
pesticidas, revela o novo Atlas dos Agrotóxicos
O Brasil está no topo
dos países que mais importam e consomem agrotóxicos no mundo. Só no final de
2023, foi aprovada, com vetos, a PL 1459/2022, conhecida entre ambientalistas
como “PL do Veneno”, lei que
flexibiliza a utilização de pesticidas em todo o país.
São mais de 3 mil
agroquímicos registrados hoje em território nacional, número que dobrou entre
os anos de 2010 e 2021. Desse montante, 49% dos produtos são considerados
altamente perigosos, como mostram dados publicados no recém-lançado Atlas dos Agrotóxicos, editado
pelo braço brasileiro da fundação alemã Heinrich Böll.
Ao compilar dados de
forma inédita sobre a ação de determinados produtos no solo, no ar e nas águas,
o atlas joga luz em questões sobretudo comunitárias, como a insegurança
alimentar, a pobreza e a influência de empresas do ramo em políticas públicas –
além de estudos sobre o impacto dos agrotóxicos em vários campos, como o
econômico, o ecológico e o social.
“Um dos objetivos do
mapa é visibilizar o trabalho de pesquisadores de todo o país”, conta Marcelo
Montenegro, coordenador de programas e projetos de justiça socioambiental da
fundação no Brasil. Para ele, a mudança de paradigma pode acontecer quando a perspectiva
regional for sobreposta à visão econômica. “O pensamento tem que ser feito a
partir do ambiental, do local, ao invés do econômico. Hoje, continua-se usando
agrotóxico para resolver o problema, não a causa do problema.”
Neste processo, uma
máxima do filósofo inglês Thomas Hobbes parece pautar o debate: se os fins
justificam os meios, agir com o intuito de produzir alimentos em larga escala é
ir de encontro com o projeto da Revolução Verde, que incentivou as monoculturas
pelo mundo – e popularizou o uso de pesticidas também.
No atlas, a
pesquisadora Julia Dolce, co-editora da publicação, escreve sobre as falhas
dessa política implementada no Brasil na década de 1960 e faz paralelos com
problemas contemporâneos. Um deles está nas recentes nomenclaturas e
readequações para tornar produtos mais ‘verdes’. Um rebranding, uma maquiagem
para a comercialização desses insumos danosos para a agricultura.
Ao mesmo tempo, a
fome, fantasma que assombrou o Brasil nos últimos anos, voltou, atingindo 15,5%
da população. Um indício de que o aumento da produção de alimentos favorecida
pelos pesticidas não foi capaz de combater a insegurança alimentar – como mostra
o gráfico abaixo, produzido com dados da Rede Penssan e publicado no Atlas dos
Agrotóxicos.
·
Pesquisas regionais,
perspectivas globais
Por meio de artigos de
ativistas e ambientalistas de vários biomas do Brasil, a Fundação Heinrich Böll
pretende pautar o debate público para a revisão e a implementação de políticas
regulatórias para o consumo dos agrotóxicos.
Hoje, por exemplo, a
quantidade de resíduo do herbicida glifosato encontrado em
amostras de água potável no Brasil é 5 mil vezes maior do que na União
Europeia. Usado para o controle de ervas daninhas, o glifosato é danoso para
espécies polinizadoras, como as abelhas – um dos maiores e mais recentes
problemas da fauna brasileira.
“Herbicidas como o
glifosato e 2,4-D provocam uma redução de organismos vivos do solo”, pontua a
pesquisadora Francileia Paula de Castro. “Pesquisas realizadas com minhocas
expostas a concentrações de glifosato por períodos incubatórios mostraram
redução de peso – com perda de até 50% –, parada reprodutiva e notórias
alterações morfológicas, podendo [estes organismos] inclusive desaparecer de
plantações que usam este ingrediente ativo”.
Como relembra o Atlas
dos Agrotóxicos, o glifosato é potencialmente cancerígeno para os humanos,
assim como outros herbicidas amplamente vendidos também causam sérios danos à
saúde: a atrazina, por exemplo, é um desregulador hormonal, e o paraquat pode causar
intoxicações fatais.
A pesquisadora em
Saúde Pública Aline do Monte Gurgel, em seu artigo sobre a presença de
pesticidas na água publicado no atlas, mostra como a questão começa antes da
própria vida, no ventre das mulheres: “Há também um recorte de gênero nestas
intoxicações, posto que as mulheres têm sofrido em seus próprios corpos os
desdobramentos delas: seja por resíduos de agrotóxicos encontrados no leite
materno, seja pelos casos de abortos em função da exposição aos agrotóxicos,
seja ainda por gerarem bebês com malformação fetal e/ou que apresentam
puberdade precoce nos primeiros anos de vida”.
Ao longo da edição,
mapas elaborados com base em pesquisas de institutos, com dados checados pela
Agência Lupa, mostram vários gargalos do agronegócio, como a contaminação do
milho por defensores agrícolas. Como hoje 96% da produção do alimento é transgênica, Castro trouxe os
perigos da contaminação cruzada na cultura do grão – que é importado para
diversos países do globo.
Nos últimos anos, a
União Europeia aprovou uma série de medidas para controlar o uso de agrotóxicos
em suas plantações sem deixar, no entanto, de os produzir em larga escala. A
exportação de insumos para países do Sul Global é uma faca de dois gumes.
Em um levantamento
recente, compilado no Atlas dos Agrotóxicos, dados que mostram como
resíduos de defensivos agrícolas proibidos em países como França e Alemanha são
encontrados em alimentos consumidos nas dietas locais. “As commodities
brasileiras entram em solo europeu com uma espécie de consentimento”, alerta Montenegro,
citando uma das medidas mais polêmicas
da Convenção de Roterdã.
“Essas empresas acabam
produzindo e exportando para países como o Brasil, mas o impacto volta para os
países do norte. É um problema global, porque existem poucos processos
internacionais em que se pode debater essa questão. É preciso de um marco
global para se regular a questão dos agrotóxicos”, ressalta Montenegro.
Para complementar a
questão, a pesquisadora Katrin Wenz, em seu artigo no atlas, mostra o impacto
dessas substâncias no pólen e néctar de plantas tratadas com agrotóxicos,
citando um estudo de 2017 revelador: “75% de todas as
amostras de mel do mundo todo continham pelo menos um neonicotinoide, conhecido
por ser prejudicial às abelhas”.
Fonte: Mongabay
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